Por aparelhos...
Achavam triste. Uma moça tão nova
com uma história tão profunda. Tão longa. Tão triste. Para manter-se viva
dependia do aparelho acoplado ao corpo. Aonde quer que fosse, fazer o que quer
que fizesse. Lá estava ele, ligado, mantendo-a viva. Dando o compasso, dando a
batida. Sob o olhar dos outros, cerceando seus movimentos, suas vontades, seus
desejos. Nunca sozinha, nunca livre, sempre ligada, sempre acompanhada.
Tentavam especular saídas para a pobre menina. Para que pudesse levar uma vida
normal, social. Mas ainda não haviam chegado a lugar nenhum. Sem saída, se
dizia na época.
Mas ela não se incomodava. Era o
que dava. Era o tinha. Aprendeu desde cedo a viver só com o que dava. Só com o
que tinha. Se mantinha ligada ao aparelho, mas assim a vida tinha um ritmo que
os outros não entendiam. Ela não se entediava jamais. Fazia tudo o que tinha
vontade, já que suas vontades eram poucas, eram pequenas. Podia carregar o
aparelho para todos os lugares. Podia fazer muitas coisas que outros não podiam.
Era o que lhe bastava, lembrar dos que não podia e dar graças por poder, ainda
que menos.
Mas os outros não compreendiam. Ela
não falava com ninguém por causa do aparelho. Não ouvia o que diziam. Só lá vez
ou outra lia os lábios alheios e entendia. Mas falar mesmo não dizia. Não
respondia aos estímulos de fora. Somente aos do aparelhinho. Ficava presa
naquele mundo maquinal, onde pessoas não eram bem vindas.
Andava pela rua. Caminhando ao
passo do que havia por dentro. Ao estímulo do aparelho. Que lhe transmitia e
ela respondia. Quase um “dois pra lá, dois pra cá”. Nunca havia se desligado.
Sabia que não sobreviveria. Não precisava disso. Ser desligada do mundo.
Precisava desligar-se dele. Tudo se aprende.
Os rapazes se aproximavam. Mas não
dava certo. A coisa toda não anda sem algumas palavras, já se sabia. Sem um
entendimento mental típico dos amantes. Sem papeio, sem floreio. Eles até que
tentavam, por insistência, aproximar-se da garota do aparelho. Mexer na maquinaria,
tocar a máquina principal. Mas nada. Nem falava, nem sorria. Seguia em frente,
no seu ritmo.
Na casa só uma tia antiga. Nada
mais. Não se falavam há muito tempo e haviam se acostumado com isso. Ela falava
com o aparelho e a tia com o rádio, com os bichos, com as flores, com os
vizinhos, com as novelinhas. Tinham suas rotinas, que não se interpolavam.
Um dia começou a dançar no meio da
rua. Não se locomovia mais com passos comuns. Somente com passos de dança. De
samba, xote, bolero, pagode, rock. Nunca mais a mesma coisa. Nunca mais como os
outros. Chamaram a tia pela vizinhança aos berros. A menina, surtada, dançando
no meio da rua, sozinha. Um médico, uma ambulância. Um remédio para curar
aquela porcaria de dançar no meio da rua.
A tia correu pra casa e pegou o
papel guardado para a emergência que sabia que aconteceria. Levou pros
vizinhos, passou de mão em mão, leram em voz alta. Viram-se cada uma das
cabeças tornarem-se baixa. Viram-se os rumos se desfazendo.
Era portadora de uma
incomunicabilidade raríssima. Desde a infância. Não se soube nunca de onde
vinha e se algum dia iria. Não se comunicava com o mundo, se não por conta do
aparelho musical que mantinha atado ao ouvido 24 horas por dia. Tinha milhares
de fitas gravadas. Ouvia o mundo através do aparelhinho. Conversava com as
músicas. Respondia a cada estímulo musical que lhe caia no ouvido e reagia como
podia. Tinha apenas o que dava. O que para ela era mais do que muito. Muito
mais do que um só mundo e dois ouvidos.