sexta-feira, 19 de agosto de 2011

de quando a esperança passou a ser lâmpada

pois decidiu que assim seria, seria assim que a esperança seria. como uma lâmpada fria que nem sequer ilumina uma pequena sala escura, onde deveria residir tudo o que há. tudo o que pode haver caberia naquela pequena sala escura. que sempre foi escura, mas que de uns tempos pra cá passou a ser seca e fria. e tomou muitas outras diversas decisões, tão frias quanto, tão escuras como e das quais pouco se arrependeria, já que aprendeu a se arrepender bem pouco, desde de que se tornou pequena, seca e fria. decidiu não fechar mais os olhos, não dar passos uns na frente dos outros, decidiu seguir em frente como podia. já que como podia era o conseguia. decidiu ser só pele e osso. não ter mais sono, medo, frio na barriga ou dúvida. decidiu pautar a vida por pautas que não seriam as de música e sim as de reuniões de negócios. percebeu que sofrer por amor havia saído pela porta daquela sala e não havia mais voltado. que não voltaria. perdeu naquela escuridão a fé, piedade, dor, saudade, toque e preferiu não perder a esperança só para poder vê-la transformada em uma lâmpada fria, instalada numa gambiarra no canto da sala, um cantinho pequeno de uma sala pequena e que tornou tudo frio, seco e desgastado, num tom sephia feio, de um ar estagnado que sequer consegue entrar e sair dos pulmões. e já sabia que não conseguiria mais deitar de costas e chorar. tinha aberto mão disto também. e o coração já não passava de um pedaço de carne mal passada, num eco de pele e ossos a se deslocar por um espaço apertado e em um tempo inexistente. escolheu a sem-gracisse. o desfocar. uma reta que terminava no infinito, sem curvas, sem paradas, sem. e tudo não passava de um borrão do que desejou um dia ter. um borrão não de um bom desenho, mas de um rabisco provisório sem cores que pudessem terminar num borrão vermelho ou magenta. apenas uma mancha tão escura quando o recinto que vivia de uns tempos pra cá. apenas um borrado de tons sem propósito esperando  o dia da lâmpada queimar. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

minha pequenina marchinha interna

vamos falar de amor? de tratar o outro como queremos ser tratados e que nunca será como sentimos que queremos, pois o que é que é pra mim que não é o que é pra você. mas sempre dá pra aproximar as pontas sem derrubar o que há no meio, sempre há como fazer uma dobradura bem bonita, com o papel do afeto, com o papel do respeito. e de vez em quando paramos de pensar só em nós mesmo e passamos a dar uma olhadela no outro e perceber que numa dessas esse outro também é nosso e esse nosso não é no sentido de nosso, mas no sentido de nosso. entende? e quando percebemos por uns instantes bem pequenos, podemos tornar certas coisas bem grandes, certas coisas do tipo coração, do tipo amor, do tipo respeito. podemos fazer o que nos vem a cabeça, nem que seja só por uma noite, só por uma noite. e depois no dia seguinte seguimos com a nossa vida, mas ela não segue mais sozinha, segue pelos passos da contaminação que se dá quando algo muito bom ou algo muito ruim acontece. e talvez certas vezes dependa de nós o "muito ruim" ou o "muito bom". talvez muitas coisas dependam de nós. o "nosso" talvez dependa do nós. mas mesmo que não sejamos capazes de amar assim todas as horas, os minutos, os segundos, ainda que na maioria do tempo sejamos nós manipulando o nosso para que vire um outro tipo de nosso. mesmo assim, naquele segundinho ali, em que percebemos a presença do outro. neste momento somos capazes de fazer o que fomos feitos para fazer. somos capazes de respingar em nossos corpos uma espécie de tinta fluorescente, que não dá pra ver sempre, mas hora ou outra vai brilhar. e quem sabe, com tanta gente pelo mundo, num segundinho aqui, num outro ali, o tempo passe melhor do que tem passado neste passado que vivemos agora!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

