quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Sobre tomar decisões.



Um mundo de possibilidades. 

Eis o que se apresenta todos os dias. Eis algo considerado uma das muitas dádivas da vida. Escolher. Ter o que escolher. As possibilidades. E que são tantas. 
Uma vez ouvi um senhor que dizia assim: Melhor ter que fazer uma escolha, do que não ter o que escolher. E de lá pra cá tenho pensando muito a respeito disso. Melhor ter o que escolher...
Sou fatalista. Tenho uma visão diferenciada das coisas. Não sou pessimista. Não. Fatalista. Uma coisa um tanto diferente... Gostaria, é claro, de ser otimista. Mas não sou. E não sei se algum dia conseguirei ser. 
É mesmo necessário mudar tudo o que somos? Se uma coisa não é boa, ou não é como a maioria, devemos nos adequar?

Me sinto inadequada. 

Sendo fatalista, meus pensamentos me traem, e tendem a me levar por um caminho não muito espetacular. Aquele arco-iris com pote de ouro no fim não é exatamente o que me é sugerido. E os episódios vão se acumulando. E com esse acumulo o peso que carrego sobre os ombros vai aumentando. 
"Só quero saber do que pode dar certo. Não temos tempo a perder..." diz a música. Mas será? Como saber que pode dar certo? Sempre vai dar certo? Depende do ponto de vista, alguns dirão. Não sei. Acho que existem realmente mais coisas interferindo em nossas vidas do que imaginamos. E numa dessas não é tão simples assim. Vai dar certo e tudo dá! Às vezes, por mais que queiramos que as coisas deem certo, elas não dão. E não sei se é só comigo, uma fatalista em potencial, ou com o mundo todo.

E então precisamos tomar uma decisão.

E depois de tomá-la, ainda por cima sustentá-la. E viver como se nada tivesse acontecido. Pois fazer o que volta e meia eu faço, ficar pensando que poderia ter sido diferente, que poderia ter tomado outro caminho, outra decisão, vai matando a vontade de viver. Mata bem pequeno, discretamente, aos poucos, mas matar é matar, muito ou pouco. 
E então mais uma vez é hora de desapegar. Escolher e ponto final. Saber que sempre haverá uma possibilidade diferente, ou não. Saber que não há como saber. E seguir. Parando aqui ou ali. Pensando o suficiente. Pois como diria meu pai - Pensando, morreu um burro!

Não há como viver sem decidir. (ponto final)

sábado, 23 de fevereiro de 2013


QUEIMANDO EM BANHO-MARIA



Tudo começa em um dia que começa com algumas notícias. A impressão que fica depois disso tudo, é que todos os dias se iniciam com notícias. Ouvi a todas elas, algumas eram verdadeiras, outras eram ainda mais verdadeiras e o noticiário termina com aquelas que eram puramente falsas, amplamente mentirosas, mas nessas tinha maior facilidade de acreditar. Eram essas as que eu realmente acreditava, as inacreditáveis.
Quando o telefone tocou e quebrou seu voto de silêncio, titubeei em atender. As noticias de verdades verdadeiras me deixaram farta, farta de ouvir e ainda mais farta de falar. Não quis atendê-lo, mas sempre que faço isso à campainha toca quase que instantaneamente. Não teria paciência para atender à porta numa manhã assim. Não queria falar, somente ouvir, meu velho telefone no qual se discava girando os números, ainda não me permitia conversas sem palavras. Minhas inúmeras expressões faciais de nada ajudariam. – Alô!?...Sim... não...talvez sim...certamente que não...obviamente sim...não...não...não...sim... Eu já te conhecia e imaginava apenas pelo tocar do telefone. Era sempre uma sinfonia completa, composta de olhos e olhares, bocas e palavras, saliva e sabores, cabelos e corpos, tom sobre tom. Eu já te conhecia, era minha notícia diária favorita, mentirosamente verdadeira.
Poderíamos até ir a uma sorveteria qualquer, tomar sorvetes e comentar as notícias do dia. Mas tinha que ser aquela sorveteria da pracinha dos mortos, com casquinhas sempre meio moles, meio crocantes e com sabores no cardápio que nunca estavam disponíveis. Sorvete na sorveteria, coisas simples, fúteis e indispensáveis que sempre nos agradaram. Mas para que ir a sorveteria, se o sorvete derreteria ou em nossas mãos ou em nossas bocas, ouviremos os gritos e berros da multidão, inclusive os nossos, mais internos, mas ainda assim classificados como gritos e berros. Teríamos que correr junto à multidão que se formará ao nosso redor. Com sorte e velocidade a multidão se formará exatamente atrás de nós. Teremos que correr junto ao calor da massa, junto à casquinha repleta de massa de sorvete, sorvete que é incompatível com o calor e se derreterá... Ainda assim será sorvete... Ou não seremos mais os mesmos? E já sei que se o calor, fruto do banho-maria em que vivemos continuar, e se eu tiver que correr da multidão exatamente ao seu lado, derreterei também. Como será que tomavam banho essas marias? Eu sempre me derreto em dias assim.
Aqueles gritos daquela multidão ainda ecoavam pelo ar, quando percebi o telefone nas mãos e um eco de tu... tu..tu...tuuuuuuuuuu... Tanta coesão numa conversa imensa, que quase me tomou todo o dia. Perdi as notícias da hora do almoço. Meras reprises das matutinas, porém com menos verdades e menos mentiras, as mesmas notícias de todos os dias. Aquela conversa separada por um bocal que se ouve, outro que se fala, mas nunca os dois ao mesmo tempo, nunca juntos. Quase uma inutilidade ter dois bocais, um para ouvir e outro para falar, quase inútil ter dois ouvidos e uma boca, ou bem se fala ou bem se escuta. Prefiro misturar as duas versões. Prefiro um sorvete de maria-mole em casquinha mole, poupando energia e gritos e corridas e multidão e ainda assim me derreteria. Prefiro as noticias da noite, mais verdadeiras e que eu não atenda ao telefone e a campainha toque junto ao trimtrim do aparelho de “grambell” e que no caminho para a sorveteria tenhamos uma discussão sobre o sabor de sorvete de maria-mole que pediremos e que eu me derreta aos poucos e que você, você minta pra mim...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

SOBRE FILHOTES...

UM POR TODOS E TODOS POR UM.




Dois filhotes. Numa beira de estrada. Nada pra comer. Nada.
Duas mulheres apaixonadas, pela vida, pelos bichos, pelas coisas bonitas.
Dois filhotes dentro dum carro, cruzando a autoestrada, indo pra um lugar distante, indo para uma casa.
Testes. Comidas. Carinho. Vida renovada.
Dois filhotes brincando no meio da sala. Pedido e dando carinho. Dormindo nas almofadas.
A vida fluindo por entre e pelos dedos de todos.
Uma casa.
Uma verdade.
Uma história longa para ser contada.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A DEDICATÓRIA



A DEDICATÓRIA



Entrou na loja com o único intuito de comprar um livro. Que seria trocado mais tarde por um ingresso para leitura beneficente. Não estava interessada em nenhum título em especifico, qualquer um serviria desde que o preço fosse atrativo. Um funcionário direcionou-se a ela, e perguntou: - Posso ajudá-la? E ela com as maçãs levemente rosadas, que aparentavam um sublime pudor, mas que na realidade eram reflexo da correria do dia, respondeu: - Boa tarde, gostaria de um livro, clássico, talvez até de teatro, porém com um preço acessível. O rapaz se mostrou solicito, encaminhando-a a uma estante repleta de bons clássicos. Fez-lhe a observação de que ficasse a vontade e que se precisasse de ajuda era só chamá-lo. Ela olhou por alguns minutos os pares de livros, e lembrou-se de que não tinha muito tempo para escolher. Viu então um clássico da historia do teatro francês e consultando o preço, que era mais do que atrativo, resolveu levá-lo. Chamou o atendente, que a encaminhou até o caixa, com a recomendação de que deveria voltar mais vezes. O que a deixou realmente corada. Pagou pelo Molière e saiu, certa de que já estava mais do que atrasada.
No caminho para o compromisso, que gerou a visita ao sebo, recebeu uma ligação que provocou em seu peito, um turbilhão de emoções. O dia havia sido tão cheio de compromissos, que esqueceu que havia prometido a sua mãe, buscar bolo, salgadinhos e afins para a festa de aniversário de seu pai. Respondeu a mãe que estava a caminho, dando disfarce ao seu esquecimento. Partiu para a panificadora, que para sua tristeza, era quase do outro lado da cidade. Chegou o mais rápido que pode. Quase gritou com uma atendente, que ficou falando ao telefone, ao invés de atendê-la. Quase gritou com todos os presentes, tamanha era sua urgência e necessidade de estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo. Desafiando as conhecidas leis da física. Conseguiu ela mesma, carregar as encomendas para o carro, e saiu apressada. Chegando a sua casa, foi logo dispondo o lanche na mesa e chamando a mãe, pai e convidados para cantar o “Parabéns”. Alguns até estranharam, outros atribuíram ao fervor e pressa típicas da tenra idade. Cantou junto aos pais, aguardou que o aniversariante apagasse as velas e por fim, jogou dois ou três salgadinhos na boca e despediu-se correndo. Não sabia se chegaria a tempo.
Entrou no carro e por alguns segundos parou, olhando com seriedade o livro. Lembrou do tempo, que por fim não pára, e saiu tão rápido quanto um fio de cabelo ao vento. Buzinou varias vezes durante o caminho, que parecia longo demais. O trânsito era lento, as pessoas pareciam sem pressa, e ela contando cada segundo ao relógio. Lembrou-se, não uma nem duas vezes, que dirigir, de fato, não era de suas habilidades, nem a melhor e muito menos a mais apreciada. Enfim, chegou ao local do evento cultural. Enfiou o carro em um estacionamento próximo e saiu em carreira disparada para o teatro. A alguns metros de distancia, procurava sinais de colegas e conhecidos, para ter a certeza de que o espetáculo ainda não havia começado. Eram 19 horas e 10 minutos cravados. Temia não poder mais efetuar a troca de ingressos, que já sabia, eram procuradíssimos.
Quando adentrou ao saguão, avistou colegas aglomerados em sofás e poltronas, junto a uma parede com a arte de Potty. Não teve ao menos tempo de apreciar àquela bela visão. Suas palavras saiam em meio profundas inspiradas e expiradas sôfregas. Estava exausta. Cumprimentou de maneira rápida e já se ateve a pergunta dos ingressos. – Escute, vocês já estão com seus ingressos? Será que ainda tem algum? Gente que correria! Ofegava. Poucos responderam que tinham. Os demais estavam na esperança de que a tutora da turma pudesse interceder por eles. Ficou ainda mais preocupada, porém com a certeza de que não estava sozinha, do lado de fora do espetáculo. Era uma moça ainda muito jovem, com cabelos negros e profundamente lisos, herança de seus ancestrais orientais. Orientalidade que lhe trazia lindos e vivos olhos puxados e uma pele clara como a neve, a face rosada pelo frio e pressa. Um sorriso repleto de dentes marfinosos. Sorriso largo e aberto, sorriso urgente. Mãos irrequietas, quase italianas. Expressavam-se muito mais as mãos, do que as palavras, em certos momentos. E a voz de flauta doce, aos ouvidos dos mortais. Sentou-se em um dos sofás, estava realmente cansada. Aguardava a chegada da tutora, para dar-lhes o parecer. Deixou-se levar pelos assuntos alheios que surgiram, quase querendo apenas ouvir, sem ter que falar.
Ouviu longe alguém, que não pode nem reconhecer, perguntar-lhe: - Nossa, será que vejo um clássico de Molière, passeando por aqui? Demorou alguns segundos para responder, localizou-se primeiro. Encontrou quem proferira a pergunta. – Sim, achei que seria mais conveniente num evento como este trazer um clássico. – Nossa, muito aplicada você. E ela: – Na verdade fiquei com receio de passar vergonha. Sei lá... Imagine se chego com um livro qualquer e sou repreendida na frente de todos. Sou cheia de manias. E sorriu largamente. O que fez os demais sorrirem também, ainda que não inseridos no contexto.
Nisso surge a tutora, quase irreconhecível, diante dos pupilos. Pararam quase de imediato, e os que não se acharam imóveis, ficaram perdidos, tentando achar o motivo para a paralisia dos demais. A tutora adentrou ao salão, tão cheia de vigor, que parecia caminhar numa marcha de vitória. Era trazida por um par de sapatos pretos, que pareciam ter sido tirados de uma boneca adulta, eram intensamente negros e brilhavam de lustro. As pernas delineadas eram cobertas por uma malha preta e elástica, que as faziam movimentar-se com certo bailado, apesar dos passos firmes. Um short, blusa rubra de lã quentinha e um cachecol, completavam o conjunto da obra. Os cabelos igualmente rubros, sedificavam tudo por onde passavam. Tinham as pontas em posição de sentido militar, todas viradas para fora. Os olhos eram vivos, com um brilho quase incomum, e a boca carmim. Cada qual olhava por seus próprios motivos de admiração, mas o que de fato não faltava, era admiração intensa. Logo surgiram os comentários pertinentes. – Nossa... – Fi-fiu...
– Nem reconheci... – Está linda... E assim seguiram-se, até que ela fez o comentário que estava sendo esperado por quase todos. Para reparo dos presentes e como não poderia deixar de ser, a fala começou com uma gargalhada daquelas. – Hahaha...Então, estão todos já com seus convites em mãos? Logo as palavras se atropelavam, queriam falar todos ao mesmo tempo. Outra gargalhada, boa, leve, suspirante. – Calma gente, eu não consigo escutar, muito menos entender. Perceberam, e por eliminação, de maneira imediata, um interlocutor, explicou a situação. – Quase ninguém tem convite, achamos que a troca de ingressos seria ás 19 horas. Mas informaram que começou ás 18 horas e trinta minutos depois já estavam esgotados. – Não acredito, que isso gente... Seu jeito de ficar nervosa era tão calmo, quanto sorridente, havia até uma gargalhada brava, quase não acreditávamos. – Vou resolver isso já, não se preocupem. Ficaram todos esperando e as lamurias eram gerais.
     Como nem só de reclamações se perfazem as conversas, uma nova observação e um pedido, em relação ao livro de Molière. – Será que posso dar uma olhadinha nesse clássico? E ela ainda longe: - Claro que pode. E esticou a mão com o livro, e parecia não ter a intenção de sequer olhar. Mas no momento em que sua mão foi ao encontro da solicitação, sentiu um aperto no peito, quase que se estivesse sendo separada de um ente querido. Parou a mão no caminho, olhou profundamente para o exemplar. Quis quase trazê-lo de encontro ao peito e apertá-lo forte. Não quis parecer insana. Entregou-o a contragosto. O receptor abriu-o com um enorme respeito e um também enorme cuidado, dedilhando as páginas com carinho e admiração. Folheou as primeiras e logo comentou. – Nossa, tem até dedicatória. Ela foi levada a olhar, ainda que estivesse com os pensamentos bem longe dali. O olhar que surgiu ao comentário foi tal qual tivessem chamando a menina pelo nome, em voz alta. Ela olhou com aflição para o livro e para a mão que o segurava. Num salto foi de encontro à mão e tomou-lhe o exemplar.
    Sentou-se novamente, e o rapaz que até então estava com o livro, olhou sem entender nada. Não teve cuidado e muito menos respeito pelas folhas que compunham a obra. Saiu folheando rápido para achar a tal dedicatória. Chegou ao local, onde estavam as palavras escritas em letras miúdas e manuscritas, com caneta azul esferográfica. Parecia que as letras brincavam de ciranda no papel. Estavam embaralhadas para suas vistas. Apertou ainda mais os olhos e respirou quase suspirando. Parou. Chegou a fechar os olhos e tornou a abri-los. As letras cessaram a brincadeira e tornaram-se legíveis. Ela leu uma vez em seus pensamentos e não se conteve, tornou a lê-la em voz alta e quase gritada. Os presentes, colegas e demais que estavam naquele saguão foram obrigados a fita-la, com certa surpresa. E ela em bom tom disse: - “Madeleine, que este livro seja o candelabro a iluminar seus caminhos artísticos e sua vida daqui para frente. Sei de sua ânsia pelas artes e suas vontades de atriz e diretora, logo, espero que Molière lhe ajude a trilhar o melhor caminho que puder. Com carinhos e muito amor, Clara Poquelin. Setembro de 1837”. Terminou com olhos rasos d’água e sentou-se como se estivesse em um transe. Todos pararam de olhar, alguns a julgando louca e outros apenas excêntrica, houve até os que pensaram que fazia parte do espetáculo, que começaria em alguns minutos. Ficou abraçada ao exemplar, até que a tutora apareceu e começou a recolher os livros para trocá-los pelas entradas. E ela ali, sentada e abraçada com o livro. Chegou sua vez de entregar o exemplar. Não cedeu, continuou abraçada as paginas amareladas. Vendo que a tutora insistia em recolhê-lo deu uma desculpa impensada. – Ah, estou com certa pena. Sei que não devemos nos apegar as coisas materiais. Mas na hora em que peguei o livro em minha biblioteca, não percebi que se tratava deste livro. Não gostaria de me desfazer dele. E a tutora, ainda mais delicada do que de costume. – Tudo bem, sei como são essas coisas. Tenho um exemplar sobrando, caso algum aluno esquecesse. Vou emprestá-lo a você. E ela não conteve um sorriso de salvação.
