terça-feira, 22 de junho de 2010

DE QUANDO VOEI MAIS ALTO

ela sempre se impressionava com o vôo dos pássaros, era coerente, era crível. eram tão pequenos, dotados de asas maiores que o próprio corpo. fazia todo sentido que voassem, bem alto, planando de vez em quando, libertos pelos céus afora. gostava de observá-los por horas, de imaginar o vento batendo na cara, no corpo, ter asas, abri-las e usá-las ao seu favor. era uma admiradora. gostaria de voar algum dia se fosse possível, mas com asas próprias.

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com o passar do tempo voou, muitas vezes. ia dali pra cá, de cá pra lá. ia, voltava. a cada vez criava expectativas, frustradas. aquilo chacoalhava, tremia, fazia barulhos, dava trancos, não havia vento na cara, no corpo, não havia a tal libertação. mas a cada vez que levantava ou aterrissava cultivava um medo crescente. aquilo não deveria voar, era grande demais, pesado demais, barulhento demais, não deveria voar. e a cada uma delas mais e mais.

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mais um vôo, sentou na poltrona, afivelou o cinto, retirou do bolsão o encarte com as instruções de emergência, olhou bem onde ficavam as saídas. era tudo inútil pensava, quando cair, pronto, não há nada mais que possa ser feito, acabou. mas era precavida, lia, observava as instruções dos comissários, inclusive no fundo d'alma desejava que uma emergência acontecesse, mas não no ar, em solo, que o vôo fosse cancelado, que ela tivesse que ir de ônibus, carro, ou qualquer outro meio que não o ar. mas nada acontecia. aceitou a bala que lhe foi oferecida, adoçou a boca amarga pela ânsia de sair daquele lugar. aceitou a revista de bordo, mas não pode ler, devolveu. aceitou os fones de ouvido, gostava de música, isso sim a fazia voar. passeou pelos canais, escutou bons sambas-canção, cantou para dentro. zapeou um pouco mais e algo lhe chamou a atenção. apertou o ouvido pra entender melhor. ficou atenta. olhou para os lados pra ver se mais alguém escutava. apertou os botões de controle da poltrona e voltou ao mesmo canal, onde duas comissárias conversavam. falavam da vida, do próximo destino, das férias. da família que ficou, do filho que dormia. do uniforme apertado, do comissário novo, do aumento salarial que não vinha. ela ficou ali, olhando de quando em quando, pra ver se ninguém estava ouvindo que ela ouvia a conversa dos outros. esqueceu que estava sobre as nuvens, esqueceu que não deveria um avião daquele tamanho voar, esqueceu de tudo. se entreteve. se entreve muito, até que ouviu atravessar a conversa um chamado agoniado do comandante da aeronave. ele dizia que era uma emergência, código 974. as comissárias passaram rapidamente pelo corredor, foram perto da cabine e fecharam a cortina que dividia passageiros e tripulação, e lá dentro não se sabia de mais nada. ela olhou para o lado, alguns dormiam, outros liam, outros ainda conversavam. tudo ao redor passou a desfocar perante sua visão. abriu a janelinha, olhou para fora. olhou. deixou cair os fones. não pensou em grandes coisas. abriu o anel e sorveu todo o pequeno conteúdo de uma só vez. reclinou a poltrona, recolheu do colo o fone, colocou novamente nos ouvidos e soltou-se em vôo alto, o mais alto que já havia voado. tudo em câmera lenta. lá de longe, mais tão longe que seria impossível alcançar, ouviu novamente a voz do comandante, ele dizia às comissárias: emergência, código 974 pro co-piloto também, ele está morrendo de fome. descobriu que quando se voa como ela voou, não há como abortar, se vai cada vez mais alto.

terça-feira, 8 de junho de 2010

NÃO TE AMO MAIS...

