quinta-feira, 7 de novembro de 2013

OIRÁRTNOC OA

COMO  se você vivesse assim. Se só de costas pudesse ver. Se só ao olhar para trás pudesse compreender.

DO AVESSO.




É como sua vida se tornou. O que poderia estar por dentro agora está por fora. O que deveria proteger está escondido. E o resto, frágil, débil, todo exposto aos arranhões que as pessoas sabem oferecer. Como se ao invés de dormir você acordasse. Se quando tivesse fome achasse mais correto não comer. Eu tenho fome! E você? O que é que você tem? Você está tão calado hoje. Tão quieto. Ao contrário de falar, calou.
E se são nossos próprios pés que nos encaminham, como podemos seguir caminhos tão adversos? Tão perversos somos conosco. Sempre deixando para depois. Quanto tempo você ainda tem? Não tanto quanto você gostaria de ter bebê!
A vida não tem rédeas, ela costumava dizer. Dizer e chorar. Dizer e rir de si mesma por ter sido tão tola. Por ter acreditado tanto em si. Em dó. Em ré. Os sorrisos são roupas, que vestimos para ocasiões especiais. Os sorrisos são roupas gastas que se amarelam com o tempo. Os sorrisos verdadeiros parecem meio demodês.
Quando mesmo as coisas deixaram de ter aquele gosto? Quando mesmo o desgosto passou a ser o gosto de tudo o que conseguimos provar? Quando mesmo? Que dia é amanhã? Quando mesmo amanhã vai se tornar hoje? Quantas perguntas são necessárias para sobreviver?
Duas dúzias e meia. Meia dúzia e três. Três vezes mais do que você gostaria. Cem por cento do que pode ser. E acabamos tomando refrigerantes demais, sem nem ao menos saber do que eles são feitos. E se soubéssemos, se soubéssemos o defeito do que ele é feito... Nem assim deixaríamos de tomar. Tomar é a nova moda! É o novo preto! É básico! Diriam por ai...
E desde então somos engolidores de facas. Afiadas por nossas próprias mãos. Somos o desafio ao contrário. Somos o expectador torcendo para alguma coisa, qualquer coisa, talvez até uma coisa estranha e má acontecer. Somos o contrário do que achamos, simplesmente por achar tanto. 
E desde então precisamos de chão para o nosso pé. Para levá-lo para passear, sem tanto, sem tão pouco. E desde que as coisas começaram a se comportar como nós nos comportamos com elas, ao contrário, começamos a desver, desamar, desdormir, descomer, desfalar, desdizer, desviver.

P.S: 

Instruções para se desvirar.

Não existem instruções para isto. Aguarde. Em breve...


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

AFINAL...

SOMOS SERES DOTADOS DE LIVRE-ARBÍTRIO OU AGIMOS POR AUTOMATISMOS PRÉ-DETERMINADOS?



E tudo depende. Somos dependentes do que pensamos e por pensarmos assim ou assado, de como agimos. Somos totalmente dependentes de pensar o tempo todo e isso não quer dizer que chegaremos a algum lugar. (Ou sempre chegaremos?) 

Quando acordamos de manhã e não de tarde. 
Quando usamos calça ou nada.
Quando comemos almoço ao meio dia.
Quando fazemos o que temos que fazer.

O que temos que fazer mesmo?


Temos que nos colocar a pensar. Temos que refletir, sem que refletir se torne o "modos operandi" geral. Temos que pensar sós. Temos que elevar nossos conceitos, e não no sentido de termos pensamentos mais elevados e sim de coloca-los acima do pensamento geral.
É claro que há de haver uma ordem. Mas até onde essa ordem deve ir? Até onde ela deve ditar o que fazemos?
Temos o direito de pensar direito. De sermos exatamente como acreditamos que deveremos ser. Mas não podemos nos deixar levar pela massa em "cloud" que nos faz pensar que estamos pensando enquanto estamos apenas reproduzindo ou seguindo.


Quando dizemos que sim.
Quando dizemos que não.
Quando dizemos sem saber o que dizemos.

Temos que desligar o pensamento automato. Aquele que nos leva a criar julgamentos falsos, falsas verdades (verdades existem mesmo?), e tomar atitudes baseadas num senso comum. Não há problema nenhum em ser comum. Só não dá pra ser o que a gente não quer ser só pra ser a gente que todo mundo quer. 
Já que desde que o mundo é mundo estamos pensando e seguindo e fazendo e sendo. É necessário pensar. E pensar por si só não adianta. Temos que pensar como se não houvesse mais nada que pudéssemos fazer naquele momento. Temos que pensar como se estivéssemos sozinhos no mundo. Temos que pensar só.

Você já pensou de quantas maneiras podemos ser. (sem ter que ver)
Você já pensou que dá pra subverter a ordem. (sem ter que ver)
Você já pensou que dá pra fazer a ordem. (sem ter que primeiro ver para crer)


Temos que crer por crer. Crer e somente crer e então poderemos fazer o que quisermos fazer. Então exerceremos nosso livre-arbítrio, realmente livre!


E então estamos todos ai. Sendo manipulados por nós mesmos, já que temos opção e nos deixamos sem ela. E estamos aqui a tanto tempo, mas parece que foi ontem. Parece que foi ontem que começamos a pensar e já estamos estabelecendo padrões a serem seguidos. E tudo que estiver fora do padrão... E não se pode mais ser autentico. Ser autentico, nos últimos tempos ( ou em todos os tempos, quem sabe...) tem significado ser igual. Seja na sanidade, seja na loucura. 

Por mais loucos diferentes uns dos outros.
Por mais cabelos com a cara de quem usa e não com a cara de uma capa de revista.
Por mais eu.
Por mais você.
Por mais espelhos para se olhar. 
Por menos espelhos para copiar. 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

ERA UMA VEZ. O ERRO.

SOBRE não errar.

Sobre não errar nunca, nem em pensamento. E nem em pensamento cogitar o erro. Sobre errar em pensamento para não errar na realidade real. Sobre não admitir o erro como um favor que a vida nos faz. Como um favor para que as coisas possam refletir, para que as coisas possam ir para os seus devidos lugares, se é que esses lugares devidos devam existir. Sobre não querer mais nada do que o certo. O lado certo. O jeito certo. A pessoa certa. A certeza do certo.


Se quando erramos podemos nos ver.
Se quando erramos podemos ser.
Ser sem medo de não ser.


Sobre não querer discutir, descuidar, desobedecer, subverter, sobreviver. Sobre ensaiar o que se vai dizer logo em seguida, não pelo medo de tropeçar nas palavras, mas para não errá-las, não gaguejá-las, para não. Ensaiar as palavras para dominá-las, justo elas que são indomináveis. E não dançar para não pisar no pé. Para não pisar no próprio pé. Para não cair de cabeça. Como se fosse possível. Como se fosse vivível.

É só errando.
É só errando e recomeçando.
É só errando e rindo que vamos indo.

Se não só vamos ficando. Ficando na certeza de que não erramos nunca, de que tomamos muito cuidado, de que somos o que há de mais certo neste mundo e de que devemos orgulhosamente nos orgulhar por não errar. Por sermos perfeitos. E não perceber que "perfeitos" é o que menos devemos ser. Perfeição é o que menos devemos querer ter, ser e estar.

Olhe para os seus dois pés.
Olhe para a sua boca.
Olhe para os seus dois olhos.


Olhe para os meus dois olhos, tão irregulares, tão dispostos a ver que não são iguais, que são o que podem ser e servem para ver e que isso é o que há de mais bonito. Um coração não é o desenho de um coração, colorido de vermelho, contornado corretamente com canetinha hidrocolor vermelha. Um coração é um desenho mal feito, que sai do papel e bate, e pulsa e treme ao te ver. Treme de medo, de dor, de alegria e felicidade, treme ao te ver sem saber ao certo o que fazer se não tremer. Um coração são veias que levam emoções para lá e para cá e que por isso mesmo erram os caminhos de vez em quando e acabam levando um amor para a barriga, uma traição para o pé e para os dedos uma ferida.

Somos o melhor que podemos ser.
Isso não é novidade.
Isso talvez seja um erro.
Isso é o que dá pra ser.

Erre. R.

E se descubra feliz. Se descubra mortal. Se descubra humano. Se descubra. Tire de você tudo o que está sobrando. Palavras, preceitos, aceitos, tudo o que sobrar depois de errar. Depois de cair de quatro no meio da Rua XV lotada de gente. Tire tudo. Mesmo depois de ter se sujado de sorvete na primeira vez. Mesmo depois de todas as vezes. Aceite o que lhe pode ser dado. Aceite que os dados nunca caem assim ou assado, eles caem como dá, eles talvez, não tenham medo de errar.