    Foram todos chamados a entrar na sala de apresentações e ela foi também. Braços cerrados em torno do livro, como se carregasse uma cria. Sentou-se em uma das cadeiras vagas, pôs o livro no colo e o acariciou, como se lembrando de alguém. O colega que presenciou tudo, a olhava, com certa inquietação. Não sabia o que pensar, de livro comprado ao acaso em sebo, transformou-se em exemplar de biblioteca particular, e tantas caricias ao pedaço de papel. Acreditou que nunca saberá o que se passa pela cabeça das pessoas. Nunca irá entendê-las. E ela passou o espetáculo todo, com o dito no colo, sendo acariciado incessavelmente, e ele passou o espetáculo todo, observando a cena e tentando dar desfecho ao caso.
   Ao termino da peça, saiu correndo do teatro, sem despedir-se de ninguém. Foi observada por mais de um dos presentes. Entrou em seu carro e colocou o livro, com o máximo de cuidado em cima do banco do passageiro, olhou por longos minutos, sorriu sozinha, não disse uma palavra sequer. Seguiu para sua casa, ao entrar, não deu importância a ninguém. Subiu para seu quarto, com o livro nos braços. Chegando ao quarto rosa, colocou o livro em cima de sua cama e olhou mais de uma vez. Ligou o rádio, escolheu a música favorita, sorriu para si mesma e para o livro, dançou para os dois. Pegou-o novamente e dançou com ele, rodopiou pelo quarto, como se estivesse abraçada ao seu par ideal. Dava gargalhadas, sorria, cantava, tudo com o livro em evidência. Sua mãe ouviu ao longe as risadas e foi participar da alegria da filha. Viu-a rodopiante com um livro nas mãos, não quis interromper, encostou novamente a porta do quarto e saiu, e ela permaneceu lá, feliz. Por várias vezes se jogava na cama, elevava o livro, balbuciava algumas palavras para ele e tornava a dançar. Passou algumas grandes horas nesse estado. Esqueceu quem era nesse estado. Fez um mundo para ela e o livro. Adormeceu com o livro ao seu lado, um sorriso nos lábios e seu mundo ao redor, rodando. Sua mãe foi até lá para vê-la, esticou por cima de seu corpo um cobertor, beijou-lhe a face e a viu dormir feliz.
    Acordou no dia seguinte e por outros tantos sem vontade de sair do quarto. Estava feliz. Tinha sua música, seu livro, sua dedicatória, sua vida. Estava feliz. Sua mãe e seu pai se preocupavam, estava sempre na rua, com amigos e vizinhos, tinha sua vida. Estava agora há dias em seu quarto, com um livro que a acompanhava em tudo. Estava sempre a ouvir as mesmas músicas, dançava insanamente, quase nada comia. Dormia tarde, acordava quase ao meio-dia. Parecia feliz, dizia estar feliz. A família com pensamentos funestos. Ela com pensamentos desconhecidos. A preocupação aumentando, a visita de um médico da família. O diagnóstico, saudável, não aparentava doença alguma, pediu exames de rotina, solicitou uma visita de um psiquiatra, apesar de feliz, não aparentava depressão, coisas da idade, dizia ele. A mãe a levou ao laboratório, com o livro a tira-colo, fez os exames necessários, voltou para casa. Ligou sua música, dançou e sorriu, riu a tarde toda, em conversas cochichadas com o livro. Volta e meia abria-o na página em que havia uma dedicatória, sorria e chorava ao mesmo tempo. Beija a página, repetidas vezes. Dançava. Deitava-se na cama, de barriga ao vento e com os braços no ar, o livro sendo admirado pela milésima vez. A mãe sentia um aperto no peito e chorava na porta do quarto rosa. Ela sequer notava a presença da mãe. Estava feliz.
    O psiquiatra recomendado pelo médico da família veio visitá-la, foi recebido no quarto da garota. Fez inúmeras perguntas, que foram respondidas com total displicência. A mãe já havia comentado sobre o livro, o psiquiatra pediu para vê-lo, ela mostrou de longe, não permitiu que tocasse. Tentou observar sinais de depressão ou o uso de drogas, foi tirada do quarto, e o médico investigou cada canto do rosa. Nada encontrou. Não era depressiva, não usava drogas, estava feliz. O médico sugeriu uma doença rara, que poderia ser genética e que causaria demência nos pacientes. Os pais não aceitaram, era muito jovem e de família muito saudável. Choraram abraçados, sofreram junto, e ela em seu quarto, feliz como nunca.
    Abandonou a faculdade de Direito, já estava quase por se formar. Esqueceu todas as atividades que se passavam do lado de fora daquele quarto rosa. Largou as aulas de teatro que tanto elogiava, nunca mais foi vista pelos colegas de lá, e não se importava, tinha seu livro, sua dedicatória. A tutora por vezes comentava sua desistência, ao fazer a chamada recordava seu rosto e comentava aos demais. Jean Paulo, seu colega que presenciara o episódio do dia do teatro ficou com certa impressão e resolveu procurá-la. 
    Descobriu endereço e telefone, ia sem avisar, mas achou melhor certificar-se. Ligou e ouviu sua voz um pouco envelhecida, parecia de fato a colega, uns anos mais madura. Descobriu por fim que era sua mãe, explicou que a conhecia da turma de teatro e que estavam todos sentindo sua falta. Marcou uma visita no fim da tarde. Era terça-feira, era calor. Saiu de seu trabalho e foi ao endereço que tinha em mãos. Ao chegar tocou a campainha e foi recebido por uma jovem senhora, muito parecida com sua colega. Disse à mulher que gostaria de visitar Julie. Ela sorriu, sabia de quem se tratava, convidou-o para entrar e não perdeu tempo em chamar a filha para a sala. Sabia que ela não sairia de seu mundo rosa. Encaminhou o colega até o quarto da filha e ficou na porta observando a cena. Ela não o viu entrar, estava ouvindo a mesma música de sempre, rodopiava como sempre, parecia bem feliz. Ele entrou, sentou-se a penteadeira e apenas fitou-a. Depois de algum tempo ele interferiu em seus rodopios, chamou-a de Madeleine. Ela de pronto atendeu-o, sua mãe, na porta do quarto espantou-se. Jean Paulo a olhou e ela retribuiu o olhar. Aproximou-se a passos lentos e sorriu ainda mais. Chamou-o não de Jean Paulo, e sim de Clara Poquelin, sorriu novamente. Correu para seus braços, abraço-o e beijou-o com fervor apaixonado. Dançou, brincou, balbuciou outras palavras, que nem ao menos Jean entendia. Gargalhava e dizia-se muito feliz. Por fim largou o livro e rodopiou com Jean por todo o quarto, a música já havia acabado. Estava feliz.
Jean já havia ouvido falar no livro de Molière que tinha sido enfeitiçado há mais de um século, não pode acreditar. Muitos anos atrás uma pobre bruxa ficou enfeitiçada pelos encantos de uma garota branca como a neve, com um sorriso tão largo que poderia alcançar as duas pontas do mundo. Viu-a dançar rodopiante em uma festa. Encantou-se de tal maneira que desejou ser a própria garota e ter sua beleza para si. Tentou por dias se fazer linda e sorridente como a jovem, sem sucesso. Era velha e feia, dominada pela carga de suas magias, envelhecida pelos seus feitos de maldade. Não era uma bruxa de contos de fadas, dessas que tem um caldeirão e uma verruga na ponta de um nariz obtuso. Era apenas uma mulher comum, com a face marcada por inúmeras rugas e tristezas. Sua magia baseava-se em frases ditas em momentos de loucura e inveja, desejava possuir o que era alheio. Perseguiu a menina por tempos, até que cansada de tanta perseguição a menina lhe trouxe um espelho e uma flor. Disse-lhe que a beleza vem de onde não podemos ver e entregou-lhe o espelho e a flor. Ela não pode entender a pretensão da menina, olhou a flor, que de imediato murchou em suas mãos e olho-se no espelho que rachou em milhares de pedaços. Ficou inundada de ódio, escreveu com palavras doces em um livro muito apreciado pela menina, uma dedicatória enfeitiçada. Colocou novamente em suas coisas e esperou. Depois de algum tempo correu o boato na cidade, de que a linda menina que vivia dançando nas festas com alegria e satisfação jazia louca em seu quarto, abraçada a um livro. Ela em voz mais do que alta exclamou a todos: - Ficará até o fim dos seus dias presa a sua beleza e alegria em seu quarto rosa, que será seu mundo. Gargalhou maldosamente e saiu. Nunca mais foi vista. A menina enlouqueceu cada dia mais, apesar da visita quase diária de médicos, curandeiros e amigos. Deitou-se um dia para dormir abraçada com seu livro e nunca mais despertou. Não envelhecia, não acordava, não morria. Um dia sua mãe tentando acordá-la retirou de seus braços o livro e jogou-o contra a parede. Sua filha envelheceu 100 anos em alguns minutos e pereceu. A mãe se achando culpada pela morte da filha, fugiu de casa e da cidade, tentando se esconder do mundo. O feitiço se manteve naquele livro e se reavivaria a cada menina alegre e bela que o tocasse e lesse sua dedicatória com o coração.
Jean tinha certeza, Julie estava enfeitiçada. Continuou bailando com ela e murmurou a sua mãe para que lhe trouxesse uma bacia, álcool e fósforos. Em poucos instantes, tinham no meio do quarto rosa, um clássico se transformando em uma grande fogueira. Julie se aproximou com os olhos chorosos da fogueira, como que se despedindo e direcionou-se a cama. Caiu em um sono profundo. A mãe, desesperada, achando que a filha havia morrido, correu para acudi-la. Jean Paulo conteve as lágrimas da mãe e saiu, fechando a porta do quarto, com a menina dentro. Recomendou a mãe que não a incomodasse, o tempo vai passar, explicou ele. O tempo estava passando, dias penosos em que a mãe via a filha em sono pesado no quarto rosa.
    Após 30 dias de sono profundo, em uma manhã fria de inverno, desce a escadaria, se junta à família no café, a menina. Para na escada por alguns momentos, olha para a família, suspira alto. Desce degrau por degrau, sorri largo, cantarola, boceja. A mãe olha com ternura e lágrimas que lhe inundam a face. Os demais demonstram alegria e fé. Ela comenta: - Esta noite dormi como uma criança. Papai me desculpe por não ter participado mais de sua festa ontem. O dia foi exaustivo. E vejam se não me deixam dormir até tarde amanhã. Tenho afazeres fora desta casa. Riu com toda a sua jovialidade. Sentou-se a mesa e comeu com apetite voraz. A mãe se levantou, lhe beijou a face rosada e se dirigiu ao telefone. – Sim ,Jean, agora está tudo bem. Ela enfim acordou. E ele admirado, pois ainda não podia acreditar. 

– E ela parece saudável?    

– Parece feliz...

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

SALVADOR NÃO É UMA CIDADE.

É UMA CALAMIDADE.




E muito me entristece quando eu digo que moro em Salvador e as pessoas invejam tal condição. Se fosse para falar das horas e dos desgostos que passei por aqui, ficaríamos um tempo nada agradável conversando. E a cada dia que passa me convenço mais e mais do que se trata, de que tipo de cidade temos por aqui.
Pacotes dos mais variados biscoitos, papel, plastico, papel higiênico usado, eis alguns dos presentes que já recebi, via janela, dos meus vizinhos. Xingões, fechadas, buzinadas por parar para pedestres atravessarem,  dois espelhos laterais, uma placa e um para-choques raspados. Falta de educação. Falta de educação. Falta de respeito. Falta de respeito. Mal atendimento desde os serviços públicos até os privados. (Experimente autenticar um simples documento aqui...) Sujeira, lixo nas ruas, copos de sorvete usados jogados os seus pés, gente fazendo xixi no seu pé. Baratas, traças, ratos, moscas, pernilongos, mosquitos da dengue, formigas. Poluição e praias sujas. Horas e mais horas esperando por atendimento médico (particular) e um atendimento vergonhoso, que nos faz olhar no espelho para verificar se nos transformamos em porcos.
São muitos os motivos para partir, pois para arregaçar as mangas e fazer a diferença, me desculpem, mas eu não topo. Temos que saber até onde vão as nossas forças, até onde vão as nossas possibilidades. A Bahia é dos baianos, não é minha.
E depois todo aquele blá-blá-blá. Depois toda aquela propaganda de venha conhecer. Todas aquelas fotos que mascaram, não tem cheiro e são só DESCANSO DE TELA. O que se vê por aqui é o abandono, é falta de vontade politica e falta de cobrança do povo. Pois pleitear por feriado na quinta de carnaval todo mundo quer, pular nos blocos de graça todo mundo quer, mas movimentar manifestações para que as coisas mudem, isso ninguém quer. Nem eu quero!
Desculpem, mas é preciso acabar com o romance. É preciso desmistificar Salvador. Aqui não é uma terra de alegrias sem fim. Aqui não é um lugar em que todos sorriem e são receptivos. Aqui não é um bom lugar para viver. Aqui é só mais um desses pedaços do Brasil em que não se pode confiar.

Semente.







Plantou flores por todo o jardim. Cuidou como pode. Cuidou do frio, da chuva, dos gatos, dos cachorros, dos pés cegos que teimavam em pisar na recém-nascida, das pragas, dos pássaros. Cuidou mais do que de si. Passou horas e mais horas, imersa naquele mundo florido. Tirava folha amarela por folha amarela, marrom. Conversava com elas. Eram sua companhia num mundo tão cheio de não florescidos. Tinha coragem de acordar cedo num dia de geada, logo quando o sol saia, pra retirar de cima das suas companheiras o plástico que as cobria do gelo e deixar que respirassem em paz. E não tinha quem não admirasse tal jardim. Não tinha quem não desse uns dois ou três minutos do seu dia para ver aquelas belezuras. Mas a beleza era só o fim. Gostava mesmo da troca diária, eu te cuido, você me cuida. Eu não me cuido. Nada nas costas. Nada nas mãos. Nada por fora. Mas por dentro, esqueceu-se de plantar algumas sementes necessárias para seu crescimento. Esqueceu que dentro também é jardim. E deixou crescer erva-daninha, deixou o mato grande. Deixou tanto. Já havia passado mais da metade, supunha. Tinha filhos, netos, crescidos, floridos. Dera o nome das filhas de flor, ROSA, MARGARIDA E VIOLETA. Já estavam crescidas.
Foi sentindo o tempo baixando sobre seus ombros. Foi sentindo cada acordar cedo. Não contou a ninguém, nem ao menos as suas amigas de raízes e cores. Continuou seguindo em frente. Como se isso fosse o que deveria ser feito. Acordando, mesmo que dolorida, por dentro. Cuidando, mesmo que não de si. Colhendo.
E o que era pouco se tornou muito. Muito difícil de suportar. Mas mesmo assim foi ao médico sobre seu próprio eixo. Ereta, feito haste de margarida. Havia aprendido muita coisa. E depois tudo aquilo que já se sabe, que já se viu. O revirar das coisas de dentro do pior jeito, aquele sem jeito, sem tato. Aquele que fotografa pelo avesso. E descobriram o que ela já sabia. Tinha dentro do corpo umas ervas-daninhas. Já grandes, já crescidas. Sempre se perguntava de onde vinham as danadinhas, as daninhas. Seria injusto julgar o vento, os pássaros, as formigas. Seria injusto julgar que alguma coisa pudesse trazer o mal. Mas ele vinha. Não se sabe nem como e nem de onde. Não se sabe ou se diz não saber...
Era um mal irremediável. Se pegasse pequeno disse o médico, arrancava pela raiz, tirava, extirpava, jogava veneno. Mas agora era como uma árvore havia criado raízes profundas e não se podia mais arrancar, sem tirar dali um grande pedaço de terra, por assim dizer. Ela não sabia se ele sabia da sua predileção por plantas, mas não havia jeito melhor de explicar. Jeito melhor de entender. E foi pra casa. Pro seu jardim. Estava sossegada. Com suas plantas, com seu quintal, com suas coisas, com suas amigas.
E a peneira foi se abrindo. Já não havia como não deixar o sol penetrar pelos furos imensos que ali se encontravam. O sol. Tão bom tão necessário. Agora não mais. Não mais ali. Ia ao hospital e voltava. Pedia pra sair. Assinava a rendição. Dizia que sabia o trabalho que estava dando. E foi ficando cada vez mais envergada. Envergonhada de não mais poder cuidar das suas flores, do seu jardim. E cada vez que ia demorava mais pra voltar. E quando voltava, não eram todas que tinham sobrevivido. Sofria por todas.
Mas um dia acordou bem. Sentia-se revigorada. Reerguida em sua haste tão gasta. Regou as plantas, que respiraram aliviadas. Arrancou todo mato. Cercou com palitos e fitas, coloridas. Passou o dia do lado de fora. Vez por outra ouvia um grito de "entra!", não ligava. Estava entretida. Mais do que isso, estava certa. Só depois do sol, entrou. Resolveu dar jeito em umas coisas, que fazia tempo estavam carecendo de ordem. Gavetas, armários. E lá no fundo de uma caixa no fundo do fundo, um envelope. Sementes. Pequenas. Não se sabia o que eram e nem de onde tinham vindo. Se foram guardadas, ganhadas, compradas. Se surgiram ali como surgem as ervas-daninhas. 
E o relógio do corpo deu sua badalada. Final. Chamou as filhas-flores na sala. Contou de tudo e mais um pouco. Regou todas com suas lágrimas. Disse a roupa, vestido e casaco. Tinha medo de passar frio em sua partida. Deixou-as regadas na sala e voltou ao quarto. Colocou no bolso do casaco escolhido o envelope. Secreto. Não se sabia se eram daninhas ou danadas. Curvou-se para a colheita.
Como flor que cai não se ouviu nem suspiro, nem baque. Só colhida, ainda flor. No chão. No quarto. Chamaram médico. Chamaram por tudo. Ceifada. A roupa do lado da cama.
 E como todo tempo que é passado, passa. E todo sábado ia até o jardim final da florista, MARGARIDA, ROSA E VIOLETA. Visitar as gramas. Tirar o mato. Regar a flor maior. E depois de seis meses. Já com a dor menos dolorida. Assim como acontece com tudo na vida. Lá estavam elas. E de longe viram uma coisa que as deixou regadas. Um maço grande de flores, que não se sabia quem teria levado até o lugar. E chegando mais perto viram que não haviam levado, estava. Brotou da terra. Estava plantado ali um buquê. E sorriram pensando que de tanto que gostava de flores, Deus havia presenteado. 
Agora ela sabia, não importava do que eram as sementes e sim como seriam plantadas. Estava de novo em seu jardim! Plantada...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Quem bate.

