sábado, 27 de março de 2010

SOBRE O QUE HÁ

ela estava na rua, parada. ele se aproximou em passos medidos por outro compasso. eles se olharam nos olhos como se pudessem existir olhares assim. sem palavra se abraçaram. demoraram. ficaram ali, sentindo o calor do outro, nem tão outro assim. sentindo o ar que um expirava para o outro respirar. depois da vida toda contida num pequeno espaço, a palavra que sai, quase sussurrada. só para que um possa ouvir. - é como se você fosse o meu mundo agora. e ele repete. - é como se meu mundo fosse você. reaproximam as carnes, as peles, sentem os ossos querendo sair do corpo de cada um. permanecem. é preciso parar, ele diz. e ela, o start já foi dado, não há mais como parar. um suspiro. dois em um. a mão desce suavemente pelo ombro, passa braço, chega ao longo do próprio corpo. os passos seguem, lado à lado, num caminhar de quem sabe onde vai e chega. a chave gira na porta, os pés entram levando todo o corpo que quer ir. ele abre a garrafa, pega copo, pedras de gelo deslizam, liquido escorre. segura com a esquerda, senta no sofá, acende o cigarro, fuma. ela parada perto da porta, agora fechada. ela parada começa lentamente a tirar as peças de roupa, desnecessárias ali. ele como frente à uma obra de arte, fuma, traga e sorri. bebe mais um gole, sacode os gelos com os dedos. toma outro gole e deixa o copo sobre a mesinha. caminha até ela. passa o dedo recém gelado pela nuca. sobem os pelos como se pudessem sair dali. oferece o cigarro. ela fuma. ele vai até as costas e conta todos os nós da coluna. sussurra. - W, R, X, O, V, B, E, F, R, T, O. ela mexe o pescoço vez em quando. ele mexe em seus cabelos soltos. vigorosamente. ela se vira e lhe beija a boca com a fome de quem passou dias sem comer. come a boca num beijo que poderia durar para sempre. desabotoa os botões da blusa dele. desabotoa e sussurra. - N, M, A, L, N, E, A. ele sorri. ela lhe devolve com beijos em seu peito nu. eles descem lentamente ao chão que os acolhe como semente. ele semeia nela o que há dentro dele. eles respiram aos pares. paredes e teto se tornam números e cores, letras e palavras começam a surgir. ele escreve no corpo dela o que poderia dizer, ela sente as palavras sendo gravadas e as repete ao vento. os dias se passam. passam-se os meses. ele pergunta: - o que você espera? e ela: - não mais do que há. e ele: - e o que haverá? - não mais do que há agora. ele lhe come as palavras assim que saem da boca. as escreve por dentro. acham que o tempo não voltará a correr nunca mais. mal sabem que o tempo não mais está.

quinta-feira, 25 de março de 2010

QUANTO TEMPO O TEMPO PODE DURAR

não se podia dizer dela uma dona de casa comum, era mais do que comum, era um exemplo de lealdade ao que havia escolhido para sua vida. tinha verdadeiro prazer em realizar os afazeres domésticos. tinha prazer em saber que tudo funcionava bem graças à ela, que as roupas estavam limpinhas e passadas, que a comida estava feita e saborosa, que ninguém precisava se preocupar com nada ali dentro. era seu reinado, seu domínio sutil e delicado. os filhos e marido criados, não se preocupavam com uma virgula, tudo na mão, parecia um hotel de tão organizado. e ela não se queixava, quanto mais tinha para fazer, mais feliz ficava, sinal que precisavam dela, que era útil, dizia. mas um dia, no meio de uma das intermináveis faxinas, uma pontada no peito, que quase fez cair do banquinho. largou o pano e balde no chão e precisou de tempo pra voltar a respirar direito. passou o resto do dia com a lembrança física do acontecido. de noite, nem dormiu direito. preocupada. pensando como faria as coisas no dia seguinte. depois de uma semana com o peito latejando, decidiu ir ao médico. era nova ainda, mas não fazia exames há tempos. não dá tempo, disse pro doutor, tenha dois filhos, casa e marido pro senhor ver. e sorriu. o médico pediu uns exames e ela quieta. ninguém sabia que ela estava indo ao médico, fazendo exames. ninguém sabia que estava cuidando de si mesma, nem ela. sua preocupação era de não parar de ajeitar as coisas, de fazer a comidinha, de tirar o pó, lavar a roupa. e a pontada acompanhava, se ela ia, a pontada também, se ela vinha dava de encontro com seu peito, latejando, doendo. levou os exames pro médico, esperou o veredito. o doutor demorou um tempo, com os exames ali na mão. ela não estava certa de que estava doente, mas se estivesse, já tinha planejado, iria tentar conciliar o tratamento com os afazeres domésticos. não tinha medo da morte, tinha medo de ter que deixar os filhos e o marido na mão, desamparados. ela longe e o médico chamando. ela quase levou um susto. ele disse que não havia nada de errado, devia ser algum esforço excessivo, algum mal jeito. sua saúde era como a das mulheres de antigamente, poderia viver mais uns sessenta anos se continuasse assim. teve tempo de se orgulhar de ser uma mulher à moda antiga. ela respirou aliviada, nem doeu mais. saiu de lá feliz da vida, planejando as coisas que teria que colocar em ordem quando chegasse em casa. saiu do prédio e ao colocar o pé na calçada o peito ardeu de novo. ela quase teve um pressentimento, mas não tinha tempo, precisava ir rápido pra casa. parou na beira da calçada, o coração doendo, olhou para os dos lados, não haviam carros. deu uma corridinha. não notou o corredor de gente do outro lado, aberto, as pessoas quase coladas nas paredes. abriu o peito dolorido e seguiu com passos decididos, tinha pressa. o médico havia dito que chegaria aos cem anos, como sua avó paterna. mas ainda assim tinha pressa, cem anos são daqui a sessenta, mas hoje ainda tem coisa pela frente. atravessou a rua que faltava da avenida, olhou para os dois lados, era precavida. olhou só para os dois lados. não percebeu o tumulto logo em frente. assalto à carro forte, bandido, vigilantes, troca de tiros. sentiu o ardido no peito mais forte e depois quente, escorrido. ouviu uns borbulhos bem lá longe. sentiu o chão contra seu corpo. tinha pressa.

quarta-feira, 17 de março de 2010

CHOVEU ENQUANTO EU DORMIA

Há dias seus olhos eram só umidade. o vento secava e lá vinham outras molhações. estava no mundo e não sabia que mundo era esse. não reconhecia as formalidades da vida. seus olhos não podiam ver como os demais, o que viam era diferente. tentava se comunicar, mas ao invés de comunicação as pessoas só viam apanhados de palavras e sons. passava semanas com os olhos escorridos. certo dia seus olhos perderam até a cor, de tantos rios que passaram por lá. eles diziam que ela sofria de uma certa melancolia, ela não sabia o que era. mas sabia que dentro do peito ardia uma dor, que nem se sabia de onde vinha. foi ficando calada. descolorida. tolida por um mundo que ela não entendia. sendo agredida cada vez que respirava. foi fechando as portas e janelas. foi ficando cada vez mais, o menos que nunca quis ser. seus passos firmes foram se descolando. um dia, perdeu uma mala repleta de palavras, se perdeu. na manhã seguinte, acordou como num dia normal, pegou uma sacola plástica de mercado, separou algumas coisas que queria ter por perto. bem pouco coisa. foi ao espelho do banheiro e deu uma boa olhada, despediu-se com um breve chacoalhar de dedos. caminhou até a sala, saiu e deixou a porta aberta. não precisaria mais de chaves. pensou que seria bom ter alguma mão para segurar, na falta dela, levou uma luva entrelaçada nos dedos da esquerda. pegou o ônibus, sentou no fundo, olhou pela janela. guardou tudo em saco plástico. desceu no ponto final, caminhou umas quadras, nem com pressa, nem com lerdeza. avistou os grandes portões amarelos de ferro. avistou a placa que indicava a entrada. andou sem olhar pra trás. adentrou ao local todo pintado de amarelo, das paredes ao teto. se encaminhou ao balcão de informações. perguntou sobre os procedimentos para entrada. mostrou o conteúdo da sacolinha. alguns pertences foram retirados, mas ela não ligou. uma outra mulher apareceu, era branco contra amarelo. tirou um grande molho de chaves do bolso e abriu uma porta depois da outra, num grande corredor. indicou com a mão a porta que ela deveria entrar, sem palavra ou som. melhor assim. ela entrou e viu tudo colorido. uns já vieram ao seu encontro. eram palavras e sons soltos pelo ar. ela as pegava com as pontas dos dedos e fazia brincadeiras em pleno ar. era bem vinda. aquele lugar era seu.

tristeza que dói...

a dor física me preocupa, mas nem tanto, o que me preocupa é essa dor que dói e não se sabe onde. essa dor que não precisava acontecer, que não precisaríamos nem saber que existe. essa dor que talvez venha de uma tristeza, que dói como se alguma parte tivesse sido arrancada. e de fato foi. sempre que a tristeza vem, ao menos em mim, é porque alguma coisa se foi...
por algumas poucas coisas, fiquei sem palavras, sem saber o que escrever. e hoje é assim. dia sem nuvem, sem céu, sem cor, sem palavra, sem frase. ainda não sei bem o que dizer, já que sentimento aqui dentro é uma confusão e uma dor... já que aqui é uma tristeza que dói e já não se sabe quando vai passar.

sábado, 13 de março de 2010

AS GAROTAS DO CARA DA BANDA

estava cheio o bar, sempre cheio, não se respirava direito, não se sabia onde andavam os garçons, o banheiro nojento, a maioria dos clientes que vinha ali uma vez não voltava nunca mais, era longe de tudo o bar, tinha uma comida péssima e ainda por cima, volta e meia falhavam os equipamentos de som. mas parece que sempre tinha uma gente que não sabia disso, o mundo é grande ela pensava, e toda noite de sexta o bar era lotado até os bigodes. nas noites de sexta, ela que trabalhava o dia todo, todo dia, se dava ao luxo de aguentar o sono no sábado, para poder ir até lá. chegava cedo, era a primeira a entrar. de tanto que ia, conhecia os garçons, o dono do bar, os caras do som, as moças da limpeza, os seguranças e alguns poucos clientes que tinham coragem de voltar. tinha uma simpatia timida. se vestia de modo não chamativo, com calças compridas, blusas sem estampa, de cor discreta e poucas e pequenas bijuterias. seus cabelos chegavam soltos e eram amarrados num coque até o fim da noite, toda noite de sexta-feira. não bebi coisas de álcool, não comia fora de casa, tinha um estômago sensível, gostava de água mineral num copo com duas pedras de gelo e umas gotas de limão espremido, tomava duas todas as noites. fez as contas logo que começou a frequentar o lugar, e duas garrafas de água, mais a entrada, mais o táxi, era o que cabia em seu fraco orçamento. nos feriados ela estava lá, nos dias santos se houvesse show, nos dias de comemoração ou nos dias comuns. todos sabiam, não era o bar, era a música e talvez até um pouco mais do que a música. era ele. ele que tocava e cantava ao mesmo tempo, que tinha coordenação de fazer uma dançinha e ainda sorrir, que sabia todas as letras decor, e lia partituras, e estudava música e ganhava sua vida com isso e era alguém com quem ela sempre sonhou. não sonhava, de maneira alguma, que ele fosse seu, lhe servia olhar. servia saber que todas as sextas do mundo eram para o gracejo dos seus olhos. não que seus ouvidos não se felicitassem de estar lá, mas eram os olhos os mais agraciados. sabia dos jeitos, do que bebia, que não comia durante o show, só depois, sabia que tinha um pisca-pisca de olhos quando estava nervoso, sabia que cantava com microfone muito próximo a boca e que essa era um pouquinho torta, sabia que cheirava bem mesmo que suasse muito, sabia que lava os cabelos antes de ir pro show, que ia de carro, que gostava do que fazia, que era timido, que era perfeito para os seus olhos. e todas as noites ela acompanhava, cantando todas as músicas, que não variavam muito com o passar do tempo. acompanhava tudo lá de cima, da sua sacada. gostava dos pieguismos, se sentia meio piegas. se senti julieta, na sacada e romeu cantava e cantava e cantava. volta e meia ela ganhava uns olhares. sabia que era ela e