que seja dito que sempre te amei, mesmo que a troca tenha sido pouca, mesmo que tenha sido via de uma mão só. mas mesmo assim te amei faz uns trinta anos, sempre te bem disse, sempre te acolhi, te absorvi, te desenhei em meus cadernos, recheados de corações pra ti. tirei fotos com você, quantas nem posso contar. te escrevi poemas, letras e mais letras, te escrevi. te amei muito mais do que poderia amar. mas você sempre fria, sempre dando a todos o que não dava pra mim. sempre ignorando a minha presença, soberba. com teus presentes aos outros filho, que nem de ti saíram. e eu num canto, aceitando de bom grado as migalhas que desde sempre aprendi a receber de ti, jogadas na minha cara, como maquiagem em noite de festa. assim me fiz. mas ultimamente as coisas mudaram, todos os dias acordamos e um dia desses resolvi também acordar. olhei pra ti e vi uma monstradisforme, que não tem nada de mim, que não me diz quem eu sou e que com quem nunca me pareci. e de lá pra cá as coisas tem ficado assim, insustentáveis, irreprogramáveis, irremediáveis. convivemos porque é preciso. estamos aqui, não é? convivemos porque é um mal necessário, desnecessário dizer que não é mais por ti que estou aqui. e cada vez mais difícil te engolir, remédio amargo que deve ser tomado à seco dia após dia. e venho amargando de lá pra cá, desde que resolvi te olhar na cara e dizer que NÃO TE AMO MAIS. que talvez fosse tudo mentira, que nem sei se ao menos algum dia te amei de verdade, te dizer que na verdade, só estou acostumada com você. que não suporto o teu jeito, as tuas sem-gracices, as mesmices, as rabugentices e tantas outras ices que tenho preguiça de descrever. não te amo e ponto final. e mesmo que chore e mesmo que grite e mesmo que venha me dizer que estou levando as coisas prum triste fim. mesmo assim eu volto a dizer, não sei se algum dia te amei, mas hoje, não te amo mais. e repetirei quantas vezes for necessário, quantas vezes puder e quiser. espalharei aos quatro ventos o mal que me fez. as mazelas que encontrei por tua conta, pelas vezes que me perdi e você nem ai. tenho mágoas encravadas no coração. tenho medo do que me transformei devido à sua supervisão, aos seus ensinamentos. eu não tenho vontade de falar com ninguém, não tenho vontade de sair de dentro de onde você me prendeu. não sei mais como é sorrir aberto, como é ter alguém que me gosta por perto. não sei. e tudo isso por que, porque tive que nascer de você. e peguei teu jeito e teu mal humor e peguei o teu jeito de vestir, de andar e de comer. porque me fechei no exemplo que tive e hoje aqui estou. sem rumo, sem amor. não te amo mais, não quero falar com ninguém e muito menos com você. e teu nome apaguei da minha lista, até da lista negra eu te apaguei, me desapeguei das coisas pequenas, me despeguei de você. e teu nome não quero mais em mim, o teu nome eu esqueci e daqui pra frente, não sei se vai ser diferente, mas pretendo te chamar só de CU. não mais o nome inteiro, já que aos pedaços me fez. daqui pra frente vou te ignorar, como sempre fizeste comigo. daqui pra frente, eis que aqui estou, despatriada, desaforada em uma cidade que nunca me amou...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

era um convite para trabalhar em um restaurante ou uma nave espacial ou não fazer nada...

ele me veio com o convite, pra trabalhar em um restaurante. lavava todos os dias, de frio ou de calor, nos dias mornos, nos gelados, lavava, uma beleza, ele me viu, pela janela, passou de helicóptero, bem perto, rasante, me viu, lavava a louça de manhã bem cedo, todo os dias, jogou uma carta que era na verdade um convite, solene, letras douradas ou prateadas, dependia de onde se olhava, no convite dizia que eu estava sendo convidada pra lavar louças no seu luxuoso restaurante de uma comida caseira requentada, muito requintada. era chegar e lavar, sem afobação, sem drama, sem nada, nem detergente, nem esponja, sem nada. eu lavava a louça de casa, lavava todos os dias, de graça, sem graça, mas lavava. com convite, com letras brancas ou esverdeadas, papel fechado, selado. e acabei a lavação das que estavam na pia lá de casa, olhei no fundo, a água parada, não descia, não escoava pelo ralo onde me disseram um dia que era lugar de água escoada. tinha restos de comida e sonhos, os de nata. tinha restos de comida acumulada no fundo e não escoava. tenho nojo, eu respondi em papel timbrado. pena ter nascido tão pobre, não tem direito a nojo, não tem direito à nada, nasceu pobre ele me disse, não deveria ter nojo de comida restada. eu disse pra ela, menina pobre, pobre menina, não pode ter nojo, não de resto de comida e água. não podia ter nascido tão pobre, ele me disse. enriqueci numa sentada, da noite pro dia ganhei uma bolada e fiquei rica. continuei com o nojo, de comida, resto dele e água, caso precisasse sair dali depressa, caso precisasse de uma desculpa para largar aquele emprego e aceitar um que me fizesse rica da noite pro dia, caso precisasse aceitar emprego de lavadora de louças em restaurante ou cafézinho. cafézinho eu disse, prefiro trabalhar lavando louça em um cafézinho, tem pouca comida, quase nada. e lavei pratinho e colherinha e xicrinha e o resto de comida era tão pouco que era farelo, comidinha. terminava rápido, não que fosse esperta, não que os clientes fossem poucos, não que fosse rápida em lavar coisinhas, mas acabava rápido porque as naves da redondeza da praça quadrada eram apressadas, tinham seus horários, e eu, eu tinha que voltar pra casa. aceitei o convite pra trabalhar em uma nave espacial, todo dia, tinha que ser bem precisa, tinha que ter disciplina, mas eu tinha, tinha tudo, não precisava de mais nada. fiquei em casa, olhando o helicóptero que se aproximava e lançava tiros contra a minha janela e me acertava no peito e eu não respondia que sim e nem que não, ficava em casa. louça na pia esperando pra ser lavada, eu ficava em casa.