segunda-feira, 26 de abril de 2010

SÉRIE PERSONAGENS

MARIA DE LOURDES

mulher, 28 anos, tem o andar cansado de uma pata, usa óculos de grau forte, sempre arruma a armação no rosto. não tem muitos pudores ou vaidades. prefere beliscar doces ao invés de comer outros alimentos. acredita no amor de Deus e dos seres humanos. mora quase sozinha e tem, a cada semana, um número maior de cães em sua casa, com os quais conversa diariamente.

JENYFHER

mulher, 18 anos, tem dois filhos e um corpo marcado por três gestações precoces e próximas. cabelos vermelho-alaranjados, sempre com dois dedos de raiz. junta lacres de latinhas de refrigerante, acredita que dentro em breve conseguirá trocá-los por uma boa quantia de dinheiro. é o seu ouro branco. quando criança passou fome e morava em uma grande favela. hoje mora em uma "invasão" próxima a bairros nobres. trabalha como diarista. sonha mudar de vida. nenhum dos filhos conhece o pai.

ESMAEL

homem, 35 anos, cabelos ralos e pretos, olhos castanhos, faz barulhos com a boca quando come. bebe todos os dias em pouca quantidade e exagera nos festas e finais de semana. pensa desmedidamente em tudo o que vai falar, logo fala pouco. tem medo dos seus impulsos instintivos. tem na pele um cheiro constante de sabonete e nas mãos e boca o cheiro dos dois maços de cigarro que fuma desde o amanhecer até o momento em que se deita. nunca dorme mais do que duas horas por noite. tem tendências homossexuais e suicidas, briga contra isso olhando todas as mulheres que encontra com volúpia.

ALCEBIADES

homem, 72 anos, casado, cabelos curtos, grisalhos, bigode branco. anda para cima e para baixo com uma capa de gabardine bege e um guarda-chuvas. lê o jornal todos os dias exatamente as 10 horas da manhã. sonha em um dia voltar para a Itália, terra de seus antepassados. odeia banhos, faz apenas uma vez na semana, aos sábados, depois de um ritual que consiste em colocar bermudas e regata, um roupão atoalhado por cima, uma toalha nos ombros, cantar a tarantela e tomar uma dose de pinga. quando bebe, chora com facilidade.

IVO

homem, 34 anos, corpulento, desempregado, cuida da filha de dois anos para que a mulher trabalhe. desempenha todas as funções domésticas com esmero. sempre usa camisetas velhas, bermudas jeans e chinelos. raspa a cabeça, não tem um dente da frente na arcada superior. quer trabalhar, vai a diversas entrevistas de emprego, mas sofre discriminação por sua aparência. aprende coisas com facilidade, a mesma com que desiste delas. não tem um bom relacionamento com seu pai. rói unhas até a carne.

ARIEL

rapaz, 16 anos, filho de pais separados, mora com a mãe. tem dúvidas sobre suas preferências sexuais, mas prefere uma atitude "gay", acha mais fashion. tem piercing, tatuagens, e só fala por gírias. se droga todos os dias, com os mais variados tipos de drogas. odeia cigarros de nicotina. beija todos os seus amigos na boca, dorme em casa apenas uma vez na semana. sua mãe apoio suas decisões e faz vista grossa as suas loucuras. joga na cara do ex-marido a responsabilidade pelas atitudes do filho.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

VOA QUEM PODE VOAR

ELA sempre ficava intrigada com uma porção de coisas. um dia cismou com os assentos flutuantes do avião. passou boa parte do vôo imaginando o que faria deles "flutuantes". depois de vários momentos observando e apalpando o assento, em busca de explicações, sentiu a necessidade de saber como funcionava. sabia que não poderia mais viver com a dúvida, e esse não era um dos mistérios com o qual queria conviver.
desde pequena, a história que mais gostava era de ìcaro, o que queria voar. ela, apesar do medo congelante que sempre teve encalcado em si, também desejava, no fundo, voar como um pássaro. logo pensou, se voa o avião inteiro, não há dúvidas de que flutua o assento. articulou um plano. mediu delicadamente todos os detalhes. abriu a grande sacola que havia trazido, retirou tudo de dentro e colocou sob seu banco. esperou a aterrisagem. esperou o desembarque da maioria dos passageiros. olhou cuidadosamente para ver se não havia nenhum comissário de bordo próximo. colocou a bolsa no ombro, arrancou o assento flutuante e colocou dentro da sacola em apenas um movimento. correu para fora do avião o mais rápido que pode. saiu do aeroporto à passos de gigante. não quis ir direto para casa. tinha planos melhores. foi até o centro da cidade. subiu no edifício de 40 andares. olhou tudo lá de cima. a mão dormente com o peso da sacola. abriu a porta do terraço. deixou a bolsa e a sacola no chão. vestiu óculos escuros. sorriu. saudou ìcaro. amarrou o assento flutuante no ventre com seu cinto. num gritinho pulou lá de cima com os braços bem abertos. sentiu o vento forte no rosto. sorriu de novo, agora com todos os dentes expostos pelo excesso de ar. bateu asas. lá embaixo juntou um povinho pra ver o que estava acontecendo. viu o chão cada vez mais perto. procurou em vão, em seu assento flutuante, um botão que a levasse novamente ao alto. o chão estava em frente. voltou a abrir os braços, desafivelou o cinto. sabia que os vôos não duram para sempre, logo estaria ao lado de ícaro.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

AO AMOR, MINHA IMEMÓRIAS

COM minhas sistoles e diastoles em suas mãos, ele me guiava por caminhos desconhecidos, que não voltei a percorrer sem tal pulsação. bastava saber que havia boa dose de verdade em todas as minhas mentiras. minhas imemórias, me refrescavam isso sempre que respirava o ar nostálgico das três da tarde.
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COMO não falar de amor, de turbulência e de doces mentiras no último dia de um ano enrubrecido desde os primeiros ares. pois se não me traem minha imemórias, se minhas verdades repletas de toda sorte de cores não falham, resolvi, no derradeiro suspiro de 2009, escrever para afugentar o calor e a saudade que sempre me acomete nas badaladas das três. respiro com a dificuldade normal dos dias mais quentes e sinto na pele a transpiração úmida dos poros desesperados por arrefecimento. sentada defronte para a sombra de uma das grandes árvores, plantada antes mesmo de eu ser semente, senti numa inspiração o gosto, o cheiro e a cor de outro tempo, não mais o meu, um tempo de ninguém ou de todos. comecei a escrever na urgência de retratar e reparar desvios que o destino ignóbil havia feito em meu destino e depois de algumas varias folhas rasgadas e arremessadas a desesperança, sob o vento verdadeiramente mentiroso de um ventilador, resolvi apenas lembrar, com todas as particularidades, o que fosse possível, sobre os amores que vivi.
passei e passeei por tentativas, mentiras, verdades nuas e cruas demais, dores, ousadias, lembranças das mais simples às mais ricas, passei pelos detalhes esquecidos, tentando rever as horas para saber em qual delas havia perdido tanto. criei toda uma lógica, uma técnica para falar do amor que vivi. uma cadência de acontecimentos em ordem histórica, coerente, prudente e desprovida de mentiras fáceis e insuportáveis. enjambrei o enredo, de modo que pudesse ser compreendido pelos que viveram tais desventuras e pelos que sequer souberam que existiu. ao fim, na releitura vital dos "escrivinhadores", me deparei com um objeto lindo, porém coberto de tantas demãos de laca, que ficou impossível descobrir o que fora aquilo. ao fim, ficava impossível recordar, numa sequência lógica e real, as verdades do amor.
resolvi alimentar o fogo que ainda queimava na ponta da minha caneta, com as páginas já escritas e rememorar tal qual é o amor vivido. com a lógica própria dos apaixonados, que se faz clara somente aos que já padeceram dos tremores e calafrios de uma febre sem fim, numa cama que arde e queima no mais rigoroso inverno. uma doença da qual nunca se soube da cura, mas que se vacina com gotas que ao invés de serem pingadas, saem dos cantos dos olhos de quem já amou.
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nada como uma boa mentira! um calor que faz suar até nos cabelos mais escondidos, e eu na frente de umas hélices de plástico, ligada numa tomada e que faz um vento deslavadamente mentiroso, mas que refresca com uma verdade que nem o mais cético duvidaria.

domingo, 11 de abril de 2010

a contadora

moça sonhadora, dessas que dispensa horas por dia só para sonhos. ficava na janela, escorada, pensando, criando um mundo onde se encontrava, onde vivia. criava todos os detalhes, coloria à mão e ficava por lá algumas boas horas por dia. de tanto que inventava, inventou de contar as suas histórias a quem quisesse ouvir. contou uma ali, outra aqui, outra acolá. mas tinha uma dia por mês que ia num lugar, o que ela mais gostava, uma vez por mês ia na livraria, sentava na sala dos sonhos e contava suas histórias para as crianças de lá. sempre que era o dia da sua contação, ela chegava cedo, antes de se arrumar, de arrumar seu canto dos sonhos, ela passeava pela loja, passava a mão nos volumes, sonhava em poder ler todos. havia combinado com a dona da loja, uma senhora pequena e ágil, que receberia o pagamento por seus serviços em livros. a cada contação voltava para casa faceira, com o volume debaixo do braço. tinha o que fazer até o próximo encontro.
estava formando uma pequena biblioteca em seu quarto, não podia ser muito grande, morava em um quartinho de pensão, daquele que só cama e criado mudo. pendurou umas prateleiras e lá colocava seus troféus. tinha dias que não lia, era econômica, tinha dias que deitava na cama e ficava olhando os livros enfileirados e aquilo já lhe bastava. noutros colocava todos sobre a cama e criava novas histórias olhando para as ilustrações das capas. era assim a sua vida, pequena, modesta, mas rica em cores e sonhos.
saiu de casa com a sacola colorida feita pela tia, toda com retalhos, caminhou até o ponto de ônibus, e cada coisa que olhava reverberava em histórias dentro dela, nem todas eram escritas em cadernos ou contadas, tinha aquelas que ela criava para logo serem esquecidas. tinha aquelas histórinhas transitórias, que vinham, existiam e desapareciam. era seu combustível. entrou no ônibus já pensando na volta, no presente que traria da livraria da Dona Gertrudes. desceu, caminhou mais um pouco, era cedo, faltavam mais de três horas para contação do dia. entrou na loja, sorriu. passou pelas prateleiras de lançamentos, de técnicos, de estrangeiros, queria saber ler aquelas palavras diferentes, queria entendê-las, mas isso não era um problema, criava história sobre história, fosse a língua que fosse. sentou na pequena mesa redonda e passeou pelas páginas de um livro muito ilustrado, seus olhos se encheram. quando percebeu já estava quase atrasada pra colocar sua roupa e contar sua história. se arrumou, foi para seu cantinho, esperou o anúncio feito no microfone, as crianças juntaram nos pés da moça e ela sorriu num suspiro de começo. contou a história de uma princesinha muito diferente, uma princesa que não vivia num castelo e que não usava belos vestidos, ocultou o fato de que aquela princesa vivia dentro dela. descreveu o príncipe cuidadosamente. acreditava realmente nisso. e lá no fundo, um moço, com carrinho de bêbe, olhando. acompanhou a história inteira com o bêbe dormindo no carrinho. ela só viu que ele estava lá, porque alguma coisa que ela disse, fez com que ele risse alto e a risada chamou a atenção de todos. ele ria e jogava a cabeça para trás, ele ria como uma criança. tinha uma feição de homem feito, mas volta e meia deixava escapar uma criancinha dali de dentro. ele ficou estampado em seus olhos. abraçou as crianças ao fim da história, arrumou seu canto e ele lá olhando. foi para o banheiro, tirou maquiagem e roupa, colocou dentro da sacola, se dirigiu até o caixa para receber seu livro, pagamento. e lá estava ele, parado por perto, olhando. ela sentiu-se envergonhada. colocou o livro dentro da sacola e saiu com passos rápidos apertados. ouvia o ruído da roda do carrinho perseguindo seus pés, não tinha coragem de olhar para trás. seguiu assim o caminho todo. entrou na pensão, fechou a porta, chegou a ter medo, não um medo definido, disso ou daquilo, mas um medo do desconhecido. colocou a sacola ao lado da cama e nem se dignou a olhar o livro. de roupa, deitada por cima da coberta, dura. ouvindo. e logo na janela o barulhinho de pedra sendo atirada, e mais uma e mais uma e uma dúzia delas. puxou a cortina de rendinha, olhou agaixada e lá estava ele, depois do muro, sacudindo a mão com um sorriso. ela sentou no chão e ficou ali a noite toda. cada vez que espiava pela janela, lá estava ele. ficou uma semana sem colocar o nariz pra fora da porta, mas quando saiu deu de cara com ele. foi até a padaria e lá estava ele, tomando uma cafézinho, disfarçando. depois de dias, resolveu conversar com ele, deveria ter alguma coisa a lhe dizer, criou histórias com isso. e se falaram sentados na pracinha, conversaram a tarde toda. era querido. era querida. e depois disso, todo dia se falavam, todo dia ele ia lá. levava coisinha, agradava, estava. descobriu a predileção dela por livro e passou a presenteá-la com vários deles. certo dia deu o melhor de todos, ilustrado, mas não escrito e ela escreveu ali a história deles. tirou a moça do quartinho, levou pra sua casa, que não era um castelo, era linda. tomava café na cama, sentavam juntos pra sonhar e inventar histórias. acompanhava nas contações de história e ficava lá, olhando como no primeiro dia. esperava no balcão ela pegar o livro e de noite lia pra ela. eram felizes. o tempo passava e passou. os cabelos dela começaram a tornar-se prateados. um dia ela acordou e deu de cara com ele lhe olhando, sentado no chão ao lado da cama. olhou nos seus olhos e viu a criança daquele dia. estava lá, escondido nos dentes, nos fios de cabelo, na pele, no todo. percebeu que havia cometido um erro. ficou em dúvida se deveria voltar no tempo. passou vários dias para tomar a penosa decisão. deveria começar a envelhecê-lo. o tempo também deveria passar dentro dos contos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

POEMA ANTIGO

E QUASE NUM PEDIDO DE CLEMENCIA
MINHA ALMA PEDE ANISTIA
SE COUBER ATÉ ANESTESIA
PRA SUPORTAR UM CORAÇÃO
COMO ESTE QUE EM DERAM
QUE EMBARCA NOS QUE ESTÃO À DERIVA
DERIVANDO MINHA VIDA NOUTRAS VIDAS
E DE SOSSEGO NÃO SE SABE MAIS
QUE SUSPIRA NUM GEMIDO QUE ARDE
E A CADA RESPIRO O AR QUE INVADE
CHEIRA AO PERFUME BARATO DA PAIXÃO
QUE CIRCULA NO CORPO O CALOR
DESSES QUE NÃO SE REFRESCA COM VENTILADOR
E ALMEJA VELHICE PRECOCE
PRA VER SE GELA O CORAÇÃO PREDADOR

domingo, 4 de abril de 2010

MANUAL DE COMO NÃO DEIXAR NADA PARA TRÁS, OU QUASE NADA.

TInha uma vida normal, mas depois de uns acontecidos que todos sabiam, mas ninguém comentava, ela passou a desnormalizar. passou a pensar coisas diferentes do que a maioria. passou a não ver tanto sentido assim pra coisas reais. cristiane levava horas em reflexões e por fim não via reflexo de nada do que havia dentro dela no mundo que à cercava. ela tinha uma filha, menina tão estranha quanto a mãe. sempre ensimesmada, sempre dentro de um mundo difícil de penetrar. e tão estranhas quanto eram para o mundo exterior, eram uma para outra. nem ao menos conseguiam se olhar, sem que isso gerasse um ruído, que somente as duas conseguiam perceber. uma passava dias observando a outra de longe, tentando descobrir o que reservava aquela geografia tão díspares. desconexões. comia, bebia, morava. mas nada disso fazia diferença. eram meros afazeres mecânicos para dar continuidade em algo que ela não entendia. cristiane tinha problemas não matemáticos para resolver. problemas que ela não sabia se havia criado ou se haviam criado para ela. cada vez mais adentrava. cada vez mais se desconectava. não acreditava nas coisas que pareciam óbvias ao demais, tinha dificuldade de se relacionar com a própria imagem refletida numa poça d'água. tinha dificuldade. naquela manhã de páscoa acordou cedo, não tinha plano pré-definidos, mas parecia que sabia que tinha que levantar com as galinhas. banho. água que escorre pelo corpo e corre para longe dali. você sabe onde a água do seu banho vai parar, ela pensou, sabe que ela leva parte de você pra algum lugar, ela disse. vestiu roupa, comum, era páscoa. roupa comum. pois coisinhas da filha na mochila que a menina carregaria nas costas. quem é essa menina, o que ela pensa, o que sente, onde irá daqui a pouco, ela disse em voz alta, enquanto fechava a janela dos fundos da casa duas peças de madeira. de chinelos. era perto a casa da mãe, almoço de domingo, de páscoa sem ovo, mas páscoa, mata frango, cozinha polenta, convida e aceita. era perto a casa da mãe, só atravessar a rodovia Br277. fogão de lenha aceso, a mãe espera a filha, as mães esperam os filhos mesmo que eles não venham, mães sempre esperam. porque as nuvens correm, elas não deveria ter pressa, divagou. fechou a porta da sala, pegou a menina, sem nome, só uma menina qualquer, pegou pela mão, obediente, saiu e fechou o portão. subiu pedacinho de terra. páscoa é dia de que mesmo, o que ovo tem com isso, engoliu. beirou a rodovia, sem movimento, domingo de páscoa de manhã. atravessou sem pressa a primeira via, vazia. vazio. a mãe do outro lado. fumaça saindo da chaminé pobrinha, improvisada. cheiro de mata atlântica, de café e roupa lavada com sabão de pedra e secada no sol. passou as pernas por cima do canteiro que divide quem vai e quem vem. esperou. percebeu com a ponta da sensibilidade. a mãe da mãe, mãe dela do outro lado sorriu. a neta, filha da filha olhou e pediu. a mãe-filha soltou a mão da filha-filha e a empurrou delicadamente em frente. a avó abriu os braços. cristiane olhou para o céu, ajoelhou, fez sinal da cruz e viu seu corpo eclodir da casca sob o impacto com o caminhão. entendeu o sentido de nascimento, do ovo. não precisou perguntar, simplesmente entendeu. era como ler um manual de como não deixar nada para trás ou quase nada. a água do banho, você sabe?