quinta-feira, 11 de março de 2010

NADA MAIS

ELA ERA ASSIM, sem graça, sem fome, sem vida. não tinha muito do que reclamar e nem muito do que se alegrar. nada demais ela dizia a seu respeito e os que a conheciam repetiam o mesmo, nada mais dela. tinha uma casa compartilhada com os parentes, tinha um cama, um trabalho e um gato. nada mais. não gostava de tirar fotografia e nem de fazer amigos. amigos na verdade, não é que ela não gostasse, não sabia fazer amizades e quando as fazia, tinha dificuldade de mantê-las. mas não tinha problemas com isso. tinha uns cabelos nem lisos e nem enrolados, um corpo nem gordo, nem magro, não era nem bonita e nem feia. uma pessoa e nada mais. outro dia pegou uma tosse seca, dessas que faz você não ter vontade de fazer nada, já que tudo o que faz lhe provoca essa tosse sem fim. essas que você tosse até quase vomitar e que deixa a garganta seca e áspera. andava de lá pra cá, sempre com uma garrafinha na bolsa. umas balas no bolso. sabia que não era exagero, precisaria delas. de tanto que a tosse se prolongou a patroa dispensou a moça pra ir ao médico. e ela foi. o médico fez perguntas e ela respondeu. pediu alguns exames e fez uma ausculta do peito. ela quase teve uma "vergonha". depois de tudo o médico lhe perguntou se ela já havia tido tuberculose. ela disse que nem sabia o que era aquilo. ele disse que devido as condições que ela relatou de moradia e saúde, poderia estar com uma doença grave. um sorriso brotou no canto do olho. a boca estava virada para baixo em sinal de estarrecimento, mas os olhos brilhavam. seu interior maquinava algo que ela ainda não podia atinar. o médico recomendou pressa nos exames. ela saiu de lá com muitos papéis na mão e nada mais. caminhou pela rua olhando nos olhos das pessoas. parou numa praça ali perto, sentou no banco e ficou horas. nessas tantas horas se pois a pensar e emergiu enfim o que havia por dentro. estava lá a razão para aquele sorriso. ela estava feliz, alegre e plena. estava experimentando algo que nunca sentira antes. era bom sentir-se assim. amava aquele papéis. mal podia esperar a hora de fazer os exames e constatar tal gravidade, já que doente era certo que estava. pegou o ônibus lotado, arrepiava-se cada vez que alguém relava nela. estava tão viva. passou o caminho todo pensando se contava ou não para os parentes. decidiu, quase no ponto final, esperar o resultado. ao chegar em casa tratou de fazer uma cara normal. a tosse não havia atacado nenhuma vez no dia todo, mas ela insistia numa tossidinhas de vez em quando. tossia principalmente quando pipocava dentro dela a alegria. tossia pra disfarçar que estava completa, plena, viva. telefonou para a patroa pra avisar que no dia seguinte chegaria mais tarde, teria que fazer uns exames que o médico mandou. foi dormir com os pedidos de exame nas mãos, queria olhar e tentava decifrar naquele escrita toda o que significavam. quando estava quase embarcando no sono, achou que os nomes mais complicados ficavam por conta dos exames mais graves. dormiu como nunca. no dia seguinte foi direto ao laboratório. no caminho milhares de pensamentos, azuis, rosa, vermelhos, pretos, todos os pensamentos. deixou de ser um nada mais e passou ao tudo mais de uma hora pra outra. as pessoas do laboratório nem olharam pra ela com uma cara de piedade, já que era essa cara que ela imaginou que eles à olhariam. mas ela pensou que eles já estavam acostumados com mortes todos os dias. era o jeito que eles tinham de reconfortar os doentes. volta e meia respirava de um jeito diferente. era bom sentir-se assim. foi para o trabalho pensando em quem seria sua substituta, até quando aguentaria trabalhar. passou o dia todo com a realização mecânica dos afazeres, já não podia pensar em outra coisa. e o gato, quem cuidaria do gato. tinha muita coisa com o que se preocupar. em casa, na hora da janta, olhava os parentes, pensava que deveria ir confortando-os aos poucos, eles teriam que aceitar que alguns duram muito e outros pouco e que é assim que a humanidade caminha. toda noite olhava suas coisinhas, as roupas, poucas roupas, suas bijuterias, seus sapatos, tudo o que possuía e pensava nas pessoas que herdariam aquelas coisas. não sabia se era melhor já definir quem ficaria com o que ou se era melhor deixar que os parentes fizessem isso. talvez até os próprios parentes quisessem ficar com as coisas, um meio de homenageá-la. um dia, perdeu a hora do trabalho, andava muito ocupada para dormir cedo. outro dia sentou no banco da praça e ficou lá tanto tempo, que quando precisou ir embora não havia mais ônibus. teve que voltar caminhando. estava atarefada demais nos últimos tempos. até os parentes tinham notado sua mudança. ela elegia o melhor momento para lhes falar sobre a doença e tudo o que aconteceria com ela. mas esse momento não lhe parecia claro. tinha dúvidas. esperava os resultados. e um envelope chegou na sua casa. era duro ter que abrir, precisava de tempo, queria prorrogar o estado de vida que estava. dormiu abraçada com o envelope. pensou se deveria abrir ou não. levou dias nessa decisão. abriu. lá tinha uma porção de não-entendimentos e um positivo. estava gravemente doente. era certo. pensou no discurso. decidiu que o médico tinha direito de ver os exames antes que ela propagasse sua morte certa. marcou consulta, faltou no trabalho. se arrumou, passou um perfume de uma parente que estava no banheiro. passou batom. pois dois grampos no cabelo, um de cada lado. colocou calcinha e sutiã da mesma cor. sua mãe sempre dizia que sair de casa era assim, de conjuntinho, se você passa mal e precisam te acudir, coisa mais feia é meia, calcinha ou sutiã furado. ela poderia morrer antes mesmo de chegar ao consultório. poderia morrer a qualquer momento. era precavida, não contou a ninguém, mas deixou uma carta dentro do guarda-roupas. refestelou-se pelas ruas. chegou ao médico bem antes da hora marcada. sorria para as pessoas, um sorriso de um rosa claro e leve. tinha uma pequena poupança para o enterro, não abusaria e ninguém. quando o médico chamou seu nome, sentiu o coração parar e voltar a bater. sentiu como as mulheres dos filmes que esperam seus amados. levantou e parecia que pisava em pelúcia. caminhava em câmera lenta e tudo ao redor era nada mais que um borrão. o envelope refrescava sua mão e o refrescar espalhava-se pelo corpo todo. demorou dias pra chegar até a sala do médico e lhe entregar o veredito. ele abriu com uma agilidade de quem está acostumado a isso. olhou rapidamente para ela. estava certa de que ele queria se certificar de que ela ainda não havia partido. ela quase sorriu. ele colou os olhos nas folhas. passou por todas elas e pigarreou antes de começar a falar. todos pigarreiam antes de uma má noticia, ela quis dizer a ele que não era preciso pigarrear, ela já sabia de tudo e aquilo não era uma má noticia pra ela. ele fixou num ponto, como se precisasse de força para falar e disse que estava tudo certo. ela procurou se movimentar para ver se ele a olhava, ele nada. rabiscou algumas coisas numa folha de receituário. entregou e se despediu. ela antes de sair ainda conseguiu quebrar seu protocolo pessoal e perguntar nada mais, e ele disse que nada demais. deu mais dois passou e pensou que ele ligaria para alguém da família e falaria a verdade, pensou que por seu jeito frágil ela não iria suportar saber que irá morrer em breve. voltou e disse que era mais forte do que todos os que moravam com ela, que tinha visto o positivo e que estava preparada. ele ainda assim sem olhar disse que realmente ela era muito forte e que estava ótima para a idade, disse ainda que o positivo era para uma pequena infecção no pulmão que seria rapidamente curada com remédios, caso ainda restasse alguma bactéria. as pelúcias por espinhos, a velocidade da luz em seu peito. saiu de lá transtornada. queria correr nas ruas e gritar para que olhassem para ela, queria tirar as roupas, os órgãos, a pele e os cabelos. queria voltar para dentro de si e se trancar lá. queria que a fúria que sentia a secasse e que morresse de enfarto ali, no meio da rua. queria tudo o que não teve e tudo ao mesmo tempo. sentou no chão, em meio á rua. anoiteceu agachada, com algumas moedas em sua frente. se sujou de terra e cuspe. queria algo, nem que fosse um nada maior do que tinha. voltou pra casa só no outro dia. os parentes estavam preocupados. sabiam que tinha recebido resultados de exames, sabia que tinha ido ao médico. ao vê-la perceberam que era grave o que tinha. estava acabada. não lhe restavam mais do que fuligem do que nunca foi. as parentes lhe deram um banho, os parentes compram os remédios da receita. rezaram todos para que não morresse. ela deitou-se na cama. eles espalharam aos vizinhos que rezassem por aquela moça, tão nova, tão cheia de vida. o gato subia na cama e passeava por entre as suas pernas. todos os parentes se mobilizaram, traziam comida, doces, flores, revistas e livros. faziam com que tomasse o remédio, que logo estaria boa. ela não acreditava que fosse melhorar, mas também sabia que ninguém morria de tristeza, não para ela. tinha perdido sua chance de viver. não morreria tão cedo, lhe disse o médico. precisaria de algum tempo para voltar a fazer o que sempre fez. nada mais.

Um comentário:

Bel disse...

Hehhhh bem lindo esse, hein?
É bem assim mesmo. Tem dias que tudo que se quer é Tudo mais, né?
Tem dias que há. Gosto das tuas inversões .... bem sabes.
Um beijo,

Bel.