P.S. Esste testo pode cónter algum ero. Ou não.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

o outro em mim


sempre há muito mais do que achamos ter. sempre tem alguma coisa que não fecha. e não fecha porque realmente não tem que fechar. estar aberto é como muitas vezes as coisas devem estar.

hoje fazem quatro dias que meu celular foi furtado. retirado de dentro da minha bolsa com mãos leves e fáceis de carregar. e depois de me culpar por ter facilitado o furto. depois de ter chorado pelas tantas fotos que estavam armazenadas. depois de ter cancelado a linha e o aparelho. depois de tudo fica o mais ainda.

é claro que não era só um aparelho eletrônico de alto valor. não. eram lembranças, recados, fotos, memórias (internas e externas), eram contatos. mas é dai?

e dai se há uns 10 anos atrás nós nem pensávamos em estar tão conectados assim. não andávamos para cima e para baixo presos por nós mesmos. não nos mantínhamos reféns de ser para os outros e não ser para nós.

de uns tempos para cá. na nossa era do exibicionismo. na nossa loucura de fazer checkin até no banheiro. na doentia mania de postar foto de tudo para todos. na mania vazia de estar tão preocupado em mostrar que nem nos deixa tempo de ver, sentir, estar.

de uns tempos para cá a exposição de nossas gastas figuras publicamente é o que há de mais moderno. de mais descolado e significativo entre todos para todos. não importa se foi bom ou ruim, importa que todos saibam que você esteve lá, que esteve acolá e depois logo ali.

de uns tempos para cá nos prendemos ao nosso ego de um modo tão doentio, que conversar, se não for através de uma máquina, ficou monótono. ficou chato não postar a todo momento. são as máquinas que mantem os habitantes deste lugar, chamando mundo, ligados. 

diga para alguém se ela conseguiria se imaginar refém. diga se ela conseguiria se imaginar vivendo ligada à máquinas o tempo todo. diga para ela se ela conseguiria viver, mesmo sendo dependente, profundamente dependente.

ela. eu. você. nós certamente responderemos que não.

mas é assim  que vivemos. numa falsa conexão. num falso todo. num falso mundo onde todo mundo se conhece. mas que na realidade nos faz não saber nem o nome do porteiro. do vizinho. do colega ali do lado. dos três mil e quinhentos amigos da  rede na qual estamos doentiamente conectados.

não. não me excluo da rede.

não. não me excluo do ego.

não. ainda não tenho um novo celular.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

SOB UMA AVALANCHE...

UMA AVALANCHE de erros.



E crescendo. Como uma bola de neve que só sabe descer e crescer. Acumular os erros que já se foram com os que ainda virão.