de como cresce o amor

era carente. de toque, de atenção, de afeto, de carinho, de amor. amor próprio, amor privado e amor público. sentia na pele a falta de tudo o que se relacionava aos sentimentos.  carente como se carência fosse uma moléstia que se pega ainda na infância e para qual o governo não disponibiliza vacina. sentia que não podia mais. e de tanto que observava e pensava, de tanto que via e lia, um dia sem querer achou o querer onde menos pensava. estava ali, por módicos seis reais. seis reais que separavam o ser do sentir. estava ali. entrou meio envergonhado. nunca havia imaginado pagar para ter os carinhos de outro alguém. nunca havia imaginado uma porção de coisas. seis reais. uma nota de cinco e uma moeda de um, três notas de dois, uma de dez que volta quatro. um mais um que gera dois. dois que gera afeto. afeto que se compra por apenas seis reais. entrou. a moça da recepção perguntou se tinha preferência. avermelhou. baixou os olhos num menear de cabeça. ela lhe disse para esperar no banco. lhe deu um papelzinho que tinha um número. o número do amor. alheio. foi chamado minutos depois. sentiu o bambear das pernas tropeçantes. sentiu os pés com vontade própria. mas foi. afeto. sentou meio de lado. desconfortável como todos os que amam. ela lhe perguntou como queria. ele respondeu "o de sempre" de um sempre que nunca havia existido. sentiu o toque deslizar pela nuca. sentiu o eriçar dos cabelos, barba e bigode. ela tinha as mãos leves e sabia bem o seu oficio. afeto. por seis reais. ele não viu a hora passar. o amor não tem hora. não passa. se despediu. leve. foi até o balcão da recepção e pagou. 
e voltou. como voltou. a cada dois dias entrava no recinto. um dia pedia uma coisa, no outro outra e assim seguia sem que ninguém lhe incomodasse. é claro que desconfiavam daquele homem ali, de dois em dois dias. é claro que não entendiam como nunca se satisfazia, como poderia querer sempre mais do mesmo. mas não era o mesmo. eram seis reais. era afeto. a maioria desconfiava de uma solidão latente que o fazia bater ponto por ali. mas ele sabia que era muito mais. sabia que por dentro era carcomido de amor. e que pouco a pouco, a cada seis reais empregados, era preenchido de afeto.
e passou muito tempo achando um detalhe pra melhorar aqui, outro pra arrumar ali. e sempre tinha o dinheirinho separado, trocado. trocava seis reais por amor. e como lhe remoçava. saia de lá com um aspecto limpo, novo, jovial. não lhe importava quantas pessoas passavam por ali, todos os dias. não se importava com quantos outros ela fazia. gostava de quando era com ele. de quando pedia que ela fizesse o que poderia ser feito e ela lhe respondia que o que poderia ser feito era o que ele lhe mandasse fazer. e então ele pedia "o de sempre", que agora já era o de sempre, e ela fazia. bem fazia. 
mas depois de um tempo começou a querer mais. e por mais que pagasse por duas ou três vezes numa só, o corpo já não dava para tanto. sentia falta de um algo a mais. de um lugar menos público. sentia pontadas de ciúmes dos que estavam com ela antes e dos que esperavam ela terminar para ocupar o seu lugar. sentia nojo dos instrumentos que por vezes ela usava. sentia-se usado. e começou a dar dicas do que sentia. do algo além do que podia. e ela, não se sabe se por costume, se por falta de costume ou pelos dois juntos, nada dizia, nada manifestava, só "o de sempre". e num dia em que enroscou-se com um rabo-de-galo no caminho, num dia em que acordou do lado avesso e todos podiam ver os espaço que o afeto preencheu e os outros tantos que ainda poderia  sem preenchidos... chegou sem parar na moça da recepção, já sabia onde encontrá-la. arrancou o que estava com ela aos tapas. pegou aquelas mãos tão conhecidas e pediu que largasse tudo e fosse com ele. não para um lugar especial, não para sair daquela vida, mas para dar o afeto de que ele tanto precisava. afeto que ele até merecia. ela soltou os braços apertados contra as mãos dele, olhou nos olhos fundos e disse que não fazia mais nada para ele. não fazia mais!
e ele não sabe se saiu de lá ou se foi jogado para fora. mas se viu do lado de fora da "loja de afetos", sentiu os seus seis reais queimando no bolso, sentiu doer a raiz dos cabelos, penicar a barba, mal cheirar o bigode, as sobrancelhas entrando e furando seus olhos. andou pelas ruas com a pressa de quem saiu e não voltou. entrou em casa demolindo todo e qualquer afeto que pudesse ter respingado por ali num tempo que era outro. fechou a porta do banheiro com a fúria de quem guerreia. retirou de dentro do armarinho do espelho o kit completo de barba. olhou uma última vez para aquele rosto e sentiu que os ácidos de dentro voltavam a carcome-lo. deu início ao fim tão temido. 
raspou cabelo, barba, bigode, sobrancelhas, raspou toda e qualquer lembrança de afeto que pudesse ter restado. não fazia mais! lembrou-se no meio de uma passada de lâmina e um soluço. das mãos que o afetavam com tanto cuidado e luxo. não fazia mais! ecoando por fora e por dentro. 
e ao passar na frente do salão unissex não sentia mais nada. nem barba, nem cabelo, nem bigode, nem afeto. havia morrido. nú em pelo.

PRA NÃO DIZER QUE SAUDADES NÃO SENTI

SERÁ FINDA assim que novamente nos encontrarmos, daremos aqueles abraços que sempre demos e será restituída nossa vida, nossas coisas, tudo o que sempre tivemos, tudo o que sempre sentimos e que sempre fomos um para o outro e uns para os outros. será o começo sem fim de uma nova fase, onde saberemos que temos um ao outro sempre que quisermos ter um ao outro. será morta entre beijos e abraços apertados a saudade que teima em se acumular em peitos cheios de dissabor, lembranças e saudade. será o começo do fim de uma saudade que parte e dói, todos os dias passados longe do corriqueirismo de nossa convivência. saudades das manhãs de sábado, das tarde de domingo e das noites de segunda. 

E AO CHEGAR não morre toda ela. não matamos e sim somos mortos e arrebatados por uma saudade que não passa, a não ser de um para o outro em círculos. uma saudade mais forte do que nossos sentimentos verdadeiros. mais verdadeira do que nossas verdades. uma saudade que não mora no peito, mas sim em cada vértebra das nossas lembranças, em cada célula do passado que vivemos. uma saudade forjada em ferro e ouro, que não se desgasta, como se desgastam nossas peles e ossos com o tempo. uma saudade que nominarmos assim por não querer assumir que não é tão simples e por querer simplificar é que chamamos saudade.


NÃO MORRE e só aumenta e sufoca na garganta, mas mesmo que apertemos nossas gargantas com mãos cheias de amor, ainda assim não será possível sufocar esta saudade, que saudade não é. e passamos horas falando e discutindo e lembrando e pensamos ser saudade o que nos faz ter lembranças. mas percebemos que só enfiamos adagas em peitos já sangrados de tantos golpes e não morre a saudade que achamos ali estar. e temos a sensação de que cada vez que tivermos um flash de um lugar onde fomos muito felizes estaremos sufocando a saudade e a obrigaremos a sair de nós para poder respirar e uma vez estando aqui fora será morta pela luz do sol ou da lua. mas não sai, cresce por dentro, enraizada nestas mesmas memórias.



E O FIM chega para nós e não para ela, que será passada do passado para o presente. presente sempre que outro dos mesmos que somos nós se manifestar tendo uma suposta saudade de uma manhã, tarde ou noite em companhia de outrem. e saberemos depois de mortos que a saudade que sentíamos de coisas que se foram é a mesma que sentem de nós agora e que nos parece claro que não é saudade, já que não voltaremos a nos abraçar em carnes, já que é claro que não voltaremos a pisar juntos as mesmas pedras e a apertar nossas gargantas em nós de amor. saberemos que se chama nostalgia e que não saudade. e que nostalgia não se mata, pois quando se acha matar se alimenta. e como cresce, mesmo por debaixo da terra. como cabelo, unha e raiz.