Você sabe quem bate a sua porta? Sabe quando alguém realmente importante vai bater? E se bater, você atende? Trata bem? Oferece a sua comida? Sua cama? O seu amor?
Amor não é para todos... Há os que sabem dar e aqueles que só sabem receber. E esses que só recebem, são os que mais querem. Sempre mais.






Hoje de manhã a primeira coisa em que pensei é que alguma coisa boa "vai" me acontecer. Não por querer programar o universo, nem por querer espalhar bons fluidos por aí. Pensei porque foi o que me ocorreu logo cedo, mais como uma inspiração do que como aspiração. E então postei isso numa das tantas redes sociais.

E na hora do café, para meu pequeno espanto, escutei um gato miando em algum lugar não muito distante. Mas eu moro no 19º andar. Continue comendo e o miado não parou. Precisei abrir a porta para garantir que não estava ficando louca. Confesso que abri com aquele medo de não haver gato nenhum.

Mas para minha grata surpresa, havia sim, um filhote. Desses filhotes malhados, com cinza, preto, caramelo e branco, que mais parecem um filhote de tigre. E assim que eu abri a porta, como uma visita infantil, ele entrou se nem pestanejar. E já foi olhando tudo, cheirando tudo, iluminando tudo.

Meu olhos só conseguiram refletir aquele brilho. Um gato. Um filhote. No meu apartamento em Salvador, no penúltimo andar. Compreende?

E então, como minha mãe, já fiz aparecer um bom potinho com leite fresco. Sim. Na minha casa os gatos sempre tomaram leite e nunca morreram por isso, senão de felicidade. E já começamos a nos entender. E ele começou se trançando pelas minhas pernas e depois indo de cômodo em cômodo, sem causar nenhum incomodo. Ao menos não para mim.

Ele estava procurando alguma coisa. Cheirando as coisas, querendo sair pelo espelho do corredor, olhando pela janela. Não, ele não estava perdido, estava procurando. Mas procurando o que? Posso até chutar, mas não acredito que algum dia poderei saber. Então conversamos um pouco e eu tentei bater algumas fotos e ele tomou um pouco de leite e deu alguns miados bastante sofisticados para um filhote.

Ele era alguém. Alguém que estava visitando um outro alguém. Alguém que queria dizer alguma coisa que eu não consegui, ou consegui e não percebi. E foi mágico. Uns minutos e nada mais, como a vida costuma ser.

E então eu abri a porta para que ele tivesse a possibilidade de escolher ir ou ficar. Então meu marido reclamou do barulho, a alegria, do pelo, ou sabe-se lá de que. E eu, prolongando cada segundo, continuei conversando, observando e tentando ver o que esta oculto. Um amigo oculto. Daqueles que nos deixam numa curiosidade enorme e ao mesmo tempo numa alegria arrebatadora de querer e não querer saber.

E então ele parou no capacho, olhou para mim, ficou um tempo me testando e entrou de volta, com a porta aberta. E continuou sua investigaçãozinha que me fazia rir. E depois que tudo estava assim-assim entre nós, mais um reclamo, mais um, e resolvi que ele tinha que ir. Era um menino.

Peguei ele no colo e ele imediatamente ronronou para mim. E só quem já teve um gato em sua vida sabe o que um mero ronronar significa. (Ronronar é o EU TE AMO dos gatos... Só que melhor) E se deixou levar sem reclamar de seu destino de mimimi.

E assim que soltei ele no corredor, ele voltou e me pareceu que eu o vi sorrir. Que bobagem, não é, os gatos não sorriem. Nós, seres humanos conscientes do que é felicidade é que sorrimos! E então com o coração não menos partido do que quando eu parti, o peguei de novo e me pus a descer a escadaria e o coloquei no chão num dos últimos degraus. Ele me olhou, se jogou no chão aos meus pés e com a barriga para cima pediu um adeus, que eu não pude deixar em branco.

E o tigrinho foi descendo as escadas da vida dele e eu subindo as da minha vida. E a impressão que ficou é que quanto mais eu subia, mais baixa me via. E não contive o choro ao ver que ele ia, assim como uma criança que você deixa na porta da escola lá pela segunda semana de aula e que já sabe, mesmo na sua pequenez de tamanho, o que tem que fazer.

E fechei a porta implorando para ouvir seu miado de volta, mas ele não voltou. E se voltou não miou. E joguei fora potinho de leite ainda fresco e ainda cheio. E fui chorar na cozinha, não por ele, por mim. Ele é livre.

E sentei no sofá intrigada com o aparecimento de uma visita tão inusitada, numa manhã de sexta, num apartamento solitário do decimo nono andar, de uma cidade que não é de ninguém.



Esses dias eu postei numa dessas tantas redes sociais que um dia eu iria ter um gato, mas só não sabia que dia ia ser esse. Eu ainda não sei. Alias, sei menos do que sabia ainda ontem.


P.S. Depois de vinte minutos chorando, resolvi vê-lo novamente, para saber se estava na escada, se estava na garagem. Desci os dezenove andares de escada e mais do quatro de garagem. Ele não estava em lugar nenhum. E se eu o encontrar de novo, será muito divertido. Mas se não encontrar, ficara na memória um dia de pequenos milagres, que eu ainda não consigo compreender.


Amém.