Digamos que você esteja num lugar. Digamos que você não saiba dizer ao certo se gosta do lugar ou não. Vamos dizer que você esteja num momento "saco cheio" e prefira dizer que não gosta tanto do lugar que vive. Vamos pensar que você tem coisas para resolver. Muitas coisas. Digamos que elas não sejam qualquer coisa, sejam coisas grandes, daquelas pequenas coisas que se acumulam e num dado momento formam um monte maior do que você pode escalar. Digamos que você culpe a cidade e seus habitantes pelos erros que você mesmo comete(u). Você culpa as pessoas, as coisas, os lugares, você culpa o clima. Você não consegue compreender nada. Você já não consegue mais ver nada. Você só consegue culpar. Culpar os outros.
Digamos que depois de algum tempo vivendo nessa espiral de culpa e ilusão, você recebe uma proposta. Uma nova cidade, uma nova casa, uma vida nova. Vamos dizer que você acredite que isso seja a saída, que seja a cura para todos os seus males. Você faz planos, você sente a esperança deitar ao seu lado. Você sorri para ela. Você deita, você dorme e sonha. Sonha com dias melhores, com pessoas melhores, com lugares mais quentes. Você cria novas ilusões.
Digamos que você ainda não consiga compreender a lógica da vida. E num desespero em  fugir do que tanto te incomoda você corre. Corre com tudo e com todos. Você coloca todas as coisas numa grande mala de viagem. Você  fecha porta, janelas e tudo que possa ser fechado. E sai. Sai como se sair fizesse de você uma pessoa mais feliz. Digamos que você esta sentindo um misto de felicidade e frio na barriga. Digamos que você interprete isso como normal, devido as circunstâncias. 
E então por dois ou três minutos você voa. Você fecha os olhos e voa alto. Sem nada e nem ninguém para te incomodar. Por dois ou três minutos você se sente livre como há tempos não se sentia. por dois ou três minutos você acredita. Com os olhos fechados você acredita. E então você abre os olhos. E talvez neste momento alguma coisa se perca ou se quebre. Talvez neste momento, sem você perceber, você acabe perdendo alguma coisa. 
E então você abre os olhos e está num outro lugar. Um lugar que você não conhece, não se reconhece, mas isso ainda não é um problema. Neste momento você julga que deixou todos os problemas para trás...
Digamos agora que o tempo passe, que passe de uma maneira estranhamente rápida. Digamos que vendo o tempo passar assim, de longe, de perto, de todos os lugares, você perceba que alguma coisa esta fora do lugar. Digamos que você comece a prestar mais atenção. Vamos dizer que você tenha tanto tempo livre que comece a olhar para você mesmo. Comece a olhar para você mesmo com tanto apresso que perceba coisas que julgava não existirem. Nunca existirem em você.
E comece a tirar as coisas da mala que você encheu antes de sair. E de lá tire, entre uma muda de roupas ou outra, um probleminha ou outro. Uma Rua XV ou uma nuvem cinza. E coloque nos mesmos lugares que já estavam antes de você partir. E começa a perceber que gostava tanto. Um tanto deste tamanho assim. E começa a sentir uma saudade assim, deste tamanho. E começa a não se reconhecer. 
E depois de tanto tempo passado, você começa a perceber o que fez. Começa a perceber a mala que levou. Começa a ver que aqueles problemas tem pernas longas. Que eles andam por dentro de ti. E não importa quão alto você voe. Não importa quanto longe você vá. Eles vão estar lá, te esperando no saguão do aeroporto ou da rodoviária. Eles e somente eles te abrirão os braços e colocarão óculos escuros em seus olhos, para que você não veja nada além deles. Eles são insistentes. Eles são espertos. Eles são o que você é. E você precisa matá-los. Exterminá-los. Sem dó. Sem piedade. Ou então eles farão isso por você.
Digamos que essas coisinhas pequenas que você não consegue resolver. Essas que vão onde você está. Essas coisinhas estão ai, a te corroer, a te cegar. E não importa onde você vá. Eles vão te seguir. E chegará o dia em que não haverá lugar para se esconder. E você vai ter que decidir. E você terá que resolver. Ou terá que viver sem ter um lugar para chamar de seu.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A GREVE





Nada se podia fazer. Tudo parado. Desde ontem eles resolveram paralisar os trabalhos, não mexiam uma palha. O dia inteiro lá, estáticos, nem gritaria, nem manifestação, nem nada. Só estavam lá.
No começo só os realmente afetados pela paralisação é que sentiram falta. Mas depois de duas semanas, toda a população começou a ficar incomodada, preocupada e até angustiada. Tentaram de tudo, protestos, contramanifestações e propostas. Mas nada adiantava. Eles sequer levantavam os olhos para o que os cercava.
Mas sem que eles dissessem o que queriam, a situação só se complicava. Quem não ouve, não sabe nada. E pouco a pouco a gravidade tomou conta não só de uma ou outra cidade, mas de um país inteiro. As rotinas alteradas, as pessoas desmotivadas. Apenas uma meia dúzia falava bem, achava bom, usava o tempo que agora sobrava para fazer outra coisa. Mas a maioria da população, a grande massa, estava deprimida. Acuados, sem grandes pretensões para o futuro, sentavam por horas sobre seus sofás, sem fazer nada. Nem assuntos tinham e se tivessem só seria para reclamar a falta.
E quando não havia mais saída, resolveram tomar uma atitude drástica, pressionar a classe com palavrório desclassificado, pedradas despropositadas, cusparadas e gritaria. E por fim, depois de muitos frangalhos dos dois lados, elegeram um que mais ou menos falava. E ele, tomando a frente, ainda que receoso, subiu nuns caixotes, como se só ali soubesse falar. Procurou algo como uma luz especial e se posicionou como se tivesse uma revelação que faria tudo mudar.
Mas demorou um tempo, tanto tempo que não deu pra esperar e começou o bate-boca, o trololó, o quebra-quebra. E quando se achou que mais nada conseguiria ser resolvido e que para sempre estaríamos fadados ao nada, viram um de cada lado, num cantinho, quase que escondido, conversando. Quer dizer, conversar com palavras, com toda aquela normalidade, não conversavam, ele gesticulava e fazia caras e bocas e o outro anotava, anotava e anotava.
 E depois de uma pausa dramática na bandalheira, se separaram e aquele de agora pouco, voltou a subir no caixote. Alguns vaiaram com uma força vocal descomunal, mas os mais expertos se cutucavam, apontavam para as mãos da figura e cochichavam. E em poucos segundos o tal se arrumou, estufou o peito e falou, em alto e bom tom.
 E depois de exatos oito minutos falando, todos ficaram boquiabertos e até espantados. Baixaram os olhos, foram dispersando e saindo sem briga, calados. E no dia seguinte não mudou muita coisa. A greve continuou, e todos sabiam que seria uma greve eterna, nunca mais veriam nada.
Uma reivindicação impossível de ser realizada. Nunca mais alguém poderia ver teatro, novela, propaganda ou qualquer outra coisa que necessitasse de uma personagem. Elas não voltariam a trabalhar, já que o pedido delas, ter uma vida, pensamentos, verdade própria, jamais poderia ser realizado.
E até que tentaram, numa junta de grandes mestres escritores, poetas, dramaturgos, escrever umas coisinhas pra gente de verdade fazer, mas não era a mesma coisa. Pra ver o que se via todo dia, era melhor abrir a janela e olhar para a rua, de graça.


