quinta-feira, 25 de março de 2010

QUANTO TEMPO O TEMPO PODE DURAR

não se podia dizer dela uma dona de casa comum, era mais do que comum, era um exemplo de lealdade ao que havia escolhido para sua vida. tinha verdadeiro prazer em realizar os afazeres domésticos. tinha prazer em saber que tudo funcionava bem graças à ela, que as roupas estavam limpinhas e passadas, que a comida estava feita e saborosa, que ninguém precisava se preocupar com nada ali dentro. era seu reinado, seu domínio sutil e delicado. os filhos e marido criados, não se preocupavam com uma virgula, tudo na mão, parecia um hotel de tão organizado. e ela não se queixava, quanto mais tinha para fazer, mais feliz ficava, sinal que precisavam dela, que era útil, dizia. mas um dia, no meio de uma das intermináveis faxinas, uma pontada no peito, que quase fez cair do banquinho. largou o pano e balde no chão e precisou de tempo pra voltar a respirar direito. passou o resto do dia com a lembrança física do acontecido. de noite, nem dormiu direito. preocupada. pensando como faria as coisas no dia seguinte. depois de uma semana com o peito latejando, decidiu ir ao médico. era nova ainda, mas não fazia exames há tempos. não dá tempo, disse pro doutor, tenha dois filhos, casa e marido pro senhor ver. e sorriu. o médico pediu uns exames e ela quieta. ninguém sabia que ela estava indo ao médico, fazendo exames. ninguém sabia que estava cuidando de si mesma, nem ela. sua preocupação era de não parar de ajeitar as coisas, de fazer a comidinha, de tirar o pó, lavar a roupa. e a pontada acompanhava, se ela ia, a pontada também, se ela vinha dava de encontro com seu peito, latejando, doendo. levou os exames pro médico, esperou o veredito. o doutor demorou um tempo, com os exames ali na mão. ela não estava certa de que estava doente, mas se estivesse, já tinha planejado, iria tentar conciliar o tratamento com os afazeres domésticos. não tinha medo da morte, tinha medo de ter que deixar os filhos e o marido na mão, desamparados. ela longe e o médico chamando. ela quase levou um susto. ele disse que não havia nada de errado, devia ser algum esforço excessivo, algum mal jeito. sua saúde era como a das mulheres de antigamente, poderia viver mais uns sessenta anos se continuasse assim. teve tempo de se orgulhar de ser uma mulher à moda antiga. ela respirou aliviada, nem doeu mais. saiu de lá feliz da vida, planejando as coisas que teria que colocar em ordem quando chegasse em casa. saiu do prédio e ao colocar o pé na calçada o peito ardeu de novo. ela quase teve um pressentimento, mas não tinha tempo, precisava ir rápido pra casa. parou na beira da calçada, o coração doendo, olhou para os dos lados, não haviam carros. deu uma corridinha. não notou o corredor de gente do outro lado, aberto, as pessoas quase coladas nas paredes. abriu o peito dolorido e seguiu com passos decididos, tinha pressa. o médico havia dito que chegaria aos cem anos, como sua avó paterna. mas ainda assim tinha pressa, cem anos são daqui a sessenta, mas hoje ainda tem coisa pela frente. atravessou a rua que faltava da avenida, olhou para os dois lados, era precavida. olhou só para os dois lados. não percebeu o tumulto logo em frente. assalto à carro forte, bandido, vigilantes, troca de tiros. sentiu o ardido no peito mais forte e depois quente, escorrido. ouviu uns borbulhos bem lá longe. sentiu o chão contra seu corpo. tinha pressa.

Nenhum comentário: