sábado, 27 de novembro de 2010

ctrl+d

não há verdade, não amor, não há nada que suporte uma vida onde ela não está. pois se temos boca, ouvido, cabeça e membros. pois se desde pequenos temos no peito a alegoria do coração. se funcionamos com perfeição. todos os dias, e até mesmo nos piores. se o olho se abre quando acordamos, se fecha quando dormimos e depois se fecha quando estamos acordados, quem sabe prum sonho atemporal. se escolhemos pares, vários deles como em uma loja de sapatos. sairia você somente com o esquerdo, somente com o direito, com um diferente do outro? há uma necessidade inata em mim. uma dessas que tive que ter tempo não perdido pra encontrar, pra identificar, pra saber como faz... como se vive uma vida sem saber o que há logo ali, bem na frente do seu nariz, arrebitado na ignorância de que é simples, muito mais do que se possa crer. pra que esses olhos tão grande, pra te ver, e a boca, pra te comer, te falar, te dizer, e os ouvidos pra te ouvir. caso contrário bastaria uma grande massa, um bloco móvel e ponto final. mas se temos acessórios, apetrechos tão bem elaborados, se tenho você do meu lado, na minha frente, atrás de mim. tank you man. de que adianta ter olhos pra não ver, ter boca pra não te comer, emudecer, não te ouvir, nem que seja num breve suspirar.  de que me adianta olhar e não ver, escutar e não ouvir, falar e não dizer. de que adianta tanta perfeição se a delicadeza nos falta? se nos falta saber do outro, onde doí, onde é bom. se você está ali mas não está, de que adianta verbificar? a verdade, preciosismo dos maiores, nada é se não houver em mim a delicadeza de perceber que o que é meu nem sempre lhe é pertinente. o que te adianta? de que adiantam tantas coisas se acha que aqui dentro é só sangue, comida, detritos, fluidos, ossos, carnes e banhas? se ao invés de ver um ser móvel, movediço em si, apenas vê uma fotografia em 3D. as salvações estão todas perdidas, se não há uma delicadez em nós, todos os dias, todas as horas, com todas as coisas. só a delicadeza salva. ctrl+d!

NA LOJA DE VARIEDADES

existem várias coisas na loja em que vivemos, na loja de variedades. das mais caras as mais baratinhas, das mais significativas as mais furrecas. e passamos o tempo todo negociando, vendendo, comprando, olhando o que tem de velho e as novidades. passamos o tempo todo. e lá no fundo existe uma prateleira, repleta de coisas fantásticas e ao lado uma placa, que nos queima a boca do estômago. e milhares de nós, se acotovelando na frente dela, olhando com as mãos nos bolsos, bolsos que escondem os dedos variantes, nervosos. unhas levemente roídas, compridas, pintadas, escondidas. existe lá no fundo da loja de variedades, uma prateleira. existem coisas na prateleira. e uma placa. PROIBIDO TOCAR - NÃO TOQUE! e depois de muito tempo, tem uns de nós, uns bem poucos, quem entendem, que existem coisas no mundo que são só pra olhar. nossos dedos não teriam tato pra lidar com tal material. pra olhar...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

o telefone...

quando ele toca, toca em algum outro lugar não é? como uma voz pode passar por dentro de um fio que está lá em outro lugar e chegar aqui. e aqui chegando entra ainda mais, mais fundo, funde as coisas de dentro com as de fora. como posso estar aqui? como posso estar lá? como podemos? quando o telefone toca, do outro lado ele chama, mas do lado de cá também há o chamado, uma dúvida de quem está do lado de lá... uma dúvida se devemos atender ao chamado de quem chama. responder, ouvir, falar, sentir. e se não atende, se não ouve o que se diz do lado de lá, a dúvida do que era, do motivo, das palavras que ficaram presas na garganta de quem chamava e não foi atendido. sempre que o telefone toca me dá um sobressalto, um assalto no peito, nunca é corriqueiro quando o telefone toca por aqui. ainda mais se os que tenho aqui dentro, tenho dentro do aparelho também, e sempre que eles ligam eu sei... e se não atendo na hora, retorno, chamo... toda vez que o telefone toca um botão vermelho se acende em mim, toda vez que atendo ao telefone me coloco ao seu lado, te trago bem aqui...

domingo, 24 de outubro de 2010

mais um dia comum, em tempos comuns e redundantes.

choveu muito, muito mais do que se esperava. disseram na televisão que choveu o que era esperado para todo mês de outubro. a água subiu muito rápido, não deu tempo de salvar nada. estavamos dormindo e quando vimos a água já chegava no andar de cima. subimos na lage da casa pra não morrer afogados. não pudemos pegar documentos, fotografias, papéis importantes, roupas, móveis, nada. tudo ficou molhado pela água da chuva. perdemos tudo. teremos que recomeçar, já que era tudo o que tinhamos, tudo o que tínhamos estava na nossa casa que foi inundada com a grande quantidade de chuva que caiu ontem de noite. choveu muito, mais do que todo mundo esperava. ninguém imaginou que a água fosse subir tão rápido, que fosse chover tanto assim. agora não temos as nossas coisas, não sabemos o que poderá ser salvo ou recuperado, já que está tudo molhado. muito molhado. vamos ter que começar do nada, do zero, ter que reconstruir nossas vidas, recuperar nossas coisas. choveu muito.


versus

a chuva. nossa casa, não há mais nada.



uma questão de estilo ou uma necessidade de se fazer entender por meio de muitas palavras e redundância. fica a dúvida, fica a dica, fica a sensação de não saber se há como saber a hora de parar, de dar fim sem deixar que se arraste e deixe um rastro ruim uma explicação, sim, explicação, que poderia ser mais simples e mesmo assim entendida. entediada.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

...

você consegue ver meus olhos, consegue vê-los agora. eu deveria rir alto. eu deveria rir. sussurrar em teu ouvido. eu deveria gritar e por dentro grito, um grito mudo, tão mudo quanto as marcas que ficarão por aqui. incandescentes. um coração que pulsa na mesinha de centro, ao lado de bebidas e pó. um copo d'água, me veja um copo d'água por favor, é onde vou colocá-lo, e beber até o fim, até a gota que desce do olho. minh'alma está arqueada, sem ar, já sente o rasgar da pele pós o depois que há quando se fica e se vai. há uma náusea dentro dos meus pensamentos, que vem da música que se repete no quarto ao lado, átrio ao lado. um pequeno compartimento. eu não pude evitar. eu não pude. minha mão se abre, impreterívelmente se abre, vaza, vaza todo meu corpo mole e flácido de dor e gozo pelos vãos dos meus dedos.

particulaseunempedaçospartesencontrosseunemsesoldamsesolidificamerompemesaemevoltameeleeeuépartedotodoquesomos

e agora, o já, se foi. segundos e a explosão se dá. jorra. quente. segundos. fim. explodem partes indivisíveis de um ser. eu deveria ser mais feliz, ouço e digo ao mesmo tempo. sou eu ou é você. sou você ou é eu. 


a música se repete, repete, repete. "por baixo das suas unhas, sem gerar sangue, é onde quero estar. onde quero estar no dia de hoje, já é noite. coisas que não sei. vou cair." e repete.


 as marcas incandescem de dentro pra fora, água fria, água morna, água quente, nada. já estavam e ficarão. ao toque de um novo Midas surgem. ressurgem. não passará. como o tempo que dá voltas em seu eixo, tentando encontrar a saída de um lugar circular.


sempre.


é tarde. demais. demasiado. tarde. 


há um depois que não queremos conhecer. eu.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

diga aonde dói...

...que lhe direi se o que você sente é dor. podem ser várias coisas, basta olhar melhor. basta tentar saber com honestidade como andam as coisas por ai. e por falar em honestidade... como anda sua honestidade? como ela anda se comportando com você? já que mentir se tornou a praxe dos dias atuais e nos acostumamos e mentimos e mentimos sem medir, mentimos todos, todos os dias, para todos, para nós. e mentira é coisa feia, me ensinaram um dia, e verdade é que é bonita, me disseram também. mas dai eu já vi mentira bonita e verdade feia. e dai? como é que fica? como é que faz? acordar, dormir, escovar os dentes, olhar no espelho, olhar, no, espelho, olhar, ver, não ver, mentir, honestizar a mentira, mentir honestamente. e vai seguindo o baile e todos dançam muito bem. e depois eu penso em amor. penso em amor, em amar o amor. penso em amor. volta e meia eu o encontro por ai. numa rua, numa quebrada dessas que a gente passa e nem vê. e eu nem sei se é amor. mas tudo bem também, pois minha intuição intui que é. e está bom assim, minto pra mim. é verdade? é mentira? nem verdade, nem mentira? o que é então? uma dor. uma dor? me diga aonde. me diga como dói. me diga quando começou, se diminuiu, se aumentou, se ardeu, se sangrou. amor. dor. or. e segue a vida a passos largos, largos e rasos. segue pois é assim que tem que ser. seguir. ir. devir. deve-ir. segue-se o que deixa rastro, o que dá pra seguir ou se perde, perde-se o que dá pra perder. tudo muito confuso. entre verdade e mentira. entre dor e amor.

domingo, 3 de outubro de 2010

a felicidade que dói

pois estamos acostumados a segregar, a nominar isso como isso e aquilo como aquilo, mas esquecemos que as coisas não podem ser circuladas e dentro deste circulo ficar. já que isso pode ser também aquilo e aquilo um misto de coisas. e quando descobrimos dores onde não deveria doer, e quando aprendemos com isso, fica mais fácil viver. saber que onde há felicidade pode haver a dor da escolha, saber que a descoberta pode nos causar saudade, saber que dentro de um sentimento há uma gama de pequenas partes. saber que não somos apenas isso que mostramos, que temos mais recheios do que podemos imaginar, nos faz mais humanos, nos faz mais entende(dores) de nós mesmos e por consequência entendedores dos que se assemelham.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

só(me)doumal e curita

bem marechal engarrafada até o gargalo, carro saindo pelo ladrão, saindo não, ficando pelo ladrão, porque ali todo mundo entra, mas ninguém sai. calor, tentando condicionar o ar a entrar pela janela, mas o ar de curitiba também não quer ser "ar condicionado". olhando pros lados, pode ser moto, pivete, piriguete, ete, ete, ete. pista do meio, o cara da frente e o de trás querendo virar na próxima, eu no meio daquele miolo de lata e estresse. pisquei o olho e um guardinha de trânsito apareceu na minha frente. tipo do nada. pensei, vai me multar, porque na real você não precisar fazer nada pra ser multado, eles fazem por você. cidade de primeiro mundo. cidade de-pri-me(nte). abaixei ainda mais o vidro e quando vi o cara, meio corpo pra dentro do carro. tinha uma cara conhecida o desgramado. nem ousei perguntar. o uniforme era "uó", não ousei nada. ele virou pra mim e disse: - Nana, se encontrares outro motorista que dirija bem, salvarei curita das chamas da destruição. ele falava deste tipo, esquisito que só vendo. sabia meu nome. multa na certa. pisquei de novo e ele estava dentro do carro, sentadinho, me olhando. aquela cara não me era estranho. quer dizer, ele todo era estranho, mas parecia um estranho conhecido. ficamos amigos, ele nem acreditou que eu era nascida e criada aqui. piri-ri-poro-ró. - ... e aqueles que nunca dão pisca? - ...e os que dão e não viram nunca? - e os que dão aquela abridinha de escânia pra virar a esquina? - e os que acham que a rua é deles e que eles é que precisam chegar logo?... horas... andamos meia quadra. no fim ele me olhou bem sincero. até me assustei. sincero. - vai lá naninha (sim, já estavamos íntimos), acha um bom motorista que a budega tá salva. pisquei de novo e ele desapareceu. acho que cochileiclichê no trânsito, eu acho. nem me lembro se por via das dúvidas ele comentou alguma coisa tipo 2012. sei lá... só sei que comecei a olhar os outros motoristas e me lembro que quase chegando em casa, me deu uma dózinha de curita... achar um bom motorista, de onde eu conheço aquele cara... (buzina e grita) - sai da frente seu fidapuma, não tá de escânia, não!!! (e seguiria em frente, não fosse o engarrafamento de 10 ou 11 carros lerdos na marechal).

