segunda-feira, 19 de outubro de 2015

NÃO MAIS UM DIA COMUM OU O TEMPO QUE ERAMOS FELIZES ONTEM

por nana rodrigues





(Peça para três vozes)

 

 

Os dias tristes e os felizes.

 

Fica difícil de suportar.

 

Eu acho que estou enlouquecendo. 

 

Posso assistir televisão? 

 

Te incomoda se eu assistir televisão enquanto isso? 

 

Eu não me importo, não me importo, ela fala comigo. 

 

Ok, já acabou. 

 

Sempre acaba, não é? 

 

Sabe, eles ficam fazendo filmes o dia inteiro, a vida inteira, o tempo todo. 

 

Ficam fazendo filmes e depois que tudo ta pronto, parece que eles falam 

com você. 

 

Mas eles nunca falaram com você. 

 

Eles nunca falaram. 

 

O meu peito arde e parece que eu vou desaparecer. 

 

Eu já desapareci. 

 

O meu peito, ele arde e queima. 

 

Parece que vai desaparecer. 

 

-Todos vão morrer. 

 

Não serão um ou dois, serão todos e o tempo todo. 

 

Vão morrer de sede, de fome, de morte, de tudo o que se pode morrer ou viver, eles vão morrer agora, neste ou em outro lugar. 

 

Seria mais fácil se fosse mais fácil morrer. 

 

Mas não é. 

 

Te incomoda a luz? 

 

Te incomoda o tamanho da letra. 

 

Você vai ficar cega se continuar vendo as coisas assim. 

 

Não coloca sua mão no meu corpo, eu deveria dizer, não coloca sua mão 

em mim, eu deveria dizer, e deveria dizer, eu não digo, você não diz, ninguém diz, eu não digo. 

 

Não há problema nisso meu bem, não há nenhum problema nisso, somos todos assim, todos humanos! 

 

Larga essa faca ou eu me mato. 

 

Larga essa maldita faca, tira ela do meu pescoço, deixa eu morrer em paz. 

 

Você já olhou pra eles como se amanhã não fossem existir mais?

 

Já olhou pras coisas que não estão mais aqui? 

 

Eu sei que tudo isso vai ser pra melhor, mas até melhorar, mas até melhorar, mas até lá, mas até. 

 

Pode me explicar de novo? 

 

Eu não entendi, você pode me explicar? 

 

Sabe, eu não queria fuder com você. 

  Mas já que todo mundo quer, eu também quero. 

 

Eu quero o que todo mundo quer! 

Eu quero ser o mundo de todo mundo! 

 

 

 

 

 

(não há nada)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vem aqui vem, eu quero você agora. 

 

Preciso de uma auto-afirmação diária. 

 

Você é a minha auto-afirmação de hoje. 

 

Eu preciso de autopunição diária, vem aqui vem. 

 

Você é a minha de hoje, você é a minha. 

 

-Conta até 10. 

 

Range os dentes. 

 

Bruxismo vem de bruxa. 

 

Submundo vem debaixo. 

 

Você vem de lá? 

 

Onde é a sua casa mesmo? 

 

Onde você mora agora? 

 

Onde você vai morar depois que sair daqui? 

 

Você vai sair daqui. 

 

Que dia é hoje? 

 

Hoje é terça-feira de um ano, de um dia, de um mês. 

 

Hoje é um dia comum. 

 

Amanhã é um dia comum. 

 

Ontem foi um dia comum. 

 

Um computador. 

 

Dois dedos, unhas mal feitas. 

 

Dentes sujos. 

 

O seu pau é sujo, meu bem? 

 

Se você quiser, eu posso te chupar. 

 

Se você quiser, se eu quiser. 

 

As garrafas foram encontradas vazias no local. 

 

Garrafas de refrigerante vazias, uma caixa pequena de pizza, apenas um 

prato. 

 

Mesmo sendo duas pessoas, apenas um prato. 

 

Eles ainda se amam, comem juntos. 

 

Ainda se amam. 

 

O que é o amor pra você Ilustríssimo Senhor

 

Ninguém é Doutor, a menos que tenha um doutorado. 

 

É o seu caso? 

 

- É o que eu faço pra não enlouquecer. Manter a sanidade, sabe?

 

Não, é meu marido! 

 

Seu marido. 

 

Você ta acordado? 

 

Eu vejo umas coisas que ninguém mais vê. 

 

Não, não é só você que vê. 

 

Eu também vejo, vejo tudo o que você vê. 


Eu sou o que está em seu pensamento, no fundo dos seus olhos, no fundo do seu céu. 

 

As mães deveriam ensinar as crianças que sacolas não são chapéu. 

 

Evitaríamos tantos transtornos com essas medidas simples. 

 

Você não tem capacidade de cuidar de uma criança. 

 

Você não tem capacidade de cuidar de um velho. 

 

Você não tem capacidade de cuidar de uma planta. 

 

Essa é você. 

 

Eu mal consigo respirar, eu mal consigo andar. 

 

O que você quer de mim, o que quer de mim agora? 

 

Está passando, eu estou melhor. 

 

Precisa disso. 

 

Precisa todos os dias. 

 

Como se fosse normal. 

 

Como se fosse comum. 

 

Como se fosse um dia comum, com pessoas comuns, fazendo coisas 

comuns. (pausa) Ela sempre quis chamar a atenção. 

 

Seja por bem, seja por mal. 

 

Não, eu nunca quis! 

 

Eu sou só um pensamento te julgando, não me responda, eu não preciso de respostas. 

 

Guarde-as para você. Você precisa de respostas, o tempo todo, pra te punir.

 

Obrigada. 

 

Não precisava ter se preocupado, ainda que eu saiba que é mera formalidade e não preocupação. 

 

Mas eu nunca direi isso pra você. 

 

Você está nos pensamentos não é? 

 

Que espécie de drogas você anda tomando? 

 

Que espécie de remédios você anda tomando? 

 

Está tomando alguma coisa? 

 

Eu posso te ajudar? 

 

Pode! 

 

Eu não consigo ver, você me chama um taxi, me leva até a porta, segura na minha mão, se certifica de que ele vai me deixar em casa. 

 

Eu to pensando em transar com você, sugar seu interior, sua alma boa e magra, sugar os livros que você leu. 

 

Eu o pensava e não olhava antes pra você assim, mas agora é outra coisa, outro dia, não é mais um daqueles dias comuns. 

 

Eles brigaram. 

 

Não é mais um daqueles dias em que eu vou olhar e não te ver.

 

Os seus ossos são fáceis de quebrar? Fáceis de digerir?

 

Acenda uma vela por mim também.

 

Eu tenho preconceito. 

 

Simples, mas é preconceito. 

 

Eu não acredito em taxista mulher.

 

Eu não acredito em nada do que eu digo. 

 

Pra mim, o mim não existe, são só as horas passando. 

 

Que horas são? 

 

As que você quiser. 

 

O prato sujo, um pedaço de tomate, pele, pele de tomate secando no prato. 

 

Eu não deixo de pensar um só segundo. 

 

Eu não deixo de pensar em como lavarei esses pratos com os meus. 

 

Com as minhas. 

 

- As mentiras são as verdades que você suporta.

 

- São como a vida deve ser.

 

É só um quarto de hotel, você vai ficar bem. 

 

Eu ainda posso voltar. 

 

Eu ainda posso. 

 

Não! 

 

Agora, não mais. 

 

Já está feito e tudo depois daqui vai gerar dor. 

 

Tudo o que for feito, bem feito ou mal feito vai gerar dor.

 

Vai gerar essa dor que não precisava existir, que não precisava. 

 

Mas eu posso sair, ver o jardim, ver as horas, me separar, cortar os cabelos, escovar os dentes. 


Eu posso. 

 

- Dor. 

 

 Eu. 

 

  Dor. 

 

   E. 

 

    dor. 

 

     Dor. 

 

Com essas três letras, que palavra você consegue formar? 

 

Quais letras? 

 

D, o e r. 

 

Pode repetir. 

 

Dor. 

 

Eu não sei. 

 

Posso passar a vez.

 

Acho que não é possível formar palavras com três letras. 

 

Posso passar? 

 

Eu não consigo formar palavras tão pequenas. 

 

Posso sair do programa agora? 

 

Isso não é um programa, não seja idiota. 

 

Você não pode sair! 

 

O que é isso então? 

 

Quer uma coisa estúpida, quer que eu te diga uma banalidade, quer que 

eu acabe com tudo? 

 

Eu não consigo ser assim.

 

A verdade não cabe em mim, nunca me serviu.

 

Quero! 

 

É a sua vida! 

 

Obrigada novamente. 

 

Quando as letras vão começar a cair do papel? 

 

No fim. 

 

Quando será o fim? 

 

Quando você decidir que sim.

 

Que sim ou que não?

 

Que sim.

 

Que sim então!

 

(pausa)

 

Tem pessoas e coisas, você quer?

 

Não sei. 

 

Tem pessoas, coisas, números, números-datas, tem comida. 

 

Você quer? 

 

Quero a comida. 

 

Só a comida? 


Só! 

 

Lamento muito por tudo o que te fiz. 

 

Não há de que. 

 

Um livro diria, não há de que. 

 

Um livro não diria. 

 

Quer um livro ao invés de comida? 

 

Tem folhas em branco? 

 

Não.

 

Guardanapos? 

 

Não seja burra. 

 

Eu não vou cair na sua conversinha de me enganar, como sempre fez.

 

Guardanapos

 

(coloca fogo em um maço de guardanapos)

 

você acredita em Deus? 

Tanto faz. 

Acredita então. 

Vamos até ali, você não anda rezando muito. 

É preciso rezar, sempre rezar, rezar e rezar. 

Rezar? 

Cala boca, sua puta ordinária, dobra seu joelho e reza.  

Pra quem? 

Por quem! 

Por mim e por você? 

 

Pela humanidade. 

Pela humanidade vale ponto? 

 

(os olhos incendeiam) 

 

Não me odeie assim. 

 

Não posso te odiar, sem odiar a mim. 

 

Então estamos prontas! 

 

Sim. 

 

Você sabia que eu sou falsa? 

 

Sabia, também sou. 

 

Somos todos. 

 

Não todos.

 

Quem então? 

 

Todos.

 

Certo. 

 

Deixe minha mãe e meu pai fora disso. 

 

Todos.

 

Meu pai e minha mãe. 

 

Seu pai e sua mãe. 

 

Todos.

 

Consegue ver aquilo ali?

 

 

(tudo brilha cegamente)

 

Sim. 

Sabe o que é? 

 

A solução! 

Pra tudo? 

 

Todos! 

Todos? 

Seu pai e sua mãe, não! 

Deixe-os de fora. 

Deixarei. 

 

Podemos nos sentar e comer um pouco? 

 

Sim. 

 

Aqui? 

 

Sim. 

 

Mas eles estão vivos! 

 

Mas nós não. 

 

Então não há problemas?

 

Creio que não. 

 

Que perfeito, você crê. 

 

Você consegue escutar esse barulho? 

 

É o que ele sabe fazer. 

 

 

E você? 

 

Suporto. 

 

Sempre suportará. 

 

Não. 

 

Sempre? 

 

Nunca? 

 

Tanta inutilidade em coisas comuns. 

Bom senso! 

 

É o que ele diria se estivesse aqui. 

 

Mas ele está. 

 

Que bom. 

 

Vamos comê-lo então. 

 

Não podemos. 

 

Não? 

 

Pense um pouco mais. 

 

Estou pensando. 

 

Você não teria chegado até aqui sem ele. 

 

Não teria. 

 

Então, não lhe parece lógico que ele fique de fora? 

 

Não. 

 

Pense. 

 

Certo. 

 

Você não teria feito nada do que fez sem ele. 

 

Teria feito outras coisas. 

 

 

(come)




eu tenho nojo de você! 

Eu não. 

 

Eu fechei os olhos e as imagens se formaram como nuvens em um céu azul. 

 

Era para ser bonito. 

 

Eram nuvens em um céu azul. 

 

Não era pra ser assim. 