sábado, 1 de junho de 2013

Depois de tudo.

E então depois de tudo haverá o que há de haver.




E não no começo, como achamos que deve ser. Deveremos aprender, deveremos esperar, deveremos não saber para só depois saber. E os erros serão menores, menos danosos, os erros serão, então, só tropeços dos quais conseguiremos nos levantar para continuar a andar no dia seguinte.

E então no fim, saberemos o que há entre duas pessoas. Saberemos o que é o amor. E não no começo. Como tolos que correm num quarto escuro com paredes afiadas. Não como os apaixonados. Pois apaixonar-se é só a porta de entrada. Pois apaixonar-se não é mais nada do que isso ai.

E somente depois de andar de mãos dadas. Somente depois de pisar no pé do outro. Depois de mijar com a porta aberta. Depois das mentiras. Das que você contará. Das que ele contará. Das gravidades. Das amenidades. Só depois de tudo poderá haver alguma coisa entre nós.

Não agora.

Não agora que não sabemos nada um do outro e já cometemos mais erros do que podemos suportar. Não agora que não sabemos nada e já juramos tanto. Essas juras. Essas que nos cobraram fazer sem ao menos saber. Quem é que pode jurar pelo que vai acontecer. Eu juro pelo que já aconteceu, pelos meus pés andando ao contrário, num tempo que não existe mais. É somente por isso que juro. Juro pelo que sei.

Pelo que não sei espero. Pelo que não sei aprendo. Pelo que não sei, não sei, não juro.

E então depois das coisas todas ditas. Depois de não necessitarmos mais de palavras. Depois de magoar sem querer. Depois de magoar por querer. Depois de não querer mais nada. Depois não é antes. Depois nunca será antes de tudo. E inverter a ordem das coisas nos dias em que vivemos é canalha demais.

Primeiro tem que dizer não, para poder dizer sim. Tem que quebrar ovo no chão. Tem que rir alto. Tem que ir ao mercado. Tem que dormir mal. Tem que cuspir verdade um na cara do outro. Tem que se apaixonar um pelo outro. Primeiro tem um monte de coisa mais importante do que um sim.

Já que sim mal dado, é sim jogado fora. Já que sim dado sem saber é aceitar tudo o que pode vir e desperdiçar o que poderia ser. Sim não vale tanto assim.

Sabe... Tem que morar na mesma casa. Tem que dobrar lençol de elástico e de malha. Tem que tomar chá. Tem que tomar água. Tem que tomar muita pinga antes de tudo. Tem que passar dias com a mãe do outro. Com o pai do outro. Com os irmãos do outro. Com o outro, tem que passar.

Sabe... Pra dizer sim tem que acreditar. E pra acreditar... Pra acreditar não basta mais a mera esperança e confiança de que tudo vai dar certo. Não vai. Não acredite que vai, pois não vai. Nem a vida é tão certinha assim. A vida também dá as suas escapadelas. A vida também dá as suas escorregadelas. Suas cadelas ou seja qual delas. A vida também dá.

E não tem burrice maior do que achar que vai dar tudo certo. Que pi-ri-ri pi-ri-ri. Que é só jogar água que a planta nasce. Que é só jogar água que a planta cresce. Que é só jogar água que a planta dá tudo o que você acha que ela vai dar. (Tudo o que você quiser!) É melhor comprar livros melhores da próxima vez.