terça-feira, 17 de agosto de 2010

hoje, por hoje, hoje...

resolvi mudar e deixar pra lá tudo o que me incomoda, pensar em ser feliz um pouco, pra que chorar se hoje está tudo bem, pra que chorar pelo que já passou ou pelo que ainda está por vir? resolvi sair da casca em que me encontro, me desencontro de mim... resolvi que a vida é muito mais do que uma depressãozinha por excesso de peso, por falta de trabalho, por excesso de apego, por desapego exagerado... percebi que existe um detalhe da vida chamado tempo, que passa, que passa, que vai, e que este detalhe tão pequeno é grande, nos dá e nos tira. que este tempo com a nossa colaboração faz as coisas mudarem, faz as coisas passarem, nada fica, por melhor ou pior que seja. você já sentiu o vento na face? ele nunca está, sempre vai, vai em frente, talvez saiba o que deve ser feito e vai. resolvi tomar um pouco deste vento e trazer aqui pra dentro. resolvi mudar algumas coisas que podem ser mudadas e deixar pra lá as que por enquanto, não podem. tenho me inspirado em outras pessoas, que tem problemas semelhantes aos meus, tenho visto semelhanças e me deixado dar o primeiro passo pra um outro lugar, onde certas coisas talvez não importem mais, não da forma que sempre me importaram.

terça-feira, 27 de julho de 2010

eu nunca serei como vocês...

tem dias que isso não me incomoda, não quero me amoldar. mas tem dias que quero, quero muito, com todas as letras, com todas as carnes expostas, dispostas a ser o que todo mundo é, simples e complexo do jeito que as pessoas são, com mais qualidades do que defeitos, com mais vontade do que desgosto, com cabelos lisos e brilhantes, com pouca quase nenhuma celulite, com uma caixa cheia de remédios que curam tudo, com um amor que me espera e outro que me deseja. tem dias que quero ser comercial, quero ser televisiva, quero a mentira deslavada, desalmada, desarmada das coisas reais. tem dias que olhar no espelho não ajuda, quero minha pele passada pelo fotoshop. quero que todas as roupas fiquem boas, quero levar cantada em todas as obras, das literárias as concretas. quero o que todo mundo quer em alguns dias. nos outros eu posso pensar, posso escrever, posso olhar pra dentro, posso ser diferente, ter na cara uma ou duas espinhas. nos outros, mas não hoje. hoje não. só hoje, que pode ser amanhã ou depois, surge essa vontade de ser o que os outros esperam de mim, o que minha mãe sempre quis e o que meu pai ia aprovar sem nem pestanejar. surge de um fundo que eu nem sabia que estava ali essa vontade, que não dá pra sulfixar em zinha, que não dá nem ao menos pra aguentar. que não dá, que tira. e se eu chorar. não tem lágrima que vá lavar uma vontade tão deslavada. e se eu gritar. não tem grito que vá expressar uma vontade tão sem palavra. e se... se e somente se. não há fadas, não há coisas mágicas, não há nada que possa acontecer num click que vá mudar, agora!, o que sou. e isso deveria me bastar. mas não hoje, hoje nada me basta. hoje quero fugir de mim, ser o que nunca serei, porque talvez não seja dessa massa que eu seja feita, porque talvez eu nem saiba o que sou. mas hoje... faltam poucas horas. vá para o banheiro e veja se acha alguma coisa naquela sua caixa que não cura tudo, mas tem alguma coisa. passe uma massa corrida na cara e durma maquiada. tome um drink forte. tire umas fotos "caseiras". sorria na frente do espelho. coloque um "pretinho" básico, um cinta. faltam pouca horas, continue. minta. finja!!

domingo, 18 de julho de 2010

AO HOMEM PIANO

há dias em que queremos esquecer. desde a dor, até o desengano, a falsidade, a traição. há dias em que o que mais queremos é poder apagar o que de ruim nos aconteceu. mas o que há e houve de bom, quem quer apagar? quem quer deletar da memória quem são as pessoas que nos rodeiam, quem foram os que não estão mais, as coisas que nos aconteceram, quem somos afinal? quem quer ter todos os arquivos da memória esvaziados, sem opção de escolha de quais devem ir e quais devem ficar. escrever num papel e liquidificar num aparelho que liquidifica-a-dor não me fez esquecer, fez lembrar ainda mais, acender a dor de uma memória que não deveria existir. mas e se ela não existisse, quais seriam as minhas balizas? como seria vida se nos fosse dado a chance de guardar só o que queremos, seletivar. já não são de todo verdade as que guardamos. mas e se não tivessemos o que recordar. fica a sensação de que iriamos querer desde as piores pra ver se delas as melhores retornariam. fica a sensação de que iriamos forçar a mente até lembrar. acordar de manhã e ver no seu próprio rosto alguém que você não conhece, não reconhece. olhar para o lado e ver alguém que te olha com ternura e não saber de onde ela vem. o que eu quero esquecer? o que eu quero lembrar? o que eu quero? são as perguntas que ficam. ficam ressoando dentro de mim como um piano. e se a cada tecla uma memória fosse apagada, que melodia você iria querer tocar? e se a cada tecla uma memória fosse lembrada, que melodia você ia querer escutar? ao homem piano, obrigada por tocar a melodia que hoje eu queria ouvir...

pedaços de um todo

pedaços de papel, uns recortes. desde aquele dia viva assim, recortando e colando, escrevendo e apagando. tinha essa possibilidade. inúmeras. todos os dias reconstruia uma parte do que fora perdido. todos os dias tinha o prazer de reescrever a sua história em um caderno. desde aquele dia em que resolvera viver. desde aquele dia em que o que lhe era essencial havia escapado por algum lugar aberto que ele jamais soube onde ficava. desde então percebeu que haviam possibilidades, propostas não para fazer o futuro, mas para refazer seu passado. desde que pensou que fosse enlouquecer da dor vazia de não saber onde estavam os "seus", o que lhe doía e o que lhe agradava, desde que não soube nome, endereço, telefone, quem eram esses ou aqueles, quem havia lhe cumprimentado, a idade, o dia, mês e ano. desde então passou a criar. recriar em páginas brancas as que já deveriam estar amareladas. pegou daquela notícia o dia em que nasceu. daquela foto a mãe. do filme o pai. do encontro casual no elevador a primeira namorada. inventou o motivo pro corte na testa, o do joelho. construiu dores, alegrias, lembrou do gosto e cheiro das coisas, rememorou na imaginação sua vida. recortou e colou inúmeras páginas, tapou buracos, pedacinhos dos mais escondidos. mas em todas as letras coladas, as únicas que se fixavam ao papel era V, A, Z, I, O. sempre na mesma ordem, sempre formando a palavra que ele bem sabia o que queria dizer, o que queria gritar. queria poder se recortar, se colar num outro momento, num outro lugar e tapar o buraco por onde elas havia fugido, por onde haviam escapado suas memórias. e por onde passava o que via eram possibilidades. as de ser, de fazer, de ser. não que não fosse, era. mas queria poder ter sido. do borrão para frente. em frente. havia dias em que se via feliz, crendo nas suas montagens. embarcava na vida que poderia ter sido. mas havia aqueles, em que acordar era a dor de não saber, de não ter, de não ser, mesmo que todos afirmassem que era. havia dias ruins como estes, em que ele não acreditava que palavras juntas, coladas em umas folhas quaisquer pudessem formar mais do que aquela palavra que teimava em não querer lembrar.

minhas imemórias...

acordou, olhou no espelho e não se reconheceu. não que estivesse velho demais, não que estivesse acabado, mal dormido, não que estivesse. não estava. eram traços que não reconhecia. era alguém que a sua memória não recordava. rodou à esmo, revendo fotos que nada diziam, lendo bilhetes e cartões que não recordavam mais do que palavras, palavras avulsas das quais nunca havia ouvido falar. abriu portas, janelas, guarda-roupas, guarda-coisas, porta-trecos, não havia nenhum lugar que pudesse abrir e ver guardadas suas memórias, suas lembranças. era alguém que no momento presente não era. sem passado. passado para trás por sua mente, que numa noite ou num dia, não sabia ao certo, havia apagado tudo, esvaziado as gavetas, queimado os arquivos, sem lhe pedir licença, sem permissão. agora caminhava ladeira acima, ladeira abaixo, atravessava ruas, lia as placas. palavras. comia, bebia, tomava banho todos os dias, trocava de roupa, andava, pensava, falava. nada disso havia esquecido. necessidades básicas. prioridades. se tivesse um diário, se tivesse escrito um livro, se. não. nada. se o céu estava azul, se o céu ficou nublado. nada. saiu sol. parou de chover. somente o que há e nada mais. laranjas podem ser doces ou azedas. só. algodão doce é sempre doce. só. café quente. só. cheiro. só. sabor. só. só. e só. nada lhe levava dali, nada o tirava dali. espremeu fundo os miolos, corrompeu cada pedaço do seu cerne, cavou, cavucou, cutucou com todas as varas que pode, vestiu todas as roupas do armário, andou por todos os cômodos, olhou por todas as janelas. em nenhuma delas estava o que procurava. em nenhum lugar, nem dentro, nem fora. aquele ele que ele deveria conhecer havia partido, se partido sem deixar pedaço que pudesse colar, colocar no lugar do que não mais ali estava. abriu a porta que dava para a rua, correu pra cima e pra baixo, gritou. gritou. gritou. gritou. a voz. estava. andou sem rumo, sem verdade nenhuma, sem novidade pra contar. desesperou-se, olhou na cara das pessoas, uma por uma, uma à uma, uma e outra. abraçou aquela ali, essa aqui, abraçou todas. quentes, frios, gelados. e nada. não havia o que esperar. nem dos mais cálidos, nem do mais severos. não havia mais o que esperar. voltou a mesma porta. entrou e fechou-a com uma certeza diferente das que tinha, não tinha até ali. fechou as janelas, as cortinas, as palavras pra dentro do peito estraçalhado. desejou o que quis esquecer. desejou as que o teriam matado tempos atrás. desejou. apagou as luzes. apagou.

terça-feira, 13 de julho de 2010

mundo cão

dia do cão. vou ficar por aqui um pouco, descansar. passei o dia todo andando, andando de um lado para o outro. eu praticamente sempre faço isso. espera um pouco ai, meu chapa, espera um pouco que já damos jeito nisso. hoje o movimento tá fraco. o bicho tá pegando pro meu lado. tem dias que eu não paro, faço as três quadras bem rapidinho, caso contrário não dou conta. mas nem tudo é fácil, nem tudo é tão simples quanto parece, meu irmão. tem uns que nem me ouvem, é o famoso "o cão late enquanto a caravana passa". eu ali, latindo e eles lá, passando. mas eu faço a minha parte, que não é pequena, que não é pouca coisa não. pensa que é bom ficar de quatro o dia todo. mas é assim que as coisas são, uns ficam de três, outros de dois e outros de quatro. queria ver se fosse você. puta, uma fome do caralho. puta, que fome. foda ter que ficar pedindo comida, isso é foda. preferia poder me virar de um outro jeito, mas até que tá dando certo. melhor do que, bom, sei lá. vamos deixar como tá pra ver como é que fica. três quadras, é simples. três quadras pequenas e uma bem pertinho da outra e tá tudo resolvido. obrigado. obrigado. senhor, por favor! obrigado. o. b. r. i. g. a. d. o!!! mas também, tanto faz obrigado, vai se fuder ou salve o senhor. eles são assim, indiferentes, individualistas. no máximo um que "bunitinho". que "bunitinho" não enche barriga de ninguém. tenho que me virar. fazer essa cara de cachorro que caiu da mudança e o escambal. que merda, caiu no chão, que merda. fazer o que. vamos lá, mais uma quadra, mais uma, mais uma. e que se danem os outros e o papo de corporativismo. é o que se tem por aqui. aliás, é a única coisa que há por aqui. eu não estou traindo meus companheiros, não estou. é só uma questão de sobrevivência. e depois eu falo em inglês que não ofende tanto., digo hot-dogue! mas eles dizem que é cachorrada minha. que merda! mas deixa eles ficarem dois-três dias sem comer, deixa a barriga roncar que nem trator. vão comer o próprio rabo salivando!! que merda. mas deixa eu ir, deixa de conversa fiada. tem um grupo grande chegando e eles sempre são bons comigo. e tem até criança no meio, criança é bom, você faz alguma gracinha, abana o rabinho e eles já se perdem e derrubam alguma coisa grande no chão. criança é melhor. fui.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