mais milhares ali em cima. umas de saias tão curtas que pareciam blusas, outras com seios à mostra, outra com tudo à mostra. sabia que não era nem de longe um exemplo dessa beleza que se compra nos bancas de revista. mas não se importava, o importante eram seus sonhos, sua imaginação. ele olhava e ela imaginava que era pra ela. não olhava para o lado, não queria conferir que talvez fosse espinho e não rosa. era piegas até no que imaginava, ali se dava ao luxo de pieguizar até o fundo. sorria pouco, mas sorria. dançava pouco, mas dançava. fazia tudo de pouquinho, mas fazia. não precisava dos excessos, dos exageros. deixava isso aos outros. os outros diziam que ela se contentava com as migalhas. mas ela acha até boas as migalhas, são mais crocantes dizia. mas não era arrogante, tudo o que dizia ou discordava, fazia pra dentro. não ofendia, não causava, não doía. e acima de tudo, gostava de ser assim. mais uma sexta e ela lá. no seu devido lugar. hoje era um dia atípico, feriado nacional. feriadão prolongado. mas ela não viajava, muito caro e perigoso. e depois trabalhava mesmo nos feriados. o bar vazio de começo, anunciando que permaneceria assim até o fim. menos calor, banheiros mais limpos, menos fila no caixa, garçons circulando, copos de vidro pra todos. pensou pra dentro. dançou com os pezinhos colados no chão, cantou todas as músicas. olho de canto de olho. ele olhou de novo. e de novo. e mais uma vez olhou. ela não sentiu cabelos batendo em seus braços a noite toda. não precisou conferir se era terra, planta ou flor. envergonhou-se do que estava fazendo. quis correr pra fora dali. terminou de tomar os últimos goles de água, sabia que o meio ambiente agradece. levou a garrafinha até o latão de lixo. desceu as escadas, virou a esquina para o caixa. levou um beijo de susto no meio da boca molhada de limão e água. não viu mais que um borrão. não viu mais nada. seus globos paralisaram num vácuo de imagens borradas. pagou a conta. foi até a porta, entregou para o segurança. saiu do bar. pegou o táxi, disse o endereço, confiou no motorista. estava perdida dentro do seu próprio mundo. chegou em casa, tomou banho. no tirar da roupa sentiu o cheiro. sentiu o outro. viu novamente os contornos. soltou um choro escuro, mudo e gritado pra dentro. entrou no box e lavou-se, lavou-se por fora. as pegadas dos seus pés molhados ficaram impressas no chão de madeira. desenhavam o caminho de quem não sabe onde ir. dormiu com cabelos, pele e olhos molhados. acordou cedo no outro dia, enxugou a cara, vestiu roupa e foi para o trabalho normalmente. se guiava pelos ouvidos, sabia de verso o caminho. esperou a sexta-feira. vestiu-se mais discreta do que nunca. chegou ainda mais cedo. subiu ao seu lugar. havia decorado quantos passos era preciso. pediu sua água, seu gelo e seu limão espremido. cantou as suas músicas bem baixinho. olhou nos olhos do moço. olhou fosco. terminou o último gole da segunda garrafa. quebrou a ponta do copo com uma suave batida no canto da mesa. retirou um caco. olhou por mais dois segundos. esperou que ele desfocasse. escorou-se na grade, esticou os dois braços. passou rente a dobra que divide mão e punho o caco de vidro. sentiu suas palavras guardadas escorrendo pelo rasgo. quando a moça lá de baixo sentiu escorrer um líquido em seu ombro, passou a mão e gritou. ela olhou ainda mais uma vez para o rapaz e fotografou tudo o que pode, cada fio de cabelo, cada detalhe. antes de fechar os olhos pensou que precisaria de muitas fotografias dali pra frente.

quinta-feira, 11 de março de 2010

NADA MAIS

ELA ERA ASSIM, sem graça, sem fome, sem vida. não tinha muito do que reclamar e nem muito do que se alegrar. nada demais ela dizia a seu respeito e os que a conheciam repetiam o mesmo, nada mais dela. tinha uma casa compartilhada com os parentes, tinha um cama, um trabalho e um gato. nada mais. não gostava de tirar fotografia e nem de fazer amigos. amigos na verdade, não é que ela não gostasse, não sabia fazer amizades e quando as fazia, tinha dificuldade de mantê-las. mas não tinha problemas com isso. tinha uns cabelos nem lisos e nem enrolados, um corpo nem gordo, nem magro, não era nem bonita e nem feia. uma pessoa e nada mais. outro dia pegou uma tosse seca, dessas que faz você não ter vontade de fazer nada, já que tudo o que faz lhe provoca essa tosse sem fim. essas que você tosse até quase vomitar e que deixa a garganta seca e áspera. andava de lá pra cá, sempre com uma garrafinha na bolsa. umas balas no bolso. sabia que não era exagero, precisaria delas. de tanto que a tosse se prolongou a patroa dispensou a moça pra ir ao médico. e ela foi. o médico fez perguntas e ela respondeu. pediu alguns exames e fez uma ausculta do peito. ela quase teve uma "vergonha". depois de tudo o médico lhe perguntou se ela já havia tido tuberculose. ela disse que nem sabia o que era aquilo. ele disse que devido as condições que ela relatou de moradia e saúde, poderia estar com uma doença grave. um sorriso brotou no canto do olho. a boca estava virada para baixo em sinal de estarrecimento, mas os olhos brilhavam. seu interior maquinava algo que ela ainda não podia atinar. o médico recomendou pressa nos exames. ela saiu de lá com muitos papéis na mão e nada mais. caminhou pela rua olhando nos olhos das pessoas. parou numa praça ali perto, sentou no banco e ficou horas. nessas tantas horas se pois a pensar e emergiu enfim o que havia por dentro. estava lá a razão para aquele sorriso. ela estava feliz, alegre e plena. estava experimentando algo que nunca sentira antes. era bom sentir-se assim. amava aquele papéis. mal podia esperar a hora de fazer os exames e constatar tal gravidade, já que doente era certo que estava. pegou o ônibus lotado, arrepiava-se cada vez que alguém relava nela. estava tão viva. passou o caminho todo pensando se contava ou não para os parentes. decidiu, quase no ponto final, esperar o resultado. ao chegar em casa tratou de fazer uma cara normal. a tosse não havia atacado nenhuma vez no dia todo, mas ela insistia numa tossidinhas de vez em quando. tossia principalmente quando pipocava dentro dela a alegria. tossia pra disfarçar que estava completa, plena, viva. telefonou para a patroa pra avisar que no dia seguinte chegaria mais tarde, teria que fazer uns exames que o médico mandou. foi dormir com os pedidos de exame nas mãos, queria olhar e tentava decifrar naquele escrita toda o que significavam. quando estava quase embarcando no sono, achou que os nomes mais complicados ficavam por conta dos exames mais graves. dormiu como nunca. no dia seguinte foi direto ao laboratório. no caminho milhares de pensamentos, azuis, rosa, vermelhos, pretos, todos os pensamentos. deixou de ser um nada mais e passou ao tudo mais de uma hora pra outra. as pessoas do laboratório nem olharam pra ela com uma cara de piedade, já que era essa cara que ela imaginou que eles à olhariam. mas ela pensou que eles já estavam acostumados com mortes todos os dias. era o jeito que eles tinham de reconfortar os doentes. volta e meia respirava de um jeito diferente. era bom sentir-se assim. foi para o trabalho pensando em quem seria sua substituta, até quando aguentaria trabalhar. passou o dia todo com a realização mecânica dos afazeres, já não podia pensar em outra coisa. e o gato, quem cuidaria do gato. tinha muita coisa com o que se preocupar. em casa, na hora da janta, olhava os parentes, pensava que deveria ir confortando-os aos poucos, eles teriam que aceitar que alguns duram muito e outros pouco e que é assim que a humanidade caminha. toda noite olhava suas coisinhas, as roupas, poucas roupas, suas bijuterias, seus sapatos, tudo o que possuía e pensava nas pessoas que herdariam aquelas coisas. não sabia se era melhor já definir quem ficaria com o que ou se era melhor deixar que os parentes fizessem isso. talvez até os próprios parentes quisessem ficar com as coisas, um meio de homenageá-la. um dia, perdeu a hora do trabalho, andava muito ocupada para dormir cedo. outro dia sentou no banco da praça e ficou lá tanto tempo, que quando precisou ir embora não havia mais ônibus. teve que voltar caminhando. estava