sábado, 6 de agosto de 2011

SEMENTE

Plantou flores por todo o jardim. cuidou como pode. cuidou do frio, da chuva, dos gatos, dos cachorros, dos pés cegos que teimavam em pisar na recém-nascida, das pragas, dos pássaros. cuidou mais do que de si. passou horas e mais horas, imersa naquele mundo florido. tirava folha amarela por folha amarela, marrom. conversava com elas. eram sua compania num mundo tão cheio de não florescidos. tinha coragem de acordar cedo num dia de geada, logo quando o sol saia, pra retirar de cima das suas companheiras o plástico que as cobria do gelo e deixar que respirassem em paz. e não tinha quem não admirasse tal jardim. não tinha quem não desse uns dois ou três minutos do seu dia para ver aquelas belezuras. mas a beleza era só o fim. gostava mesmo da troca diária, eu te cuido, você me cuida. eu não me cuido. nada nas costas. nada nas mãos. nada por fora. mas por dentro, esqueceu de plantar algumas sementes necessárias para seu crescimento. esqueceu que dentro também é jardim. e deixou crescer erva-daninha, deixou o mato grande. deixou tanto. já havia passado mais da metade, supunha. tinha filhos, netos, crescidos, floridos. dera o nome das filhas de flor, ROSA, MARGARIDA E VIOLETA. já estavam crescidas.
foi sentindo o tempo baixando sobre seus ombros. foi sentindo cada acordar cedo. não contou a ninguém, nem ao menos as suas amigas de raizes e cores. continuou seguindo em frente. como se isso fosse o que deveria ser feito. acordando, mesmo que dolorida, por dentro. cuidando, mesmo que não de si. colhendo.
e o que era pouco se tornou muito. muito difícil de suportar. mas mesmo assim foi ao médico sobre seu próprio eixo. ereta, feito haste de margarida. havia aprendido muita coisa. e depois tudo aquilo que já se sabe, que já se viu. o revirar das coisas de dentro do pior jeito, aquele sem jeito, sem tato. aquele que fotografa pelo avesso. e descobriram o que ela já sabia. tinha dentro do corpo umas ervas-daninhas. já grandes, já crescidas. sempre se perguntava de onde vinham as danadinhas, as daninhas. seria injusto julgar o vento, os pássaros, as formigas. seria injusto julgar que alguma coisa pudesse trazer o mal. mas ele vinha. não se sabe nem como e nem de onde. não se sabe ou se diz não saber...
era um mal irremediável. se pegasse pequeno disse o médico, arrancava pela raiz, tirava, extirpava, jogava veneno. mas agora era como uma árvore, havia criado raízes profundas e não se podia mais arrancar, sem tirar dali um grande pedaço de terra, por assim dizer. ela não sabia se ele sabia da sua predileção por plantas, mas não havia jeito melhor de explicar. jeito melhor de entender. e foi pra casa. pro seu jardim. estava sossegada. com suas plantas, com seu quintal, com suas coisas, com suas amigas.
e a peneira foi se abrindo. já não havia como não deixar o sol penetrar pelos furos imensos que ali se encontravam. o sol. tão bom, tão necessário. agora não mais. não mais ali. ia no hospital e voltava. pedia pra sair. assinava a rendição. dizia que sabia o trabalho que estava dando. e foi ficando cada vez mais envergada. envergonhada de não mais poder cuidar das suas flores, do seu jardim. e cada vez que ia demorava mais pra voltar. e quando voltava, não eram todas que tinham sobrevivido. sofria por todas.
mas um dai acordou bem. se sentia revigorada. reerguida em sua haste tão gasta. regou as plantas, que respiraram aliviadas. arrancou todo mato. cercou com palitos e fitas, coloridas. passou o dia do lado de fora. vez por outra ouvia um grito de "entra!", não ligava. estava entretida. mais do que isso, estava certa. só depois do sol entrou. resolveu dar jeito em umas coisas, que faz tempo estavam carecendo de ordem. gavetas, armários. e lá no fundo de uma caixa no fundo do fundo, um envelope. sementes. pequenas. não se sabia o que eram e nem de onde tinham vindo. se foram guardadas, ganhadas, compradas. se surgiram ali como surgem as ervas-daninhas. 
e o relógio do corpo deu sua badalada. final. chamou as filhas-flores na sala. contou de tudo e mais um pouco. regou todas com suas lágrimas. disse a roupa, vestido e casaco. tinha medo de passar frio em sua partida. deixou-as regadas na sala e voltou ao quarto. colocou no bolso do casaco escolhido o envelope. secreto. não se sabia se eram daninhas ou danadas. curvou-se para a colheita.
como flor que cai, não se ouviu nem suspiro, nem baque. só colhida, ainda flor. no chão. no quarto. chamaram médico. chamaram por tudo. ceifada. a roupa do lado da cama.
 e como todo tempo que é passado, passa. e todo sábado iam até o jardim final da florista, MARGARIDA, ROSA E VIOLETA. visitar as gramas. tirar o mato. regar a flor maior. e depois de seis meses. já com a dor menos dolorida. assim como acontece com tudo na vida. lá estavam elas. e de longe viram uma coisa que as deixou regadas. um maço grande de flores, que não se sabia quem teria levado até o lugar. e chegando mais perto viram que não haviam levado, estava. brotou da terra. estava plantado ali um buquê. e sorriram pensando que de tanto que gostava de flores, Deus havia presenteado. 
agora ela sabia, não importava do que eram as sementes e sim como seriam plantadas. estava de novo em seu jardim! plantada...
tem olho que olha pra ver

tem olho que olha pra esquecer