ONDE SE ESCONDE A VERGONHA

ANDAVA sozinha pelo parque. ofegante, encalorada. bolsinha bem pequena, à tira-colo, dentro batom vermelhinho brilhoso, moedas de baixo valor, telefones anotados em papéizinhos. pra lá e pra cá, como peixe na corrente. gostava mesmo de ficar perto da cachoeira artificial, não se importava com esse tipo de artificialidade. aquele barulho ensurdecedor a levava para um outro lugar, um lugar chamado pelúcia, onde tudo era quente e macio. gostava do quente e macio, se sentia bem neste lugar, se levava para lá constantemente. sentiu a presença do outro, sentiu-se tentada a olhar e olhou. a única coisa que viu foram suas mãos, próximas do meio, segurando o tal de leve. aguou-lhe a boca. desejou. estava acostumada, mas desejou. sorriu desajeitada. mostrou os dentes pouco limpos, não alinhados, normais. procurou rapidamente um canto mais deslocado. insinuou a intenção e partiu. ainda lhe restava resquício de vergonha. chegou depressa, abaixou-se escondidinha, querendo diminuir a volúpia. tomou-o das mãos do outro num movimento de ampla destreza. abriu a boca, dando jeito de recolher os dentes, desnecessários. chupou com toda saliva inclusa, chupou em ó, em ú, quis fazê-lo em todas as vogais. tinha pressa, lembrou-se. viu o tempo escorrer por entre os matos secos e empoeirados. e ele ali, sem entender muito, mas olhando. chupou e mordeu ao mesmo tempo, tinha pressa. a boca se encheu daquele gosto vermelhinho que ela sabia decor. escorreu o liquido pelos cantos, ela aparou com os dedos. viu o fim próximo. levantou com a "dificuldade" do desequilíbrio imposto pelo sedentarismo diário. estralaram ao mesmo tempo coluna e joelhos. olhou furtiva para os lados. arrumo-se toda. restava-lhe algum pudor e pouca quase nenhuma vergonha. não costumava fazê-lo em público, mas sabia que não suportaria a vontade, mais tarde não se perdoaria se não tivesse feito. caminhou olhando para os lados. ajeitou-se mais um pouco, ficou com a impressão de um batom não proposital. passou a mão copiosamente pela boca, até deixa-la verdadeiramente vermelha. olhou para os lados uma dúzia de vezes e largou na lixeira, como quem não quer nada, o palitinho de sorvete, lambuzado, o detrito de seu pecado. caminhou sem medo. sem provas, sem culpa.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O FIM

ELE chega de viagem, malinha na mão, faceiro. abre a porta.
ELA já lhe atira umas palavras: - TÁ TUDO ACABADO!
ELE quase lacrimeja, tenta sem palavras argumentar. pensa, é inútil. com a mesma mão que fechou a porta volta a abri-la.
ELA nem brava, nem contente: - não vai nem pestanejar?
ELE abaixa a cabeça e sai.
ELA, admirada, corre até a janela com o papelzinho na mão: - a lista, a lista... grita
ELE baixa a cabeça mais ainda.

terça-feira, 22 de junho de 2010

DE QUANDO VOEI MAIS ALTO

ela sempre se impressionava com o vôo dos pássaros, era coerente, era crível. eram tão pequenos, dotados de asas maiores que o próprio corpo. fazia todo sentido que voassem, bem alto, planando de vez em quando, libertos pelos céus afora. gostava de observá-los por horas, de imaginar o vento batendo na cara, no corpo, ter asas, abri-las e usá-las ao seu favor. era uma admiradora. gostaria de voar algum dia se fosse possível, mas com asas próprias.

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com o passar do tempo voou, muitas vezes. ia dali pra cá, de cá pra lá. ia, voltava. a cada vez criava expectativas, frustradas. aquilo chacoalhava, tremia, fazia barulhos, dava trancos, não havia vento na cara, no corpo, não havia a tal libertação. mas a cada vez que levantava ou aterrissava cultivava um medo crescente. aquilo não deveria voar, era grande demais, pesado demais, barulhento demais, não deveria voar. e a cada uma delas mais e mais.

****

mais um vôo, sentou na poltrona, afivelou o cinto, retirou do bolsão o encarte com as instruções de emergência, olhou bem onde ficavam as saídas. era tudo inútil pensava, quando cair, pronto, não há nada mais que possa ser feito, acabou. mas era precavida, lia, observava as instruções dos comissários, inclusive no fundo d'alma desejava que uma emergência acontecesse, mas não no ar, em solo, que o vôo fosse cancelado, que ela tivesse que ir de ônibus, carro, ou qualquer outro meio que não o ar. mas nada acontecia. aceitou a bala que lhe foi oferecida, adoçou a boca amarga pela ânsia de sair daquele lugar. aceitou a revista de bordo, mas não pode ler, devolveu. aceitou os fones de ouvido, gostava de música, isso sim a fazia voar. passeou pelos canais, escutou bons sambas-canção, cantou para dentro. zapeou um pouco mais e algo lhe chamou a atenção. apertou o ouvido pra entender melhor. ficou atenta. olhou para os lados pra ver se mais alguém escutava. apertou os botões de controle da poltrona e voltou ao mesmo canal, onde duas comissárias conversavam. falavam da vida, do próximo destino, das férias. da família que ficou, do filho que dormia. do uniforme apertado, do comissário novo, do aumento salarial que não vinha. ela ficou ali, olhando de quando em quando, pra ver se ninguém estava ouvindo que ela ouvia a conversa dos outros. esqueceu que estava sobre as nuvens, esqueceu que não deveria um avião daquele tamanho voar, esqueceu de tudo. se entreteve. se entreve muito, até que ouviu atravessar a conversa um chamado agoniado do comandante da aeronave. ele dizia que era uma emergência, código 974. as comissárias passaram rapidamente pelo corredor, foram perto da cabine e fecharam a cortina que dividia passageiros e tripulação, e lá dentro não se sabia de mais nada. ela olhou para o lado, alguns dormiam, outros liam, outros ainda conversavam. tudo ao redor passou a desfocar perante sua visão. abriu a janelinha, olhou para fora. olhou. deixou cair os fones. não pensou em grandes coisas. abriu o anel e sorveu todo o pequeno conteúdo de uma só vez. reclinou a poltrona, recolheu do colo o fone, colocou novamente nos ouvidos e soltou-se em vôo alto, o mais alto que já havia voado. tudo em câmera lenta. lá de longe, mais tão longe que seria impossível alcançar, ouviu novamente a voz do comandante, ele dizia às comissárias: emergência, código 974 pro co-piloto também, ele está morrendo de fome. descobriu que quando se voa como ela voou, não há como abortar, se vai cada vez mais alto.

terça-feira, 8 de junho de 2010

NÃO TE AMO MAIS...

que seja dito que sempre te amei, mesmo que a troca tenha sido pouca, mesmo que tenha sido via de uma mão só. mas mesmo assim te amei faz uns trinta anos, sempre te bem disse, sempre te acolhi, te absorvi, te desenhei em meus cadernos, recheados de corações pra ti. tirei fotos com você, quantas nem posso contar. te escrevi poemas, letras e mais letras, te escrevi. te amei muito mais do que poderia amar. mas você sempre fria, sempre dando a todos o que não dava pra mim. sempre ignorando a minha presença, soberba. com teus presentes aos outros filho, que nem de ti saíram. e eu num canto, aceitando de bom grado as migalhas que desde sempre aprendi a receber de ti, jogadas na minha cara, como maquiagem em noite de festa. assim me fiz. mas ultimamente as coisas mudaram, todos os dias acordamos e um dia desses resolvi também acordar. olhei pra ti e vi uma monstradisforme, que não tem nada de mim, que não me diz quem eu sou e que com quem nunca me pareci. e de lá pra cá as coisas tem ficado assim, insustentáveis, irreprogramáveis, irremediáveis. convivemos porque é preciso. estamos aqui, não é? convivemos porque é um mal necessário, desnecessário dizer que não é mais por ti que estou aqui. e cada vez mais difícil te engolir, remédio amargo que deve ser tomado à seco dia após dia. e venho amargando de lá pra cá, desde que resolvi te olhar na cara e dizer que NÃO TE AMO MAIS. que talvez fosse tudo mentira, que nem sei se ao menos algum dia te amei de verdade, te dizer que na verdade, só estou acostumada com você. que não suporto o teu jeito, as tuas sem-gracices, as mesmices, as rabugentices e tantas outras ices que tenho preguiça de descrever. não te amo e ponto final. e mesmo que chore e mesmo que grite e mesmo que venha me dizer que estou levando as coisas prum triste fim. mesmo assim eu volto a dizer, não sei se algum dia te amei, mas hoje, não te amo mais. e repetirei quantas vezes for necessário, quantas vezes puder e quiser. espalharei aos quatro ventos o mal que me fez. as mazelas que encontrei por tua conta, pelas vezes que me perdi e você nem ai. tenho mágoas encravadas no coração. tenho medo do que me transformei devido à sua supervisão, aos seus ensinamentos. eu não tenho vontade de falar com ninguém, não tenho vontade de sair de dentro de onde você me prendeu. não sei mais como é sorrir aberto, como é ter alguém que me gosta por perto. não sei. e tudo isso por que, porque tive que nascer de você. e peguei teu jeito e teu mal humor e peguei o teu jeito de vestir, de andar e de comer. porque me fechei no exemplo que tive e hoje aqui estou. sem rumo, sem amor. não te amo mais, não quero falar com ninguém e muito menos com você. e teu nome apaguei da minha lista, até da lista negra eu te apaguei, me desapeguei das coisas pequenas, me despeguei de você. e teu nome não quero mais em mim, o teu nome eu esqueci e daqui pra frente, não sei se vai ser diferente, mas pretendo te chamar só de CU. não mais o nome inteiro, já que aos pedaços me fez. daqui pra frente vou te ignorar, como sempre fizeste comigo. daqui pra frente, eis que aqui estou, despatriada, desaforada em uma cidade que nunca me amou...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

era um convite para trabalhar em um restaurante ou uma nave espacial ou não fazer nada...

ele me veio com o convite, pra trabalhar em um restaurante. lavava todos os dias, de frio ou de calor, nos dias mornos, nos gelados, lavava, uma beleza, ele me viu, pela janela, passou de helicóptero, bem perto, rasante, me viu, lavava a louça de manhã bem cedo, todo os dias, jogou uma carta que era na verdade um convite, solene, letras douradas ou prateadas, dependia de onde se olhava, no convite dizia que eu estava sendo convidada pra lavar louças no seu luxuoso restaurante de uma comida caseira requentada, muito requintada. era chegar e lavar, sem afobação, sem drama, sem nada, nem detergente, nem esponja, sem nada. eu lavava a louça de casa, lavava todos os dias, de graça, sem graça, mas lavava. com convite, com letras brancas ou esverdeadas, papel fechado, selado. e acabei a lavação das que estavam na pia lá de casa, olhei no fundo, a água parada, não descia, não escoava pelo ralo onde me disseram um dia que era lugar de água escoada. tinha restos de comida e sonhos, os de nata. tinha restos de comida acumulada no fundo e não escoava. tenho nojo, eu respondi em papel timbrado. pena ter nascido tão pobre, não tem direito a nojo, não tem direito à nada, nasceu pobre ele me disse, não deveria ter nojo de comida restada. eu disse pra ela, menina pobre, pobre menina, não pode ter nojo, não de resto de comida e água. não podia ter nascido tão pobre, ele me disse. enriqueci numa sentada, da noite pro dia ganhei uma bolada e fiquei rica. continuei com o nojo, de comida, resto dele e água, caso precisasse sair dali depressa, caso precisasse de uma desculpa para largar aquele emprego e aceitar um que me fizesse rica da noite pro dia, caso precisasse aceitar emprego de lavadora de louças em restaurante ou cafézinho. cafézinho eu disse, prefiro trabalhar lavando louça em um cafézinho, tem pouca comida, quase nada. e lavei pratinho e colherinha e xicrinha e o resto de comida era tão pouco que era farelo, comidinha. terminava rápido, não que fosse esperta, não que os clientes fossem poucos, não que fosse rápida em lavar coisinhas, mas acabava rápido porque as naves da redondeza da praça quadrada eram apressadas, tinham seus horários, e eu, eu tinha que voltar pra casa. aceitei o convite pra trabalhar em uma nave espacial, todo dia, tinha que ser bem precisa, tinha que ter disciplina, mas eu tinha, tinha tudo, não precisava de mais nada. fiquei em casa, olhando o helicóptero que se aproximava e lançava tiros contra a minha janela e me acertava no peito e eu não respondia que sim e nem que não, ficava em casa. louça na pia esperando pra ser lavada, eu ficava em casa.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