atarefada demais nos últimos tempos. até os parentes tinham notado sua mudança. ela elegia o melhor momento para lhes falar sobre a doença e tudo o que aconteceria com ela. mas esse momento não lhe parecia claro. tinha dúvidas. esperava os resultados. e um envelope chegou na sua casa. era duro ter que abrir, precisava de tempo, queria prorrogar o estado de vida que estava. dormiu abraçada com o envelope. pensou se deveria abrir ou não. levou dias nessa decisão. abriu. lá tinha uma porção de não-entendimentos e um positivo. estava gravemente doente. era certo. pensou no discurso. decidiu que o médico tinha direito de ver os exames antes que ela propagasse sua morte certa. marcou consulta, faltou no trabalho. se arrumou, passou um perfume de uma parente que estava no banheiro. passou batom. pois dois grampos no cabelo, um de cada lado. colocou calcinha e sutiã da mesma cor. sua mãe sempre dizia que sair de casa era assim, de conjuntinho, se você passa mal e precisam te acudir, coisa mais feia é meia, calcinha ou sutiã furado. ela poderia morrer antes mesmo de chegar ao consultório. poderia morrer a qualquer momento. era precavida, não contou a ninguém, mas deixou uma carta dentro do guarda-roupas. refestelou-se pelas ruas. chegou ao médico bem antes da hora marcada. sorria para as pessoas, um sorriso de um rosa claro e leve. tinha uma pequena poupança para o enterro, não abusaria e ninguém. quando o médico chamou seu nome, sentiu o coração parar e voltar a bater. sentiu como as mulheres dos filmes que esperam seus amados. levantou e parecia que pisava em pelúcia. caminhava em câmera lenta e tudo ao redor era nada mais que um borrão. o envelope refrescava sua mão e o refrescar espalhava-se pelo corpo todo. demorou dias pra chegar até a sala do médico e lhe entregar o veredito. ele abriu com uma agilidade de quem está acostumado a isso. olhou rapidamente para ela. estava certa de que ele queria se certificar de que ela ainda não havia partido. ela quase sorriu. ele colou os olhos nas folhas. passou por todas elas e pigarreou antes de começar a falar. todos pigarreiam antes de uma má noticia, ela quis dizer a ele que não era preciso pigarrear, ela já sabia de tudo e aquilo não era uma má noticia pra ela. ele fixou num ponto, como se precisasse de força para falar e disse que estava tudo certo. ela procurou se movimentar para ver se ele a olhava, ele nada. rabiscou algumas coisas numa folha de receituário. entregou e se despediu. ela antes de sair ainda conseguiu quebrar seu protocolo pessoal e perguntar nada mais, e ele disse que nada demais. deu mais dois passou e pensou que ele ligaria para alguém da família e falaria a verdade, pensou que por seu jeito frágil ela não iria suportar saber que irá morrer em breve. voltou e disse que era mais forte do que todos os que moravam com ela, que tinha visto o positivo e que estava preparada. ele ainda assim sem olhar disse que realmente ela era muito forte e que estava ótima para a idade, disse ainda que o positivo era para uma pequena infecção no pulmão que seria rapidamente curada com remédios, caso ainda restasse alguma bactéria. as pelúcias por espinhos, a velocidade da luz em seu peito. saiu de lá transtornada. queria correr nas ruas e gritar para que olhassem para ela, queria tirar as roupas, os órgãos, a pele e os cabelos. queria voltar para dentro de si e se trancar lá. queria que a fúria que sentia a secasse e que morresse de enfarto ali, no meio da rua. queria tudo o que não teve e tudo ao mesmo tempo. sentou no chão, em meio á rua. anoiteceu agachada, com algumas moedas em sua frente. se sujou de terra e cuspe. queria algo, nem que fosse um nada maior do que tinha. voltou pra casa só no outro dia. os parentes estavam preocupados. sabiam que tinha recebido resultados de exames, sabia que tinha ido ao médico. ao vê-la perceberam que era grave o que tinha. estava acabada. não lhe restavam mais do que fuligem do que nunca foi. as parentes lhe deram um banho, os parentes compram os remédios da receita. rezaram todos para que não morresse. ela deitou-se na cama. eles espalharam aos vizinhos que rezassem por aquela moça, tão nova, tão cheia de vida. o gato subia na cama e passeava por entre as suas pernas. todos os parentes se mobilizaram, traziam comida, doces, flores, revistas e livros. faziam com que tomasse o remédio, que logo estaria boa. ela não acreditava que fosse melhorar, mas também sabia que ninguém morria de tristeza, não para ela. tinha perdido sua chance de viver. não morreria tão cedo, lhe disse o médico. precisaria de algum tempo para voltar a fazer o que sempre fez. nada mais.

quinta-feira, 4 de março de 2010

NECROFOBIA GRAVE

morava sozinha a moça. uma casinha que dava gosto de ver, caso fosse vista por alguém. tudo arrumadinho, tudo no seu devido lugar. todos os dias elas saia pra trabalhar e voltava no mesmo horário. nunca nada de novo. cumprimentava cordialmente os vizinhos. era muito educada. não se via muito movimento por ali. sempre ela e ela mesma. mas era preferível assim do que uma bandalheira a cada noite. aos sábados lavava roupa, as calçadas e os vidros da casinha. a casa era de material, com calçada em todo o quintal. nas floreiras da janela e da varanda, flores sempre bem vermelhas e matos sempre verdejantes. mas ela não regava. nunca regou nada naquela casa. seria um mistério as plantas não morrerem, se nunca havia sido regadas. mas era domínio público, eram de plástico. mas aos domingos ela sempre dava um trato nas coitadas. levava para o tanque e dava uma boa lavada pra tirar a poeira. e depois colocava de novo nas floreiras, limpinhas, verdinhas e vermelhas. na janela da sala tinha um gato gorducho, com duas buricas azuis no lugar de olhos. quem não tivesse habituado com a visão, poderia estranhar o bichano ali, parado, todo santo dia. mas os vizinhos já sabiam, era de pelúcia o miau. e depois tinha os latidos. volta e meia ouviam uns latidos, sempre iguais, sempre no mesmo tom. descobriu um dia uma vizinha das mais "interessadas", que era um cachorrinho que parecia de verdade, mas que era eletrônico. latia, andava, parecia verdadeiro, mas era fake. as janelas tinham tela, evitavam a entrada de mosquito, pernilongo, abelha, borboleta, qualquer coisa viva. ela não se esforçava em fazer amizades, sabe as grandes amizades, não, elas não eram com ela. o pessoal do trabalho não sabia nem a idade, endereço, telefone ou coisa alguma sobre a moça. ela lia livros, via filmes, assistia televisão, comi, via fotos e bordava. eram os seus passatempos. não tinha necessidade de outras coisas, a vida se completava assim. um dia por muita insistência do chefe, passou no médico do trabalho, fazer um periódico, ele disse. e lá ficou, pensando o que iria acontecer ali. não tinha medo, mas tinha que conversar, e ela não estava muito acostumada, ainda mais se o assunto fosse ela. o médico chamou, ela entrou e eles começaram. conversas indo e vindo. e no fim das contas o médico era bem esperto, exprimiu dela o que jamais alguém tinha conseguido. saiu de lá com um afastamento e uma indicação expressa de um psiquiatra. os colegas não entendiam o que ela tinha de tão grave, para ser afastada do trabalho por tempo indeterminado. e ela leu no atestado: " necrofobia grave". nem sabia o que era. ficou sem entender nada. foi pra casa, continuou sua rotina, não foi ao psiquiatra.

sem olhos, sem olhar

PARA SCHEILA
POR DEIXAR MEUS OLHOS CADA DIA MAIS DELICADAMENTE ABERTOS...

EM todos os aniversários e festividades passíveis de presenteações, ela ficava tensa. enquanto as outras crianças corriam abrir seus pacotes, ela deixava sobre a cama e passava horas olhando aquelas coisas. os pais e o irmão já tinham se acostumado ao jeito esquisito dela. deixavam tomar seu tempo. depois de muitos dias ela desembrulhava. ficava triste ao perceber que eram mais bonecas. colocava todas dentro do guarda-roupas e fechava a porta bem rápido. ia escorrendo pela porta do roupeiro fechado, fechava os olhos com uma humidade fora do normal. suas roupas tinham passado para a comoda, desacomodadas do guarda-roupas cheio de bonecas, entupido. ela não suportava, tinha dias que nem dormir dormia, elas estavam lá, ela lembrava da cara de cada uma delas, todas com suas roupinhas cor-de-rosa, com tufos de cabelos louros. ninguém entendia aquilo, ela quase não entendia também. mas não podia suportar. depois viram os bichos de pelúcia. mas todos com aqueles olhos. todos dentro do armário superlotado. o móvel parecia gordo, empanturrado de olhos até a goela. um dia voltou da escola, entrou no quarto para trocar de roupa e deu um grito estridente, tão agudo e longo que fez tremer as janelas da casa de madeira. elas estavam lá, não só elas, mas também eles. todos espalhados pelo chão do quarto. não só uma parte do chão, mas todo ele. estavam por todos os cantos do quarto e olhavam pra ela. ela sabia que chegaria o dia de encarar todas elas. sabia que o guarda-roupas não suportaria. chegou o dia em que ele regurgitou todas, pelo quarto todo. da porta mesmo ela virou-se e correu o mais rápido que pode. chegou ao jardim, sentou no degrau de pedra da porta dos fundo. não podia piscar, não podia fechar os olhos, que doíam, arregalados. e dentro da cabeça dela, estavam todos, olhando. ficou fora de casa até anoitecer. não podia voltar lá, mas teria. sabia que era ela quem teria que resolver aquilo. entrou, passou pela sala e fitou levemente todos assistindo televisão. foi até o quarto. entrou, fechou a porta. pegou uma por uma. tentou ensaiar uma brincadeira, trocar a roupinha, falar com elas. mas não era possível, elas a olhavam. passou os olhos pelo quarto e um pânico subiu por seus pés e chegou aos seus cabelos. quis dar outro grito daqueles, mas já era tarde, tinha pavor em causa transtornos aos demais. seu dedicado amigo roupeiro estava lá, ele não à olhava. tinha um corpo todo completinho, mas não tinha cabeça, logo não olhava. os braços dele fizeram um convite e ela não pensou duas vezes. entrou no roupeiro e se aconchegou ali dentro. esqueceu dos olhos, dormiu. no dia seguinte a mãe bateu na porta. eram todos tão educados. ela saiu do roupeiro e abriu a porta do quarto. a mãe observou a bagunça de bonecas e bichos de pelúcia espalhados e disse a ela quem deveria arrumar aquilo, disse a ela qual era o papel de cada um deles ali dentro. ela sentiu o interior do seu corpo borbulhar, não sabia o que era aquilo. a mãe terminou, passou a mão sobre os seus cabelos e sorriu. seu corpo queria explodir, se ela soubesse o que era explosão. voltou para dentro do armário, colocou a caixola para funcionar. saiu de lá com passos tão decididos, que poderia ir a qualquer lugar. foi até a cozinha e pegou sacos plásticos grandes, voltou ao quarto. deu um grito mudo bem longo, aqueles que ela já tinha visto em tantos filmes, aqueles dados no começo de uma guerra. correu no meio das bonecas. arrancou a cabeça de cada uma delas com as próprias mãos e colocou nos sacos. ao fim estava exausta. tinha três sacos de cabeças de bonecas. esperou anoitecer, anoitecer bem. pulou a janela do seu quarto e o que se viu depois foi uma chuva grossa de cabeças de bonecas, cair no bairro. cabeças grandes, de plástico ,de porcelana, bem pequenas, com ou sem cachos de cabelos. cabeças. ela não precisou se proteger, era uma chuva que não molhava, pensou. voltou pra casa e não conseguiu dormir. brincou até o amanhecer com os corpinhos. no dia seguinte no colégio, o comentário geral era sobre o massacre das bonecas. um mistério, diziam. e ela satisfeita. aos poucos a rotina foi se recompondo. todas as normalidades de sempre se reinstalaram. a amnésia popular também. e todas as tardes os vizinhos mais curiosos viam a estranha menina que brincava na frente de casa, com suas bonecas sem cabeça. e ela tranquila, brincava até cansar. não havia mais problema, podiam brincar do que quisessem, não havia mais olhos para censurar.

101 dias em são paulo

101. O DIA PASSA E NEM SE VÊ

fiz mais um milhão de coisas nessa cidade que tanto me absorve quanto absorvo ela. caminhei pelas ruas por nada, quando descobri um tudo nesse nada. fui até o meu lugar, onde ao invés de touros encontrei vacas. andei de metrô mais vezes, de carro, de sonhos. conheci pessoas e percebi o quanto nunca se pode estar sozinho. estamos todos por ai e o que nos resta se não olhar ao redor e ver o que há. esse texto certamente é o mais poético de todos. não é só a inspiração que me toma e sim o sentimento de despedida de alguém querido, mais de uma despedida. despedida com gosto de até logo, que nunca sei se é logo ou longo. fica o gosto delicioso de saber que não estou tão atrasada assim, que tudo pode ser feito e em todos os lugares. meus pensamentos não são futurísticos ou retrógrados, são simplesmente pensamentos e ideias que estão ai. e por fim os últimos metros até o aeroporto, o silêncio de duas pessoas que se amam, a dor de ter que partir e ter que deixar ir. na despedida de nós duas, não há palavras, só umas gotas, que gritam um saudade que já começa a se formar. no caminho até guarulhos, já no ônibus da empresa aérea, uma boa música e mais uma passada de olhos onde não deu pra ir ou onde não deu pra ficar a eternidade que eu queria. e já a saudade boa apertando o peito. e no avião, olhando por cima das nuvens, não tão relaxada, não menos tensa do que sempre que vôo, mas olhando as nuvens, um certo silêncio pairava no ar, um certo respeito que a partida merece. ninguém do meu lado, nenhuma mão pra segurar, nenhum ombro pra deitar. descobri por fim, minhas próprias mãos e meu ombro, sempre lá, sempre presente, quando tudo mais me faltar...

"são paulo terra da garoa, terra de gente boa que gosta de estar lá"