E então eu voto assim. Dou meu voto de confiança que só no fim é possível dizer o que quer que seja. Mesmo que seja um sim. Sou dessas que só no fim. Só depois de tudo roto. Só depois de tudo e um pouco é que podemos levantar a cabeça e dizer que sim.

Sou dessas que acha que casar no começa está errado. Do lado contrário. De ponta cabeça. Está do fim para o começo. Sou dessas que acha que tem que andar muito chão, pra só depois então poder dizer que sim. Sou dessas que acha que sim no começo é já dizer fim.



E então.

Lá no fim.

Se sim.

Sim.

Senão.

Tudo bem.

Também.

E fim.

quinta-feira, 9 de maio de 2013


Eu tenho um amor. Eu tenho uma paixão.




Eu te amo. Te amo e sou apaixonada por você. Mesmo sabendo que de tão parecidos esses sentimentos não se bicam. Eles são só parecidos, eles só caminham pelas mesmas estradas, mas no fundo, não são tão amigos assim.
E então eu descubro, a cada dia que eu acordo ou a cada dia que eu durmo, se neste momento é o amor ou a paixão que está em mim. E então eu sinto. Apaixonada neste dia. Amando no outro.
Você entende isso? Não? Nem eu. Mas sinto. Sinto de tempos em tempos. Como se amar e se apaixonar fossem passos de dança, que dependem de musica, que te fazem se mover de acordo com o que se ouve.
E então aqui estou. Sendo interferida pelo mundo. Pois é o mundo que faz amar você. Pois é o mundo que me faz me apaixonar por você. Quando eu saio porta afora. Quando eu ando pela rua. Quando eu respiro o vento gelado. Quando eu vejo os outros. Quando os outros me vêem.
Eu te amo. Numa mão que passo no seu rosto quando você dorme. Quando você me olha dormir. Quando a gente anda descalço. Comemos da mesma comida. Nos olhamos nos olhos. Esfregamos as costas um do outro. Dizemos “meu amor”. Não dizemos nada. Só sentimos. Ou conversamos até amanhecer.
Eu sou apaixonada por você. Quando espero você chegar de noite com meu corpo quente. Quando sei o que eu quero te fazer. Quando vejo seu corpo se mexendo. Quando sua barba encosta em mim. Quando vejo sua roupa no chão. Quando ouço o barulho do chuveiro. Quando vejo outro alguém.
E a vida só faz sentido assim. Dia após dia. Com todas essas interferências. Com todo mundo em volta. Sem ninguém por perto. Com você por dentro. Só faz sentido se for pra sentir. Se for pra ter alguém ou não ter ninguém. Mas saber que existe um mundo para ser desvendado. E que não controlamos nada e nem ninguém. Que não controlamos sequer nós mesmos. Estamos aqui. Amando e nos apaixonando. Esperando sem esperar.

domingo, 14 de abril de 2013

SAVE MY FRIEND




Me fez dormir tarde. Me fez esperar. Tatuou escritos no braço esquerdo enquanto esperava para chegar a lua. Foi a lua calçando tênis. E lá esperou o dia nascer. E lá esperou o mundo acabar. E lá espetou num palito o amor.
E sentiu falta de não ter o que comer. E sentiu falta de não ter o que fazer. E sentiu pela prima vez o que era sentir. E se debruçou na janela e disse a quem quisesse ouvir. Estavam todos surdos as suas afirmações. Vocês, que estão surdos as minhas afirmações. Já não lhes direi mais nada, como isto que agora vos digo. Já não lhes direi.
E sentiu os pés formigarem como nos tempos em que. Como nos tempos em que. E nada disse. Para que palavras, se não há mais quem possa ouvir? Elas não podem ser desperdiçadas, jogadas a ouvidos decorativos, que são por fim o que restou de uma civilização inteira. Que foi o que sobrou do amor. Que foi.
O tijolo aparente, aparentemente segura a parede que se resume a uma parede do que um dia foi um conjunto habitacional-racional. A parede de tijolo aparentemente aparece vez por outra para nos visitar, jogamos cartas de amor. Jogamos.
Goodbye my friend. Somos o que restou de uma não solução. De uma não ocasião para se dizer. Somos distantes do restante de nós. Somos o que dá. O que pode haver entre duas pessoas normais. Somos isso que somos.
Eu não vou implorar para ver o fim. Eu não vou implorar. Não vou ajoelhar aos pés daquele monte, como costumávamos fazer nos tempos de aflição. Hoje somos maiores do que o monte que nos criou. E não vou me ajoelhar, a não ser para beijar seus lábios rachados de sol. A não ser para beijar seus pés e implorar por seu amor.
Somos o que restou. O resto de tudo o que se foi. E que nem era tão pouco assim. E que nem éramos tão poucos assim, como agora sou. E não há nada mais ao redor. Acima de nós, o que há, não nos deixa partir.
Somente ir ate a lua e voltar. Somente ir ate a lua e vomitar nossas dores derretidas pelo sol. E depois voltar. E depois o dia depois de hojeninguém mais sabe. Hoje só o amanhã que virá. Não para nós. Mas para cumprir o que deve ser feito. Somos. Não mais. Somos. Até que amanheça e não haja.

