quarta-feira, 17 de março de 2010

CHOVEU ENQUANTO EU DORMIA

Há dias seus olhos eram só umidade. o vento secava e lá vinham outras molhações. estava no mundo e não sabia que mundo era esse. não reconhecia as formalidades da vida. seus olhos não podiam ver como os demais, o que viam era diferente. tentava se comunicar, mas ao invés de comunicação as pessoas só viam apanhados de palavras e sons. passava semanas com os olhos escorridos. certo dia seus olhos perderam até a cor, de tantos rios que passaram por lá. eles diziam que ela sofria de uma certa melancolia, ela não sabia o que era. mas sabia que dentro do peito ardia uma dor, que nem se sabia de onde vinha. foi ficando calada. descolorida. tolida por um mundo que ela não entendia. sendo agredida cada vez que respirava. foi fechando as portas e janelas. foi ficando cada vez mais, o menos que nunca quis ser. seus passos firmes foram se descolando. um dia, perdeu uma mala repleta de palavras, se perdeu. na manhã seguinte, acordou como num dia normal, pegou uma sacola plástica de mercado, separou algumas coisas que queria ter por perto. bem pouco coisa. foi ao espelho do banheiro e deu uma boa olhada, despediu-se com um breve chacoalhar de dedos. caminhou até a sala, saiu e deixou a porta aberta. não precisaria mais de chaves. pensou que seria bom ter alguma mão para segurar, na falta dela, levou uma luva entrelaçada nos dedos da esquerda. pegou o ônibus, sentou no fundo, olhou pela janela. guardou tudo em saco plástico. desceu no ponto final, caminhou umas quadras, nem com pressa, nem com lerdeza. avistou os grandes portões amarelos de ferro. avistou a placa que indicava a entrada. andou sem olhar pra trás. adentrou ao local todo pintado de amarelo, das paredes ao teto. se encaminhou ao balcão de informações. perguntou sobre os procedimentos para entrada. mostrou o conteúdo da sacolinha. alguns pertences foram retirados, mas ela não ligou. uma outra mulher apareceu, era branco contra amarelo. tirou um grande molho de chaves do bolso e abriu uma porta depois da outra, num grande corredor. indicou com a mão a porta que ela deveria entrar, sem palavra ou som. melhor assim. ela entrou e viu tudo colorido. uns já vieram ao seu encontro. eram palavras e sons soltos pelo ar. ela as pegava com as pontas dos dedos e fazia brincadeiras em pleno ar. era bem vinda. aquele lugar era seu.

Nenhum comentário: