domingo, 4 de abril de 2010

MANUAL DE COMO NÃO DEIXAR NADA PARA TRÁS, OU QUASE NADA.

TInha uma vida normal, mas depois de uns acontecidos que todos sabiam, mas ninguém comentava, ela passou a desnormalizar. passou a pensar coisas diferentes do que a maioria. passou a não ver tanto sentido assim pra coisas reais. cristiane levava horas em reflexões e por fim não via reflexo de nada do que havia dentro dela no mundo que à cercava. ela tinha uma filha, menina tão estranha quanto a mãe. sempre ensimesmada, sempre dentro de um mundo difícil de penetrar. e tão estranhas quanto eram para o mundo exterior, eram uma para outra. nem ao menos conseguiam se olhar, sem que isso gerasse um ruído, que somente as duas conseguiam perceber. uma passava dias observando a outra de longe, tentando descobrir o que reservava aquela geografia tão díspares. desconexões. comia, bebia, morava. mas nada disso fazia diferença. eram meros afazeres mecânicos para dar continuidade em algo que ela não entendia. cristiane tinha problemas não matemáticos para resolver. problemas que ela não sabia se havia criado ou se haviam criado para ela. cada vez mais adentrava. cada vez mais se desconectava. não acreditava nas coisas que pareciam óbvias ao demais, tinha dificuldade de se relacionar com a própria imagem refletida numa poça d'água. tinha dificuldade. naquela manhã de páscoa acordou cedo, não tinha plano pré-definidos, mas parecia que sabia que tinha que levantar com as galinhas. banho. água que escorre pelo corpo e corre para longe dali. você sabe onde a água do seu banho vai parar, ela pensou, sabe que ela leva parte de você pra algum lugar, ela disse. vestiu roupa, comum, era páscoa. roupa comum. pois coisinhas da filha na mochila que a menina carregaria nas costas. quem é essa menina, o que ela pensa, o que sente, onde irá daqui a pouco, ela disse em voz alta, enquanto fechava a janela dos fundos da casa duas peças de madeira. de chinelos. era perto a casa da mãe, almoço de domingo, de páscoa sem ovo, mas páscoa, mata frango, cozinha polenta, convida e aceita. era perto a casa da mãe, só atravessar a rodovia Br277. fogão de lenha aceso, a mãe espera a filha, as mães esperam os filhos mesmo que eles não venham, mães sempre esperam. porque as nuvens correm, elas não deveria ter pressa, divagou. fechou a porta da sala, pegou a menina, sem nome, só uma menina qualquer, pegou pela mão, obediente, saiu e fechou o portão. subiu pedacinho de terra. páscoa é dia de que mesmo, o que ovo tem com isso, engoliu. beirou a rodovia, sem movimento, domingo de páscoa de manhã. atravessou sem pressa a primeira via, vazia. vazio. a mãe do outro lado. fumaça saindo da chaminé pobrinha, improvisada. cheiro de mata atlântica, de café e roupa lavada com sabão de pedra e secada no sol. passou as pernas por cima do canteiro que divide quem vai e quem vem. esperou. percebeu com a ponta da sensibilidade. a mãe da mãe, mãe dela do outro lado sorriu. a neta, filha da filha olhou e pediu. a mãe-filha soltou a mão da filha-filha e a empurrou delicadamente em frente. a avó abriu os braços. cristiane olhou para o céu, ajoelhou, fez sinal da cruz e viu seu corpo eclodir da casca sob o impacto com o caminhão. entendeu o sentido de nascimento, do ovo. não precisou perguntar, simplesmente entendeu. era como ler um manual de como não deixar nada para trás ou quase nada. a água do banho, você sabe?

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