 

Ele não deveria estar lá. 

 

Eu não deveria ter aberto meus olhos naquele lugar. 

Nunca deveria ter aberto meus olhos. 

 

 

Chega de falsidade. 

 

Chega! 

 

Eu sou falsa sempre. 

 

Eu sei. 

 

Então chega! 

 

 

 

(a mulher comum chega) sente-se aqui. 

 

Eu vou lhe buscar um copo de água. 

Eu vou lhe trazer um copo de barro com água fresca. 

 

Sente aqui! 

Sente e descanse um pouco. 

Está calor hoje, não é? 

Faz um dia bonito de verão, não é? 

 

Você não sabe falar? 

Não quer falar? 

Quer? 

Vou lhe trazer um pedaço de bolo também. 

 

Fiz com os ovos que as galinhas acabaram de botar. 

Estão velhas, mas ainda botam.  

Minhas carnes não descolam dos ossos, estão velhas.

Não se levante, minha querida. 

 

Eu posso te ajudar! 

 

Espere que eu já volto. 

 

 

 

(ela não voltará?)

 

 

 

quem é essa mulher que esteve aqui? 

 

Só podemos ser eu ou você. 

 

Num outro dia. 

 

Numa outra vez. 

 

Que dia é hoje? 

 

Um dia comum. 

 

Como todos os outros? 

 

                                                                                                                         - Não! 

Como o que então? 

 

Como ontem. 

 

Como ontem? 

 

Como antes de ontem. 

 

Como antes de ontem? 

 

Como sempre foi. 

 

 Como foi que eu não vi que sempre foi assim?

 

Deve ser porque vem de carro. 

 

Ou de ônibus. 

 

     Ou á pé. 

 

Ou não vem. 

 

Deve ser por isso que nunca reparou. 

 

Você percebe como o mar está mais calmo hoje?

 

Eu estou com sede. 

 

                                            Pegue um refrigerante no frigobar. 

 

É de graça? 

 

                     - Pode pegar, é seu agora. 

 

Pegue todos.  

 

      Todos? 

 

Sim. 


Vai ter uma festinha da filha do meu amigo sábado, você quer ir? 

 

Os meus cabelos começaram a cair. 

 

Não. 

 

Não quer? 

 

Se você quiser podemos ir. 

 

Terá comida lá. 

 

Tudo bem, podemos ir. 

 

Mas você preferia ficar. 

 

Não. 

 

Vamos conversar. 

 

Não há mais como parar, não é?

 

Sobre o que? 

 

Sobre aquela mulher. 

 

Que mulher? 

 

Aquele que era eu ou você. 

 

Não precisamos mais disso em nossas vidas

 

Nunca mais. 

 

O que você me diz dessas paredes? 

 

Elas estão fechando. 

 

O que me diz? 

 

Estão ficando pequenas.

 

O que acha delas?

 

Elas estão me esmagando!

 

De que cor?

 

Eu não suporto mais!

 

Que cor? 

 

Não encoste em mim. 

 

Leia meus pensamentos e vai saber. 

 

Não toque em mim. 

 

Leia.

 

Leia agora!

 

Não vai ler? 

 

Não vai?

 

Eu nunca vou ser feliz, não desse jeito. 

 

Não comigo. 

 

Ninguém será.


Não há felicidade.

 

Quer falar sobre isso agora?

 

Não quer falar?

 

Eu to enjoada. 

 

É normal, todos ficam assim. 

 

 

Como você sabe?

 

Eu já fui como você. 

 

Já foi? 

 

E o que aconteceu?

 

Eu também fiquei enjoada e você nasceu. 

 

Eu nasci?

 

Nasceu ou morreu, não me lembro mais. 

 

Eu preferia morrer.

 

Então nasceu. 

 

Quando vai acabar? 

 

Quando eu quiser. 

 

Então não vai acabar.

 

Se você quiser.

 

 

 

 

 

 

 

(a mulher comum está)


FIM


*esta peça foi apresentada como leitura dramática, dentro do projeto Tardes Dionisíacas, na Casa Hoffman - Curitiba/Paraná.