framboesas no jardim

tinha ele e tinha ela. ele do lado de dentro. ela do lado de fora. tinha ele e ela. do lado de dentro ele andava de um lado para o outro, tirava um mato daqui, uma erva daninha dali, mexia na terra, sujava as mãos, suava e entrava no fim de tarde. do lado de fora tinha ela, andava de um lado para o outro, trabalhava por perto, caminhava do ponto de ônibus até a empresa, voltava na hora do almoço, na hora de ir embora. se olhavam de canto de olho, nunca nos olhos, nunca mais do que alguns segundos. não sabiam porque não se olhavam, mas não olhavam e era o que bastava. o que encantava ele era a liberdade que ela tinha, solta, mundo à fora. à ela encantavam as framboesas, presas na planta, vermelha, apetitosas e alegres. desejava estar ali dentro. desejava estar ali fora. não se olhavam. o tempo alheio a tudo isso, passava. ela passou e não viu mais framboesas e muito menos ele. passou vários dias, olhando, cuidando, buscando aquele rabo de olho. nem nada. depois de dias passou a não olhar mais. num desses, chegou em casa, dormiu e sonhou. no sonhos estava ele, olhando nos olhos, desinibido, liberado. sentado num banco, na divisa entre o dentro e o fora. ela sentou ao lado. olhou para dentro e viu as framboesas, milhares delas, se aglomerando. não consegui tirar os olhos. depois de uma conversa que ela sequer conseguia escutar, tomou um fôlego de coragem e disse, não consigo entender como uma pessoa não come as framboesas do próprio jardim! ele, olhando ao redor, admirado, que jardim, que framboesas? todos os dias tenho que tirar essas milhares de erva daninhas que se acotovelam por ai. preferia a liberdade que você tem. espantada ela retruca, TRABALHO, minha prisão de todos os dias! eram janelas tão diversas, que seriam incompatíveis num mesmo mundo... numa mesma época...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

CIÚME, DE VOCÊ...

No rádio, "mais é ciúme, ciúme de você...", ela ouvia calada, não estava tão assim para cantar. 15 dias que ele não aparecia em casa. estava cansada. cansada de ter que subir na boleia pra poder passar horas junto. pra ter alguma coisa pra dividir. ter o assunto, ter o que contar e o que ouvir. de começo adorava, tudo era melhor, lembrava. o cheiro, o calor, a companhia, os assuntos, as novidades, as cotidianices. gostava de tudo o que estava dentro. se sentia parte do todo. depois ficou cansada. estresse, dizia. rotina estressante. excesso de cobrança, excesso de trabalho, falta de paciência, falta de infra estrutura. reclamações, uma atrás da outra. e mais delas, e outras. todas sempre parecendo a mesma. deixou de ir. gostava de estar ao lado, gostava do que fazia, mas deixou. voltou a rotina doméstica. casa, comida, roupas lavadas, pó dos móveis, roupa passada. voltava de pouco em pouco trocar as coisas da mala. despejava sobre a cama, de lençóis bem limpos e passados, nem ligava, depositava a roupa suja, fedida, poeira, suor, falta de banho. ela recolhia e colocava no cesto, tão simples. recheava com coisas limpas e bem passadas. não ligava. se colocasse esterco, de certo dava na mesma. mas ela elegera essa vida, fazia porque gostava. ela vivia entre o passado e o futuro. fazia planos, que se desfaziam com o presente. ausente. relembrava. quando começaram, ela botou até apelido nele. TIDINHO. gostava mesmo do cheiro, da textura, até o ronco. mas depois se afastou, já não tinha mais intimidade. era um estranho conhecido. dos 15 foram 2o, dos 20 para um mês fechado. depois a cada dois, cada três, quatro, subia de um por um. e depois dos cinco parou de contar. vinha de vez em quando. mas também já não fazia diferença. ela estava, impreterivelmente sozinha. e depois de tudo, como se já não bastasse, deu de fazer entrega meio perto. não dormia em casa quase nunca, mas vinha dias pro almoço, outros pro jantar, outro prum lanche, outro só para assistir ao jornal ou um jogo de futebol. o dinheiro estava entrando, dizia. chamavam a qualquer hora. e ele ia. satisfeito. seu trabalho, seu ofício. se sentia valorizado, de certo. virou um borrão na casa. cozinha, banheiro, quarto, cama, sofá, porta, porta, porta, porta. GARAGEM. lá era certo. estava quase sempre por lá. e a coisa foi indo, se arrastando. ela não fazia menção de briga ou qualquer tipo de reclamação. e o tempo. tempo e mais tempo. um dia o viu velho, gasto. ela não se via assim. ele passou a dormir na garagem. pensava que poderia ser chamado a qualquer momento. o serviço era eficiente e tão procurado porque era rápido. não queria ter que levantar, trocar de roupa, sair, fechar a porta, ligar o motor e só então sair. dormia dentro do veiculo. dali dava partida e se arrancava. começou a implicar com coisas que não faziam sentido. ela começou fazendo pouco caso. e aumento. dos dois lados. briga todo dia. na hora da novela. na hora do noticiário. briga por cima de briga, já não sabiam mais porque brigavam. chegou dia que não se suportavam. os vizinhos reclamavam, as brigas não tinham hora, incomdavam. ela sentou na mesa, sorveu um longo gole de café amargo e preto. procurou onde estava o conhecido. não encontrou, não tão rapidamente. molhou a boca novamente. tenho ciúme. ele na geladeira, fuçando. ci-ú-me. ele pegou copo, encheu de suco, sentou na mesa. entendo. antes era mais fácil, melhor, mais bonito, cheiro bom. depois a vida na estrada, pra lá e pra cá. sofrido, mais digno. depois só me lembro de ciúme. ciúme desses que torna as coisas impossíveis. ele coçou a cabeça, tomou gole. pensou bem na palavra, que não vinha. não queria que fosse desse jeito, tinha planos, futuro. tinha vontade de ficar, de ser como era pra ser, mas não tem jeito. deu suspiro, deram. é ciúme a minha doença. me corrompe. é o que tenho no momento. ele quase falou. ajeitou os cabelos que restavam no topo da cabeça. escolhi ficar com ele. pulou na mesa. susto, raiva, dor de barriga. ele? era o que restava aos que estava fora por muito tempo, um outro, o tal "ele". nem nome tinha, assim como já deveria ter esquecido o dele. quero que você vá embora, vou ficar com o tidinho. desentendimento. dos puros, dos breves. com o tidinho? é dele que tenho ciúme, meu filho postiço, meu amor, minha vida. quero estar na boleia todo dia, dormir ali dentro. nós, não faz mais sentido, pega a casa, o dinheiro no banco, compra outro. quero o tidinho. ele não soube se o tempo parou ali mesmo ou mais adiante. borrão. era tudo.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

DEVIR

a sensação de tudo dito, de tudo feito, de tudo sentido. o não sentido de tudo isso. quando o que se faz é comum à todos. todos já sentiram o que senti, todos já fizeram o que fiz e o que ainda vou fazer. a não suportância da rotina disfarçada em esboços de tentativas frustradas de fazer o que nunca foi feito, de dizer e escrever o que nunca foi dito. quando tudo o que há é só eco do que já esteve, do que já está, do que estará. se o mundo vai continuar é porque já continuou e se acabar, uma vez lá trás já acabou. e se repetem as coisas e as pessoas se imitam e se refletem e se copiam e se fazem de descobridores de um nada. já está tudo descoberto. não faz sentido viver o presente, não hoje, não o hoje. não faz sentido o tempo, todo tempo, nenhum tempo. são só as coisas se repetindo, repetidamente. a descoberta, repito, não descobre o que, não revela, só aponta o que já existe. e nem as lágrimas são novas, já foram lágrimas, ou mijo, ou escarro, ou rio, em outro lugar, ou nesse mesmo lugar. e tudo o que tenho não é meu e nunca será. e quando perco essas coisas que nem minhas são, onde me encontro. se não há pegadas pelo caminho, num chão que não se permite marcar. se não há avanço. se não há. o que há então? teorias de que é possível, teorias que nos fazem achar que é diferente o que não é e não será. todos somos ecos de um mesmo grito, que não me faz tanto sentido em dias assim. ecos soltos pelo vento que carrega as mesmas coisas de lá pra cá. de cá pra lá. é o ônus de ser terra redonda, de não ter fim, de não ter começo, não ter meio, de ser assim, sempre volta, que não se sabe se primeira ou última. só volta. que volta. que volta. que volta a volver. repete-se esse post, dentro de uns outros que já viram o que vejo agora. num outro papel, numa outra tela, em um outro ou nesse mesmo lugar. são só pensamentos e o devir. que já veio e irá voltar. volta.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

SÉRIE PERSONAGENS

MARIA DE LOURDES

mulher, 28 anos, tem o andar cansado de uma pata, usa óculos de grau forte, sempre arruma a armação no rosto. não tem muitos pudores ou vaidades. prefere beliscar doces ao invés de comer outros alimentos. acredita no amor de Deus e dos seres humanos. mora quase sozinha e tem, a cada semana, um número maior de cães em sua casa, com os quais conversa diariamente.

JENYFHER

mulher, 18 anos, tem dois filhos e um corpo marcado por três gestações precoces e próximas. cabelos vermelho-alaranjados, sempre com dois dedos de raiz. junta lacres de latinhas de refrigerante, acredita que dentro em breve conseguirá trocá-los por uma boa quantia de dinheiro. é o seu ouro branco. quando criança passou fome e morava em uma grande favela. hoje mora em uma "invasão" próxima a bairros nobres. trabalha como diarista. sonha mudar de vida. nenhum dos filhos conhece o pai.

ESMAEL

homem, 35 anos, cabelos ralos e pretos, olhos castanhos, faz barulhos com a boca quando come. bebe todos os dias em pouca quantidade e exagera nos festas e finais de semana. pensa desmedidamente em tudo o que vai falar, logo fala pouco. tem medo dos seus impulsos instintivos. tem na pele um cheiro constante de sabonete e nas mãos e boca o cheiro dos dois maços de cigarro que fuma desde o amanhecer até o momento em que se deita. nunca dorme mais do que duas horas por noite. tem tendências homossexuais e suicidas, briga contra isso olhando todas as mulheres que encontra com volúpia.

ALCEBIADES

homem, 72 anos, casado, cabelos curtos, grisalhos, bigode branco. anda para cima e para baixo com uma capa de gabardine bege e um guarda-chuvas. lê o jornal todos os dias exatamente as 10 horas da manhã. sonha em um dia voltar para a Itália, terra de seus antepassados. odeia banhos, faz apenas uma vez na semana, aos sábados, depois de um ritual que consiste em colocar bermudas e regata, um roupão atoalhado por cima, uma toalha nos ombros, cantar a tarantela e tomar uma dose de pinga. quando bebe, chora com facilidade.

IVO

homem, 34 anos, corpulento, desempregado, cuida da filha de dois anos para que a mulher trabalhe. desempenha todas as funções domésticas com esmero. sempre usa camisetas velhas, bermudas jeans e chinelos. raspa a cabeça, não tem um dente da frente na arcada superior. quer trabalhar, vai a diversas entrevistas de emprego, mas sofre discriminação por sua aparência. aprende coisas com facilidade, a mesma com que desiste delas. não tem um bom relacionamento com seu pai. rói unhas até a carne.