- Você está de tênis.

- Sim.

- E o que faremos agora que tudo isso que havia dentro de nós se espalhou e as letras de nossos nomes estão confusas.

- Caminharemos até a lua e faremos de lá.

- E o que faremos agora que as palavras que estavam por dentro começam a brotar em nossa pele.

- Caminharemos até lá.

- Você está de tênis.

- Eu não sei mais o que fazer.

- Então aparentemente ele não virá nos salvar.

- Salvar de que?

- Sim. Salvar de que.

terça-feira, 26 de março de 2013

BRAVA GENTE BOA





Brava gente brasileira
Frita até ovo sem frigideira
Da seu jeitinho com muito orgulho
Desde o patrão até o cata-entulho


Brava gente brasileira
Que leva sol na sua moleira
Desde cedo tem que aprender
Que no Brasil não basta só nascer

Brava gente brasileira
Que sofre na pele
Mas não bambeia

Brava gente brasileira
Tem tudo que precisa
Por onde campeia

Essa gente que tem muito amor
Orgulho de viver aqui, sim senhor
Que sobe desce, que desce sobe
Que é humilde, que é esnobe

Que ainda tem muito que aprender
Mas com coração já sabe mexer
Que tem muito com que lidar
Mas seu país só sabe amar

Brava gente brasileira
Que sofre na carne
E ainda peleja

Brava gente brasileira
Chuta a bola
Faz brincadeira

Brava gente do meu país
Sofre calado, mas é feliz
Desce ladeira, sobe ruela
Come no prato e na panela

Brava gente que somos nós
Com pingo n’água roda retrós
Que não existe nenhum igual
Seja na luta, no futebol ou no carnaval

terça-feira, 19 de março de 2013

Muda


Muda



Fica muda quando tudo muda
E ainda espera uma mão para lhe despir

A tempestade absurda lá fora e ele dorme agora
Ele sempre dormiu

Nada mais lhe assusta
Nem a cozinha fria
Nem o rosto que sorri

Nada mais lhe assusta
Ela não está mais ali

E então ele chora em um dia de sol
Enrolado na cama de calor e cachecol

E então ele não quer mais dormir
Ele não percebe que ela não está mais ali

Pra lhe ouvir a respiração
Para um olho que não

E desfaz a mala noutro canto
Com aquelas roupas enxuga o não pranto

Nada mais lhe assusta
Nem a sala vazia
Nem o rosto que sorri

Nada mais lhe assusta
Ela não está mais aqui


quarta-feira, 13 de março de 2013

Yes, há 10 anos nós temos bananas...