ARIEL

rapaz, 16 anos, filho de pais separados, mora com a mãe. tem dúvidas sobre suas preferências sexuais, mas prefere uma atitude "gay", acha mais fashion. tem piercing, tatuagens, e só fala por gírias. se droga todos os dias, com os mais variados tipos de drogas. odeia cigarros de nicotina. beija todos os seus amigos na boca, dorme em casa apenas uma vez na semana. sua mãe apoio suas decisões e faz vista grossa as suas loucuras. joga na cara do ex-marido a responsabilidade pelas atitudes do filho.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

VOA QUEM PODE VOAR

ELA sempre ficava intrigada com uma porção de coisas. um dia cismou com os assentos flutuantes do avião. passou boa parte do vôo imaginando o que faria deles "flutuantes". depois de vários momentos observando e apalpando o assento, em busca de explicações, sentiu a necessidade de saber como funcionava. sabia que não poderia mais viver com a dúvida, e esse não era um dos mistérios com o qual queria conviver.
desde pequena, a história que mais gostava era de ìcaro, o que queria voar. ela, apesar do medo congelante que sempre teve encalcado em si, também desejava, no fundo, voar como um pássaro. logo pensou, se voa o avião inteiro, não há dúvidas de que flutua o assento. articulou um plano. mediu delicadamente todos os detalhes. abriu a grande sacola que havia trazido, retirou tudo de dentro e colocou sob seu banco. esperou a aterrisagem. esperou o desembarque da maioria dos passageiros. olhou cuidadosamente para ver se não havia nenhum comissário de bordo próximo. colocou a bolsa no ombro, arrancou o assento flutuante e colocou dentro da sacola em apenas um movimento. correu para fora do avião o mais rápido que pode. saiu do aeroporto à passos de gigante. não quis ir direto para casa. tinha planos melhores. foi até o centro da cidade. subiu no edifício de 40 andares. olhou tudo lá de cima. a mão dormente com o peso da sacola. abriu a porta do terraço. deixou a bolsa e a sacola no chão. vestiu óculos escuros. sorriu. saudou ìcaro. amarrou o assento flutuante no ventre com seu cinto. num gritinho pulou lá de cima com os braços bem abertos. sentiu o vento forte no rosto. sorriu de novo, agora com todos os dentes expostos pelo excesso de ar. bateu asas. lá embaixo juntou um povinho pra ver o que estava acontecendo. viu o chão cada vez mais perto. procurou em vão, em seu assento flutuante, um botão que a levasse novamente ao alto. o chão estava em frente. voltou a abrir os braços, desafivelou o cinto. sabia que os vôos não duram para sempre, logo estaria ao lado de ícaro.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

AO AMOR, MINHA IMEMÓRIAS

COM minhas sistoles e diastoles em suas mãos, ele me guiava por caminhos desconhecidos, que não voltei a percorrer sem tal pulsação. bastava saber que havia boa dose de verdade em todas as minhas mentiras. minhas imemórias, me refrescavam isso sempre que respirava o ar nostálgico das três da tarde.
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COMO não falar de amor, de turbulência e de doces mentiras no último dia de um ano enrubrecido desde os primeiros ares. pois se não me traem minha imemórias, se minhas verdades repletas de toda sorte de cores não falham, resolvi, no derradeiro suspiro de 2009, escrever para afugentar o calor e a saudade que sempre me acomete nas badaladas das três. respiro com a dificuldade normal dos dias mais quentes e sinto na pele a transpiração úmida dos poros desesperados por arrefecimento. sentada defronte para a sombra de uma das grandes árvores, plantada antes mesmo de eu ser semente, senti numa inspiração o gosto, o cheiro e a cor de outro tempo, não mais o meu, um tempo de ninguém ou de todos. comecei a escrever na urgência de retratar e reparar desvios que o destino ignóbil havia feito em meu destino e depois de algumas varias folhas rasgadas e arremessadas a desesperança, sob o vento verdadeiramente mentiroso de um ventilador, resolvi apenas lembrar, com todas as particularidades, o que fosse possível, sobre os amores que vivi.
passei e passeei por tentativas, mentiras, verdades nuas e cruas demais, dores, ousadias, lembranças das mais simples às mais ricas, passei pelos detalhes esquecidos, tentando rever as horas para saber em qual delas havia perdido tanto. criei toda uma lógica, uma técnica para falar do amor que vivi. uma cadência de acontecimentos em ordem histórica, coerente, prudente e desprovida de mentiras fáceis e insuportáveis. enjambrei o enredo, de modo que pudesse ser compreendido pelos que viveram tais desventuras e pelos que sequer souberam que existiu. ao fim, na releitura vital dos "escrivinhadores", me deparei com um objeto lindo, porém coberto de tantas demãos de laca, que ficou impossível descobrir o que fora aquilo. ao fim, ficava impossível recordar, numa sequência lógica e real, as verdades do amor.
resolvi alimentar o fogo que ainda queimava na ponta da minha caneta, com as páginas já escritas e rememorar tal qual é o amor vivido. com a lógica própria dos apaixonados, que se faz clara somente aos que já padeceram dos tremores e calafrios de uma febre sem fim, numa cama que arde e queima no mais rigoroso inverno. uma doença da qual nunca se soube da cura, mas que se vacina com gotas que ao invés de serem pingadas, saem dos cantos dos olhos de quem já amou.
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nada como uma boa mentira! um calor que faz suar até nos cabelos mais escondidos, e eu na frente de umas hélices de plástico, ligada numa tomada e que faz um vento deslavadamente mentiroso, mas que refresca com uma verdade que nem o mais cético duvidaria.

domingo, 11 de abril de 2010

a contadora

moça sonhadora, dessas que dispensa horas por dia só para sonhos. ficava na janela, escorada, pensando, criando um mundo onde se encontrava, onde vivia. criava todos os detalhes, coloria à mão e ficava por lá algumas boas horas por dia. de tanto que inventava, inventou de contar as suas histórias a quem quisesse ouvir. contou uma ali, outra aqui, outra acolá. mas tinha uma dia por mês que ia num lugar, o que ela mais gostava, uma vez por mês ia na livraria, sentava na sala dos sonhos e contava suas histórias para as crianças de lá. sempre que era o dia da sua contação, ela chegava cedo, antes de se arrumar, de arrumar seu canto dos sonhos, ela passeava pela loja, passava a mão nos volumes, sonhava em poder ler todos. havia combinado com a dona da loja, uma senhora pequena e ágil, que receberia o pagamento por seus serviços em livros. a cada contação voltava para casa faceira, com o volume debaixo do braço. tinha o que fazer até o próximo encontro.
estava formando uma pequena biblioteca em seu quarto, não podia ser muito grande, morava em um quartinho de pensão, daquele que só cama e criado mudo. pendurou umas prateleiras e lá colocava seus troféus. tinha dias que não lia, era econômica, tinha dias que deitava na cama e ficava olhando os livros enfileirados e aquilo já lhe bastava. noutros colocava todos sobre a cama e criava novas histórias olhando para as ilustrações das capas. era assim a sua vida, pequena, modesta, mas rica em cores e sonhos.
saiu de casa com a sacola colorida feita pela tia, toda com retalhos, caminhou até o ponto de ônibus, e cada coisa que olhava reverberava em histórias dentro dela, nem todas eram escritas em cadernos ou contadas, tinha aquelas que ela criava para logo serem esquecidas. tinha aquelas histórinhas transitórias, que vinham, existiam e desapareciam. era seu combustível. entrou no ônibus já pensando na volta, no presente que traria da livraria da Dona Gertrudes. desceu, caminhou mais um pouco, era cedo, faltavam mais de três horas para contação do dia. entrou na loja, sorriu. passou pelas prateleiras de lançamentos, de técnicos, de estrangeiros, queria saber ler aquelas palavras diferentes, queria entendê-las, mas isso não era um problema, criava história sobre história, fosse a língua que fosse. sentou na pequena mesa redonda e passeou pelas páginas de um livro muito ilustrado, seus olhos se encheram. quando percebeu já estava quase atrasada pra colocar sua roupa e contar sua história. se arrumou, foi para seu cantinho, esperou o anúncio feito no microfone, as crianças juntaram nos pés da moça e ela sorriu num suspiro de começo. contou a história de uma princesinha muito diferente, uma princesa que não vivia num castelo e que não usava belos vestidos, ocultou o fato de que aquela princesa vivia dentro dela. descreveu o príncipe cuidadosamente. acreditava realmente nisso. e lá no fundo, um moço, com carrinho de bêbe, olhando. acompanhou a história inteira com o bêbe dormindo no carrinho. ela só viu que ele estava lá, porque alguma coisa que ela disse, fez com que ele risse alto e a risada chamou a atenção de todos. ele ria e jogava a cabeça para trás, ele ria como uma criança. tinha uma feição de homem feito, mas volta e meia deixava escapar uma criancinha dali de dentro. ele ficou estampado em seus olhos. abraçou as crianças ao fim da história, arrumou seu canto e ele lá olhando. foi para o banheiro, tirou maquiagem e roupa, colocou dentro da sacola, se dirigiu até o caixa para receber seu livro, pagamento. e lá estava ele, parado por perto, olhando. ela sentiu-se envergonhada. colocou o livro dentro da sacola e saiu com passos rápidos apertados. ouvia o ruído da roda do carrinho perseguindo seus pés, não tinha coragem de olhar para trás. seguiu assim o caminho todo. entrou na pensão, fechou a porta, chegou a ter medo, não um medo definido, disso ou daquilo, mas um medo do desconhecido. colocou a sacola ao lado da cama e nem se dignou a olhar o livro. de roupa, deitada por cima da coberta, dura. ouvindo. e logo na janela o barulhinho de pedra sendo atirada, e mais uma e mais uma e uma dúzia delas. puxou a cortina de rendinha, olhou agaixada e lá estava ele, depois do muro, sacudindo a mão com um sorriso. ela sentou no chão e ficou ali a noite toda. cada vez que espiava pela janela, lá estava ele. ficou uma semana sem colocar o nariz pra fora da porta, mas quando saiu deu de cara com ele. foi até a padaria e lá estava ele, tomando uma cafézinho, disfarçando. depois de dias, resolveu conversar com ele, deveria ter alguma coisa a lhe dizer, criou histórias com isso. e se falaram sentados na pracinha, conversaram a tarde toda. era querido. era querida. e depois disso, todo dia se falavam, todo dia ele ia lá. levava coisinha, agradava, estava. descobriu a predileção dela por livro e passou a presenteá-la com vários deles. certo dia deu o melhor de todos, ilustrado, mas não escrito e ela escreveu ali a história deles. tirou a moça do quartinho, levou pra sua casa, que não era um castelo, era linda. tomava café na cama, sentavam juntos pra sonhar e inventar histórias. acompanhava nas contações de história e ficava lá, olhando como no primeiro dia. esperava no balcão ela pegar o livro e de noite lia pra ela. eram felizes. o tempo passava e passou. os cabelos dela começaram a tornar-se prateados. um dia ela acordou e deu de cara com ele lhe olhando, sentado no chão ao lado da cama. olhou nos seus olhos e viu a criança daquele dia. estava lá, escondido nos dentes, nos fios de cabelo, na pele, no todo. percebeu que havia cometido um erro. ficou em dúvida se deveria voltar no tempo. passou vários dias para tomar a penosa decisão. deveria começar a envelhecê-lo. o tempo também deveria passar dentro dos contos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

POEMA ANTIGO

E QUASE NUM PEDIDO DE CLEMENCIA
MINHA ALMA PEDE ANISTIA
SE COUBER ATÉ ANESTESIA
PRA SUPORTAR UM CORAÇÃO
COMO ESTE QUE EM DERAM
QUE EMBARCA NOS QUE ESTÃO À DERIVA
DERIVANDO MINHA VIDA NOUTRAS VIDAS
E DE SOSSEGO NÃO SE SABE MAIS
QUE SUSPIRA NUM GEMIDO QUE ARDE
E A CADA RESPIRO O AR QUE INVADE
CHEIRA AO PERFUME BARATO DA PAIXÃO
QUE CIRCULA NO CORPO O CALOR
DESSES QUE NÃO SE REFRESCA COM VENTILADOR
E ALMEJA VELHICE PRECOCE
PRA VER SE GELA O CORAÇÃO PREDADOR

domingo, 4 de abril de 2010

MANUAL DE COMO NÃO DEIXAR NADA PARA TRÁS, OU QUASE NADA.

TInha uma vida normal, mas depois de uns acontecidos que todos sabiam, mas ninguém comentava, ela passou a desnormalizar. passou a pensar coisas diferentes do que a maioria. passou a não ver tanto sentido assim pra coisas reais. cristiane levava horas em reflexões e por fim não via reflexo de nada do que havia dentro dela no mundo que à cercava. ela tinha uma filha, menina tão estranha quanto a mãe. sempre ensimesmada, sempre dentro de um mundo difícil de penetrar. e tão estranhas quanto eram para o mundo exterior, eram uma para outra. nem ao menos conseguiam se olhar, sem que isso gerasse um ruído, que somente as duas conseguiam perceber. uma passava dias observando a outra de longe, tentando descobrir o que reservava aquela geografia tão díspares. desconexões. comia, bebia, morava. mas nada disso fazia diferença. eram meros afazeres mecânicos para dar continuidade em algo que ela não entendia. cristiane tinha problemas não matemáticos para resolver. problemas que ela não sabia se havia criado ou se haviam criado para ela. cada vez mais adentrava. cada vez mais se desconectava. não acreditava nas coisas que pareciam óbvias ao demais, tinha dificuldade de se relacionar com a própria imagem refletida numa poça d'água. tinha dificuldade. naquela manhã de páscoa acordou cedo, não tinha plano pré-definidos, mas parecia que sabia que tinha que levantar com as galinhas. banho. água que escorre pelo corpo e corre para longe dali. você sabe onde a água do seu banho vai parar, ela pensou, sabe que ela leva parte de você pra algum lugar, ela disse. vestiu roupa, comum, era páscoa. roupa comum. pois coisinhas da filha na mochila que a menina carregaria nas costas. quem é essa menina, o que ela pensa, o que sente, onde irá daqui a pouco, ela disse em voz alta, enquanto fechava a janela dos fundos da casa duas peças de madeira. de chinelos. era perto a casa da mãe, almoço de domingo, de páscoa sem ovo, mas páscoa, mata frango, cozinha polenta, convida e aceita. era perto a casa da mãe, só atravessar a rodovia Br277. fogão de lenha aceso, a mãe espera a filha, as mães esperam os filhos mesmo que eles não venham, mães sempre esperam. porque as nuvens correm, elas não deveria ter pressa, divagou. fechou a porta da sala, pegou a menina, sem nome, só uma menina qualquer, pegou pela mão, obediente, saiu e fechou o portão. subiu pedacinho de terra. páscoa é dia de que mesmo, o que ovo tem com isso, engoliu. beirou a rodovia, sem movimento, domingo de páscoa de manhã. atravessou sem pressa a primeira via, vazia. vazio. a mãe do outro lado. fumaça saindo da chaminé pobrinha, improvisada. cheiro de mata atlântica, de café e roupa lavada com sabão de pedra e secada no sol. passou as pernas por cima do canteiro que divide quem vai e quem vem. esperou. percebeu com a ponta da sensibilidade. a mãe da mãe, mãe dela do outro lado sorriu. a neta, filha da filha olhou e pediu. a mãe-filha soltou a mão da filha-filha e a empurrou delicadamente em frente. a avó abriu os braços. cristiane olhou para o céu, ajoelhou, fez sinal da cruz e viu seu corpo eclodir da casca sob o impacto com o caminhão. entendeu o sentido de nascimento, do ovo. não precisou perguntar, simplesmente entendeu. era como ler um manual de como não deixar nada para trás ou quase nada. a água do banho, você sabe?

sábado, 27 de março de 2010

SOBRE O QUE HÁ

ela estava na rua, parada. ele se aproximou em passos medidos por outro compasso. eles se olharam nos olhos como se pudessem existir olhares assim. sem palavra se abraçaram. demoraram. ficaram ali, sentindo o calor do outro, nem tão outro assim. sentindo o ar que um expirava para o outro respirar. depois da vida toda contida num pequeno espaço, a palavra que sai, quase sussurrada. só para que um possa ouvir. - é como se você fosse o meu mundo agora. e ele repete. - é como se meu mundo fosse você. reaproximam as carnes, as peles, sentem os ossos querendo sair do corpo de cada um. permanecem. é preciso parar, ele diz. e ela, o start já foi dado, não há mais como parar. um suspiro. dois em um. a mão desce suavemente pelo ombro, passa braço, chega ao longo do próprio corpo. os passos seguem, lado à lado, num caminhar de quem sabe onde vai e chega. a chave gira na porta, os pés entram levando todo o corpo que quer ir. ele abre a garrafa, pega copo, pedras de gelo deslizam, liquido escorre. segura com a esquerda, senta no sofá, acende o cigarro, fuma. ela parada perto da porta, agora fechada. ela parada começa lentamente a tirar as peças de roupa, desnecessárias ali. ele como frente à uma obra de arte, fuma, traga e sorri. bebe mais um gole, sacode os gelos com os dedos. toma outro gole e deixa o copo sobre a mesinha. caminha até ela. passa o dedo recém gelado pela nuca. sobem os pelos como se pudessem sair dali. oferece o cigarro. ela fuma. ele vai até as costas e conta todos os nós da coluna. sussurra. - W, R, X, O, V, B, E, F, R, T, O. ela mexe o pescoço vez em quando. ele mexe em seus cabelos soltos. vigorosamente. ela se vira e lhe beija a boca com a fome de quem passou dias sem comer. come a boca num beijo que poderia durar para sempre. desabotoa os botões da blusa dele. desabotoa e sussurra. - N, M, A, L, N, E, A. ele sorri. ela lhe devolve com beijos em seu peito nu. eles descem lentamente ao chão que os acolhe como semente. ele semeia nela o que há dentro dele. eles respiram aos pares. paredes e teto se tornam números e cores, letras e palavras começam a surgir. ele escreve no corpo dela o que poderia dizer, ela sente as palavras sendo gravadas e as repete ao vento. os dias se passam. passam-se os meses. ele pergunta: - o que você espera? e ela: - não mais do que há. e ele: - e o que haverá? - não mais do que há agora. ele lhe come as palavras assim que saem da boca. as escreve por dentro. acham que o tempo não voltará a correr nunca mais. mal sabem que o tempo não mais está.

quinta-feira, 25 de março de 2010

QUANTO TEMPO O TEMPO PODE DURAR

não se podia dizer dela uma dona de casa comum, era mais do que comum, era um exemplo de lealdade ao que havia escolhido para sua vida. tinha verdadeiro prazer em realizar os afazeres domésticos. tinha prazer em saber que tudo funcionava bem graças à ela, que as roupas estavam limpinhas e passadas, que a comida estava feita e saborosa, que ninguém precisava se preocupar com nada ali dentro. era seu reinado, seu domínio sutil e delicado. os filhos e marido criados, não se preocupavam com uma virgula, tudo na mão, parecia um hotel de tão organizado. e ela não se queixava, quanto mais tinha para fazer, mais feliz ficava, sinal que precisavam dela, que era útil, dizia. mas um dia, no meio de uma das intermináveis faxinas, uma pontada no peito, que quase fez cair do banquinho. largou o pano e balde no chão e precisou de tempo pra voltar a respirar direito. passou o resto do dia com a lembrança física do acontecido. de noite, nem dormiu direito. preocupada. pensando como faria as coisas no dia seguinte. depois de uma semana com o peito latejando, decidiu ir ao médico. era nova ainda, mas não fazia exames há tempos. não dá tempo, disse pro doutor, tenha dois filhos, casa e marido pro senhor ver. e sorriu. o médico pediu uns exames e ela quieta. ninguém sabia que ela estava indo ao médico, fazendo exames. ninguém sabia que estava cuidando de si mesma, nem ela. sua preocupação era de não parar de ajeitar as coisas, de fazer a comidinha, de tirar o pó, lavar a roupa. e a pontada acompanhava, se ela ia, a pontada também, se ela vinha dava de encontro com seu peito, latejando, doendo. levou os exames pro médico, esperou o veredito. o doutor demorou um tempo, com os exames ali na mão. ela não estava certa de que estava doente, mas se estivesse, já tinha planejado, iria tentar conciliar o tratamento com os afazeres domésticos. não tinha medo da morte, tinha medo de ter que deixar os filhos e o marido na mão, desamparados. ela longe e o médico chamando. ela quase levou um susto. ele disse que não havia nada de errado, devia ser algum esforço excessivo, algum mal jeito. sua saúde era como a das mulheres de antigamente, poderia viver mais uns sessenta anos se continuasse assim. teve tempo de se orgulhar de ser uma mulher à moda antiga. ela respirou aliviada, nem doeu mais. saiu de lá feliz da vida, planejando as coisas que teria que colocar em ordem quando chegasse em casa. saiu do prédio e ao colocar o pé na calçada o peito ardeu de novo. ela quase teve um pressentimento, mas não tinha tempo, precisava ir rápido pra casa. parou na beira da calçada, o coração doendo, olhou para os dos lados, não haviam carros. deu uma corridinha. não notou o corredor de gente do outro lado, aberto, as pessoas quase coladas nas paredes. abriu o peito dolorido e seguiu com passos decididos, tinha pressa. o médico havia dito que chegaria aos cem anos, como sua avó paterna. mas ainda assim tinha pressa, cem anos são daqui a sessenta, mas hoje ainda tem coisa pela frente. atravessou a rua que faltava da avenida, olhou para os dois lados, era precavida. olhou só para os dois lados. não percebeu o tumulto logo em frente. assalto à carro forte, bandido, vigilantes, troca de tiros. sentiu o ardido no peito mais forte e depois quente, escorrido. ouviu uns borbulhos bem lá longe. sentiu o chão contra seu corpo. tinha pressa.

quarta-feira, 17 de março de 2010

CHOVEU ENQUANTO EU DORMIA

Há dias seus olhos eram só umidade. o vento secava e lá vinham outras molhações. estava no mundo e não sabia que mundo era esse. não reconhecia as formalidades da vida. seus olhos não podiam ver como os demais, o que viam era diferente. tentava se comunicar, mas ao invés de comunicação as pessoas só viam apanhados de palavras e sons. passava semanas com os olhos escorridos. certo dia seus olhos perderam até a cor, de tantos rios que passaram por lá. eles diziam que ela sofria de uma certa melancolia, ela não sabia o que era. mas sabia que dentro do peito ardia uma dor, que nem se sabia de onde vinha. foi ficando calada. descolorida. tolida por um mundo que ela não entendia. sendo agredida cada vez que respirava. foi fechando as portas e janelas. foi ficando cada vez mais, o menos que nunca quis ser. seus passos firmes foram se descolando. um dia, perdeu uma mala repleta de palavras, se perdeu. na manhã seguinte, acordou como num dia normal, pegou uma sacola plástica de mercado, separou algumas coisas que queria ter por perto. bem pouco coisa. foi ao espelho do banheiro e deu uma boa olhada, despediu-se com um breve chacoalhar de dedos. caminhou até a sala, saiu e deixou a porta aberta. não precisaria mais de chaves. pensou que seria bom ter alguma mão para segurar, na falta dela, levou uma luva entrelaçada nos dedos da esquerda. pegou o ônibus, sentou no fundo, olhou pela janela. guardou tudo em saco plástico. desceu no ponto final, caminhou umas quadras, nem com pressa, nem com lerdeza. avistou os grandes portões amarelos de ferro. avistou a placa que indicava a entrada. andou sem olhar pra trás. adentrou ao local todo pintado de amarelo, das paredes ao teto. se encaminhou ao balcão de informações. perguntou sobre os procedimentos para entrada. mostrou o conteúdo da sacolinha. alguns pertences foram retirados, mas ela não ligou. uma outra mulher apareceu, era branco contra amarelo. tirou um grande molho de chaves do bolso e abriu uma porta depois da outra, num grande corredor. indicou com a mão a porta que ela deveria entrar, sem palavra ou som. melhor assim. ela entrou e viu tudo colorido. uns já vieram ao seu encontro. eram palavras e sons soltos pelo ar. ela as pegava com as pontas dos dedos e fazia brincadeiras em pleno ar. era bem vinda. aquele lugar era seu.

tristeza que dói...

a dor física me preocupa, mas nem tanto, o que me preocupa é essa dor que dói e não se sabe onde. essa dor que não precisava acontecer, que não precisaríamos nem saber que existe. essa dor que talvez venha de uma tristeza, que dói como se alguma parte tivesse sido arrancada. e de fato foi. sempre que a tristeza vem, ao menos em mim, é porque alguma coisa se foi...
por algumas poucas coisas, fiquei sem palavras, sem saber o que escrever. e hoje é assim. dia sem nuvem, sem céu, sem cor, sem palavra, sem frase. ainda não sei bem o que dizer, já que sentimento aqui dentro é uma confusão e uma dor... já que aqui é uma tristeza que dói e já não se sabe quando vai passar.

sábado, 13 de março de 2010

AS GAROTAS DO CARA DA BANDA

estava cheio o bar, sempre cheio, não se respirava direito, não se sabia onde andavam os garçons, o banheiro nojento, a maioria dos clientes que vinha ali uma vez não voltava nunca mais, era longe de tudo o bar, tinha uma comida péssima e ainda por cima, volta e meia falhavam os equipamentos de som. mas parece que sempre tinha uma gente que não sabia disso, o mundo é grande ela pensava, e toda noite de sexta o bar era lotado até os bigodes. nas noites de sexta, ela que trabalhava o dia todo, todo dia, se dava ao luxo de aguentar o sono no sábado, para poder ir até lá. chegava cedo, era a primeira a entrar. de tanto que ia, conhecia os garçons, o dono do bar, os caras do som, as moças da limpeza, os seguranças e alguns poucos clientes que tinham coragem de voltar. tinha uma simpatia timida. se vestia de modo não chamativo, com calças compridas, blusas sem estampa, de cor discreta e poucas e pequenas bijuterias. seus cabelos chegavam soltos e eram amarrados num coque até o fim da noite, toda noite de sexta-feira. não bebi coisas de álcool, não comia fora de casa, tinha um estômago sensível, gostava de água mineral num copo com duas pedras de gelo e umas gotas de limão espremido, tomava duas todas as noites. fez as contas logo que começou a frequentar o lugar, e duas garrafas de água, mais a entrada, mais o táxi, era o que cabia em seu fraco orçamento. nos feriados ela estava lá, nos dias santos se houvesse show, nos dias de comemoração ou nos dias comuns. todos sabiam, não era o bar, era a música e talvez até um pouco mais do que a música. era ele. ele que tocava e cantava ao mesmo tempo, que tinha coordenação de fazer uma dançinha e ainda sorrir, que sabia todas as letras decor, e lia partituras, e estudava música e ganhava sua vida com isso e era alguém com quem ela sempre sonhou. não sonhava, de maneira alguma, que ele fosse seu, lhe servia olhar. servia saber que todas as sextas do mundo eram para o gracejo dos seus olhos. não que seus ouvidos não se felicitassem de estar lá, mas eram os olhos os mais agraciados. sabia dos jeitos, do que bebia, que não comia durante o show, só depois, sabia que tinha um pisca-pisca de olhos quando estava nervoso, sabia que cantava com microfone muito próximo a boca e que essa era um pouquinho torta, sabia que cheirava bem mesmo que suasse muito, sabia que lava os cabelos antes de ir pro show, que ia de carro, que gostava do que fazia, que era timido, que era perfeito para os seus olhos. e todas as noites ela acompanhava, cantando todas as músicas, que não variavam muito com o passar do tempo. acompanhava tudo lá de cima, da sua sacada. gostava dos pieguismos, se sentia meio piegas. se senti julieta, na sacada e romeu cantava e cantava e cantava. volta e meia ela ganhava uns olhares. sabia que era ela e mais milhares ali em cima. umas de saias tão curtas que pareciam blusas, outras com seios à mostra, outra com tudo à mostra. sabia que não era nem de longe um exemplo dessa beleza que se compra nos bancas de revista. mas não se importava, o importante eram seus sonhos, sua imaginação. ele olhava e ela imaginava que era pra ela. não olhava para o lado, não queria conferir que talvez fosse espinho e não rosa. era piegas até no que imaginava, ali se dava ao luxo de pieguizar até o fundo. sorria pouco, mas sorria. dançava pouco, mas dançava. fazia tudo de pouquinho, mas fazia. não precisava dos excessos, dos exageros. deixava isso aos outros. os outros diziam que ela se contentava com as migalhas. mas ela acha até boas as migalhas, são mais crocantes dizia. mas não era arrogante, tudo o que dizia ou discordava, fazia pra dentro. não ofendia, não causava, não doía. e acima de tudo, gostava de ser assim. mais uma sexta e ela lá. no seu devido lugar. hoje era um dia atípico, feriado nacional. feriadão prolongado. mas ela não viajava, muito caro e perigoso. e depois trabalhava mesmo nos feriados. o bar vazio de começo, anunciando que permaneceria assim até o fim. menos calor, banheiros mais limpos, menos fila no caixa, garçons circulando, copos de vidro pra todos. pensou pra dentro. dançou com os pezinhos colados no chão, cantou todas as músicas. olho de canto de olho. ele olhou de novo. e de novo. e mais uma vez olhou. ela não sentiu cabelos batendo em seus braços a noite toda. não precisou conferir se era terra, planta ou flor. envergonhou-se do que estava fazendo. quis correr pra fora dali. terminou de tomar os últimos goles de água, sabia que o meio ambiente agradece. levou a garrafinha até o latão de lixo. desceu as escadas, virou a esquina para o caixa. levou um beijo de susto no meio da boca molhada de limão e água. não viu mais que um borrão. não viu mais nada. seus globos paralisaram num vácuo de imagens borradas. pagou a conta. foi até a porta, entregou para o segurança. saiu do bar. pegou o táxi, disse o endereço, confiou no motorista. estava perdida dentro do seu próprio mundo. chegou em casa, tomou banho. no tirar da roupa sentiu o cheiro. sentiu o outro. viu novamente os contornos. soltou um choro escuro, mudo e gritado pra dentro. entrou no box e lavou-se, lavou-se por fora. as pegadas dos seus pés molhados ficaram impressas no chão de madeira. desenhavam o caminho de quem não sabe onde ir. dormiu com cabelos, pele e olhos molhados. acordou cedo no outro dia, enxugou a cara, vestiu roupa e foi para o trabalho normalmente. se guiava pelos ouvidos, sabia de verso o caminho. esperou a sexta-feira. vestiu-se mais discreta do que nunca. chegou ainda mais cedo. subiu ao seu lugar. havia decorado quantos passos era preciso. pediu sua água, seu gelo e seu limão espremido. cantou as suas músicas bem baixinho. olhou nos olhos do moço. olhou fosco. terminou o último gole da segunda garrafa. quebrou a ponta do copo com uma suave batida no canto da mesa. retirou um caco. olhou por mais dois segundos. esperou que ele desfocasse. escorou-se na grade, esticou os dois braços. passou rente a dobra que divide mão e punho o caco de vidro. sentiu suas palavras guardadas escorrendo pelo rasgo. quando a moça lá de baixo sentiu escorrer um líquido em seu ombro, passou a mão e gritou. ela olhou ainda mais uma vez para o rapaz e fotografou tudo o que pode, cada fio de cabelo, cada detalhe. antes de fechar os olhos pensou que precisaria de muitas fotografias dali pra frente.

quinta-feira, 11 de março de 2010

NADA MAIS

ELA ERA ASSIM, sem graça, sem fome, sem vida. não tinha muito do que reclamar e nem muito do que se alegrar. nada demais ela dizia a seu respeito e os que a conheciam repetiam o mesmo, nada mais dela. tinha uma casa compartilhada com os parentes, tinha um cama, um trabalho e um gato. nada mais. não gostava de tirar fotografia e nem de fazer amigos. amigos na verdade, não é que ela não gostasse, não sabia fazer amizades e quando as fazia, tinha dificuldade de mantê-las. mas não tinha problemas com isso. tinha uns cabelos nem lisos e nem enrolados, um corpo nem gordo, nem magro, não era nem bonita e nem feia. uma pessoa e nada mais. outro dia pegou uma tosse seca, dessas que faz você não ter vontade de fazer nada, já que tudo o que faz lhe provoca essa tosse sem fim. essas que você tosse até quase vomitar e que deixa a garganta seca e áspera. andava de lá pra cá, sempre com uma garrafinha na bolsa. umas balas no bolso. sabia que não era exagero, precisaria delas. de tanto que a tosse se prolongou a patroa dispensou a moça pra ir ao médico. e ela foi. o médico fez perguntas e ela respondeu. pediu alguns exames e fez uma ausculta do peito. ela quase teve uma "vergonha". depois de tudo o médico lhe perguntou se ela já havia tido tuberculose. ela disse que nem sabia o que era aquilo. ele disse que devido as condições que ela relatou de moradia e saúde, poderia estar com uma doença grave. um sorriso brotou no canto do olho. a boca estava virada para baixo em sinal de estarrecimento, mas os olhos brilhavam. seu interior maquinava algo que ela ainda não podia atinar. o médico recomendou pressa nos exames. ela saiu de lá com muitos papéis na mão e nada mais. caminhou pela rua olhando nos olhos das pessoas. parou numa praça ali perto, sentou no banco e ficou horas. nessas tantas horas se pois a pensar e emergiu enfim o que havia por dentro. estava lá a razão para aquele sorriso. ela estava feliz, alegre e plena. estava experimentando algo que nunca sentira antes. era bom sentir-se assim. amava aquele papéis. mal podia esperar a hora de fazer os exames e constatar tal gravidade, já que doente era certo que estava. pegou o ônibus lotado, arrepiava-se cada vez que alguém relava nela. estava tão viva. passou o caminho todo pensando se contava ou não para os parentes. decidiu, quase no ponto final, esperar o resultado. ao chegar em casa tratou de fazer uma cara normal. a tosse não havia atacado nenhuma vez no dia todo, mas ela insistia numa tossidinhas de vez em quando. tossia principalmente quando pipocava dentro dela a alegria. tossia pra disfarçar que estava completa, plena, viva. telefonou para a patroa pra avisar que no dia seguinte chegaria mais tarde, teria que fazer uns exames que o médico mandou. foi dormir com os pedidos de exame nas mãos, queria olhar e tentava decifrar naquele escrita toda o que significavam. quando estava quase embarcando no sono, achou que os nomes mais complicados ficavam por conta dos exames mais graves. dormiu como nunca. no dia seguinte foi direto ao laboratório. no caminho milhares de pensamentos, azuis, rosa, vermelhos, pretos, todos os pensamentos. deixou de ser um nada mais e passou ao tudo mais de uma hora pra outra. as pessoas do laboratório nem olharam pra ela com uma cara de piedade, já que era essa cara que ela imaginou que eles à olhariam. mas ela pensou que eles já estavam acostumados com mortes todos os dias. era o jeito que eles tinham de reconfortar os doentes. volta e meia respirava de um jeito diferente. era bom sentir-se assim. foi para o trabalho pensando em quem seria sua substituta, até quando aguentaria trabalhar. passou o dia todo com a realização mecânica dos afazeres, já não podia pensar em outra coisa. e o gato, quem cuidaria do gato. tinha muita coisa com o que se preocupar. em casa, na hora da janta, olhava os parentes, pensava que deveria ir confortando-os aos poucos, eles teriam que aceitar que alguns duram muito e outros pouco e que é assim que a humanidade caminha. toda noite olhava suas coisinhas, as roupas, poucas roupas, suas bijuterias, seus sapatos, tudo o que possuía e pensava nas pessoas que herdariam aquelas coisas. não sabia se era melhor já definir quem ficaria com o que ou se era melhor deixar que os parentes fizessem isso. talvez até os próprios parentes quisessem ficar com as coisas, um meio de homenageá-la. um dia, perdeu a hora do trabalho, andava muito ocupada para dormir cedo. outro dia sentou no banco da praça e ficou lá tanto tempo, que quando precisou ir embora não havia mais ônibus. teve que voltar caminhando. estava atarefada demais nos últimos tempos. até os parentes tinham notado sua mudança. ela elegia o melhor momento para lhes falar sobre a doença e tudo o que aconteceria com ela. mas esse momento não lhe parecia claro. tinha dúvidas. esperava os resultados. e um envelope chegou na sua casa. era duro ter que abrir, precisava de tempo, queria prorrogar o estado de vida que estava. dormiu abraçada com o envelope. pensou se deveria abrir ou não. levou dias nessa decisão. abriu. lá tinha uma porção de não-entendimentos e um positivo. estava gravemente doente. era certo. pensou no discurso. decidiu que o médico tinha direito de ver os exames antes que ela propagasse sua morte certa. marcou consulta, faltou no trabalho. se arrumou, passou um perfume de uma parente que estava no banheiro. passou batom. pois dois grampos no cabelo, um de cada lado. colocou calcinha e sutiã da mesma cor. sua mãe sempre dizia que sair de casa era assim, de conjuntinho, se você passa mal e precisam te acudir, coisa mais feia é meia, calcinha ou sutiã furado. ela poderia morrer antes mesmo de chegar ao consultório. poderia morrer a qualquer momento. era precavida, não contou a ninguém, mas deixou uma carta dentro do guarda-roupas. refestelou-se pelas ruas. chegou ao médico bem antes da hora marcada. sorria para as pessoas, um sorriso de um rosa claro e leve. tinha uma pequena poupança para o enterro, não abusaria e ninguém. quando o médico chamou seu nome, sentiu o coração parar e voltar a bater. sentiu como as mulheres dos filmes que esperam seus amados. levantou e parecia que pisava em pelúcia. caminhava em câmera lenta e tudo ao redor era nada mais que um borrão. o envelope refrescava sua mão e o refrescar espalhava-se pelo corpo todo. demorou dias pra chegar até a sala do médico e lhe entregar o veredito. ele abriu com uma agilidade de quem está acostumado a isso. olhou rapidamente para ela. estava certa de que ele queria se certificar de que ela ainda não havia partido. ela quase sorriu. ele colou os olhos nas folhas. passou por todas elas e pigarreou antes de começar a falar. todos pigarreiam antes de uma má noticia, ela quis dizer a ele que não era preciso pigarrear, ela já sabia de tudo e aquilo não era uma má noticia pra ela. ele fixou num ponto, como se precisasse de força para falar e disse que estava tudo certo. ela procurou se movimentar para ver se ele a olhava, ele nada. rabiscou algumas coisas numa folha de receituário. entregou e se despediu. ela antes de sair ainda conseguiu quebrar seu protocolo pessoal e perguntar nada mais, e ele disse que nada demais. deu mais dois passou e pensou que ele ligaria para alguém da família e falaria a verdade, pensou que por seu jeito frágil ela não iria suportar saber que irá morrer em breve. voltou e disse que era mais forte do que todos os que moravam com ela, que tinha visto o positivo e que estava preparada. ele ainda assim sem olhar disse que realmente ela era muito forte e que estava ótima para a idade, disse ainda que o positivo era para uma pequena infecção no pulmão que seria rapidamente curada com remédios, caso ainda restasse alguma bactéria. as pelúcias por espinhos, a velocidade da luz em seu peito. saiu de lá transtornada. queria correr nas ruas e gritar para que olhassem para ela, queria tirar as roupas, os órgãos, a pele e os cabelos. queria voltar para dentro de si e se trancar lá. queria que a fúria que sentia a secasse e que morresse de enfarto ali, no meio da rua. queria tudo o que não teve e tudo ao mesmo tempo. sentou no chão, em meio á rua. anoiteceu agachada, com algumas moedas em sua frente. se sujou de terra e cuspe. queria algo, nem que fosse um nada maior do que tinha. voltou pra casa só no outro dia. os parentes estavam preocupados. sabiam que tinha recebido resultados de exames, sabia que tinha ido ao médico. ao vê-la perceberam que era grave o que tinha. estava acabada. não lhe restavam mais do que fuligem do que nunca foi. as parentes lhe deram um banho, os parentes compram os remédios da receita. rezaram todos para que não morresse. ela deitou-se na cama. eles espalharam aos vizinhos que rezassem por aquela moça, tão nova, tão cheia de vida. o gato subia na cama e passeava por entre as suas pernas. todos os parentes se mobilizaram, traziam comida, doces, flores, revistas e livros. faziam com que tomasse o remédio, que logo estaria boa. ela não acreditava que fosse melhorar, mas também sabia que ninguém morria de tristeza, não para ela. tinha perdido sua chance de viver. não morreria tão cedo, lhe disse o médico. precisaria de algum tempo para voltar a fazer o que sempre fez. nada mais.

quinta-feira, 4 de março de 2010

NECROFOBIA GRAVE

morava sozinha a moça. uma casinha que dava gosto de ver, caso fosse vista por alguém. tudo arrumadinho, tudo no seu devido lugar. todos os dias elas saia pra trabalhar e voltava no mesmo horário. nunca nada de novo. cumprimentava cordialmente os vizinhos. era muito educada. não se via muito movimento por ali. sempre ela e ela mesma. mas era preferível assim do que uma bandalheira a cada noite. aos sábados lavava roupa, as calçadas e os vidros da casinha. a casa era de material, com calçada em todo o quintal. nas floreiras da janela e da varanda, flores sempre bem vermelhas e matos sempre verdejantes. mas ela não regava. nunca regou nada naquela casa. seria um mistério as plantas não morrerem, se nunca havia sido regadas. mas era domínio público, eram de plástico. mas aos domingos ela sempre dava um trato nas coitadas. levava para o tanque e dava uma boa lavada pra tirar a poeira. e depois colocava de novo nas floreiras, limpinhas, verdinhas e vermelhas. na janela da sala tinha um gato gorducho, com duas buricas azuis no lugar de olhos. quem não tivesse habituado com a visão, poderia estranhar o bichano ali, parado, todo santo dia. mas os vizinhos já sabiam, era de pelúcia o miau. e depois tinha os latidos. volta e meia ouviam uns latidos, sempre iguais, sempre no mesmo tom. descobriu um dia uma vizinha das mais "interessadas", que era um cachorrinho que parecia de verdade, mas que era eletrônico. latia, andava, parecia verdadeiro, mas era fake. as janelas tinham tela, evitavam a entrada de mosquito, pernilongo, abelha, borboleta, qualquer coisa viva. ela não se esforçava em fazer amizades, sabe as grandes amizades, não, elas não eram com ela. o pessoal do trabalho não sabia nem a idade, endereço, telefone ou coisa alguma sobre a moça. ela lia livros, via filmes, assistia televisão, comi, via fotos e bordava. eram os seus passatempos. não tinha necessidade de outras coisas, a vida se completava assim. um dia por muita insistência do chefe, passou no médico do trabalho, fazer um periódico, ele disse. e lá ficou, pensando o que iria acontecer ali. não tinha medo, mas tinha que conversar, e ela não estava muito acostumada, ainda mais se o assunto fosse ela. o médico chamou, ela entrou e eles começaram. conversas indo e vindo. e no fim das contas o médico era bem esperto, exprimiu dela o que jamais alguém tinha conseguido. saiu de lá com um afastamento e uma indicação expressa de um psiquiatra. os colegas não entendiam o que ela tinha de tão grave, para ser afastada do trabalho por tempo indeterminado. e ela leu no atestado: " necrofobia grave". nem sabia o que era. ficou sem entender nada. foi pra casa, continuou sua rotina, não foi ao psiquiatra.

sem olhos, sem olhar

PARA SCHEILA
POR DEIXAR MEUS OLHOS CADA DIA MAIS DELICADAMENTE ABERTOS...

EM todos os aniversários e festividades passíveis de presenteações, ela ficava tensa. enquanto as outras crianças corriam abrir seus pacotes, ela deixava sobre a cama e passava horas olhando aquelas coisas. os pais e o irmão já tinham se acostumado ao jeito esquisito dela. deixavam tomar seu tempo. depois de muitos dias ela desembrulhava. ficava triste ao perceber que eram mais bonecas. colocava todas dentro do guarda-roupas e fechava a porta bem rápido. ia escorrendo pela porta do roupeiro fechado, fechava os olhos com uma humidade fora do normal. suas roupas tinham passado para a comoda, desacomodadas do guarda-roupas cheio de bonecas, entupido. ela não suportava, tinha dias que nem dormir dormia, elas estavam lá, ela lembrava da cara de cada uma delas, todas com suas roupinhas cor-de-rosa, com tufos de cabelos louros. ninguém entendia aquilo, ela quase não entendia também. mas não podia suportar. depois viram os bichos de pelúcia. mas todos com aqueles olhos. todos dentro do armário superlotado. o móvel parecia gordo, empanturrado de olhos até a goela. um dia voltou da escola, entrou no quarto para trocar de roupa e deu um grito estridente, tão agudo e longo que fez tremer as janelas da casa de madeira. elas estavam lá, não só elas, mas também eles. todos espalhados pelo chão do quarto. não só uma parte do chão, mas todo ele. estavam por todos os cantos do quarto e olhavam pra ela. ela sabia que chegaria o dia de encarar todas elas. sabia que o guarda-roupas não suportaria. chegou o dia em que ele regurgitou todas, pelo quarto todo. da porta mesmo ela virou-se e correu o mais rápido que pode. chegou ao jardim, sentou no degrau de pedra da porta dos fundo. não podia piscar, não podia fechar os olhos, que doíam, arregalados. e dentro da cabeça dela, estavam todos, olhando. ficou fora de casa até anoitecer. não podia voltar lá, mas teria. sabia que era ela quem teria que resolver aquilo. entrou, passou pela sala e fitou levemente todos assistindo televisão. foi até o quarto. entrou, fechou a porta. pegou uma por uma. tentou ensaiar uma brincadeira, trocar a roupinha, falar com elas. mas não era possível, elas a olhavam. passou os olhos pelo quarto e um pânico subiu por seus pés e chegou aos seus cabelos. quis dar outro grito daqueles, mas já era tarde, tinha pavor em causa transtornos aos demais. seu dedicado amigo roupeiro estava lá, ele não à olhava. tinha um corpo todo completinho, mas não tinha cabeça, logo não olhava. os braços dele fizeram um convite e ela não pensou duas vezes. entrou no roupeiro e se aconchegou ali dentro. esqueceu dos olhos, dormiu. no dia seguinte a mãe bateu na porta. eram todos tão educados. ela saiu do roupeiro e abriu a porta do quarto. a mãe observou a bagunça de bonecas e bichos de pelúcia espalhados e disse a ela quem deveria arrumar aquilo, disse a ela qual era o papel de cada um deles ali dentro. ela sentiu o interior do seu corpo borbulhar, não sabia o que era aquilo. a mãe terminou, passou a mão sobre os seus cabelos e sorriu. seu corpo queria explodir, se ela soubesse o que era explosão. voltou para dentro do armário, colocou a caixola para funcionar. saiu de lá com passos tão decididos, que poderia ir a qualquer lugar. foi até a cozinha e pegou sacos plásticos grandes, voltou ao quarto. deu um grito mudo bem longo, aqueles que ela já tinha visto em tantos filmes, aqueles dados no começo de uma guerra. correu no meio das bonecas. arrancou a cabeça de cada uma delas com as próprias mãos e colocou nos sacos. ao fim estava exausta. tinha três sacos de cabeças de bonecas. esperou anoitecer, anoitecer bem. pulou a janela do seu quarto e o que se viu depois foi uma chuva grossa de cabeças de bonecas, cair no bairro. cabeças grandes, de plástico ,de porcelana, bem pequenas, com ou sem cachos de cabelos. cabeças. ela não precisou se proteger, era uma chuva que não molhava, pensou. voltou pra casa e não conseguiu dormir. brincou até o amanhecer com os corpinhos. no dia seguinte no colégio, o comentário geral era sobre o massacre das bonecas. um mistério, diziam. e ela satisfeita. aos poucos a rotina foi se recompondo. todas as normalidades de sempre se reinstalaram. a amnésia popular também. e todas as tardes os vizinhos mais curiosos viam a estranha menina que brincava na frente de casa, com suas bonecas sem cabeça. e ela tranquila, brincava até cansar. não havia mais problema, podiam brincar do que quisessem, não havia mais olhos para censurar.