Mas também temos peras, laranjas, maçãs, verduras e toda sorte de alimentos saudáveis. E de lá pra cá já se vão dez anos. E dez anos de quê? De uma formatura...
Sim. Eu sou formada em Nutrição. Não. Eu não pratico o "nutricionismo", sou nutricionista! Com diploma e tudo mais.
Um belo dia a gente se vê grande, e vê também que está na hora de fazer de nós mesmos algo maior. Já estamos estudando há tanto tempo, que já nem sabemos quando tudo começou. Estudamos e pronto. Sem pensar.
E então noutro dia decoramos fórmulas e inúmeras palavras que sabemos que nunca vamos usar. Mas tudo bem, na vida, as vezes é assim, ter e não usar. E passamos num tal de vestibular. E passamos a frequentar a dita cuja faculdade. 
Minha avó, já velinha, dizia que estávamos na "dificulidade". O que parecia ser apenas uma confusão senil da cabecinha dela, era uma verdade. Quantas "dificulidades" passávamos para estar ali. Fadadas a escolher, sem ao menos saber que havia escolha. Escolher uma profissão não passa de uma jogada de sorte.
E lá estávamos nós, trocentas meninas, sim, só meninas, numa sala, sem saber ao certo o que estava por vir. Um labor diário para driblar todos aqueles hormônios desencontrados. Quando 1\4 da sala estava entrando na TPM, outro 1\4 estava saindo, outro tanto estava bem no meio e as que restavam estavam felizes da vida.
E nisso tudo, com aquela pouca idade e experiência nenhuma, haviam as amigas, as inimigas e as tanto faz. Eram panelas, caçarolas, frigideiras e afins, mas todas no mesmo fogão. Lembro que na época era ver quem engordou e quem emagreceu, quem ficou e quem nem beijou, quantos xerox tinha a fulana e qual seria a nota da ciclana. As fofocas, babaleias e gogolfinhos de todos os dias. Era muito fácil querer matar a coleguinha por ter conseguido um estágio melhor do que o seu, ou por qualquer um desses motivos universitários banais. 
E depois de dez anos... E muitas de nós hoje casadas, vividas, crescidas, resolvidas na vida, muitos são os frutos e filhos daquela sala... E agora, quando encontro as "gurias", como ainda costumo falar, não consigo sentir nada menos do que uma saudade! Uma saudade delas e de mim. Um orgulho por sermos tão fortes e persistentes. Uma amizade feliz...
Me desculpem os que leram o texto até agora na esperança de saber os nomes de minhas melhores amigas e minhas arquirrivais, mas já não há mais espaço para isso aqui. Somos outras, como havia mesmo de ser. Ao menos eu sou... Vivi momentos que não deixam mais espaço para outra coisa se não o amor. Não um desses amores marqueteiros e românticos  Não. Um amor verdadeiro, humano, que sabe lembrar das coisas boas e reconhecer o que há de bom no tempo que passa por nós. Somos outras e certas coisas já não nos servem mais...

Sinto muito por não poder comemorar, por estar tão longe daquele lugar que faz parte de mim. Mas sinto mais ainda pelas que mesmo podendo, preferem ficar naquela sala de faculdade que já nem deve existir mais...

Que venham outros dez anos e que continuemos mudando, sempre para melhor! Que venham outros tantos dez anos e muito mais amor entre nós!!

quarta-feira, 6 de março de 2013

RE-MÉDIO.






Eu vou criar um remédio. Assim, do nada, começar do zero e chegar num produto revolucionário. E por mais que vocês pensem que sim, não será um remédio milagroso, será apenas revolucionário. Um remédio que irá curar tudo. Desde pequenas dores do corpo até as grandes dores d'alma. Será vendido em farmácias e supermercados, bancas de revista e portas de escolas, escolas públicas ou privadas. E será comercializado em grandes doses ou de forma unitária. Terá uma bula bem grande, pois será cheio de efeitos colaterais. Terá um preço irrisório, para ser comprado aos maços.
Eu vou inventar um medicamento novo. Desses que são dignos de Nobel e tal. Será falado por tanto tempo, que não saberão mais onde começou. Não terá meu nome, pois neste caso, meu nome é pouco. Terá um nome muito mais universal, para que possa passear pelo mundo sem precisar se apresentar. Será uma invenção esplendorosa, considerada uma maravilha dos tempos modernos, não, uma maravilha de todos os tempos. 
E será baseado em regras básicas, curar tudo, sem estragar nada. Já que quando eu tomo um remédio para a cabeça, este me estraga o estômago, e o do estômago, acaba por fazer doer a gota, e o da gota aumenta minha pressão e o da pressão me faz tomar uns pros rins que já estão tão ruins quanto o resto do corpo. E depois ainda me receitam um que não me deixe ficar louco, já que tantos enganos causam coisas assim. Não. Nunca mais essa tortura, de ter medo de tomar um pra tontura e perder a voz. 
Vou inventar e pretendo começar agora. Pensando e agindo. Agindo e pensando. Será como nos filmes e será especial. Não será em comprimido, xarope ou emulsão. Será num formato inovador e com um ingrediente em formato de coração. Não vai reter receita, nem precisar de prescrição. Atenderá jovem, criança, idoso ou adulto. Será melhor do que as balinhas mágicas e do que chupar AAS infantil. Deixará na boca muito mais do que um docinho pueril.

 
Será a cura de tudo. 

Não será pois já é.

Não preciso inventar.

Um simples beijo, não é? 

terça-feira, 5 de março de 2013

Doutor?


POR UMA LINHA



As crises são cada vez mais fortes Doutor, não, por favor, não desligue, eu não quero enlouquecer aqui sozinha. Não Doutor, eu sei que ninguém pode ser culpado pelo que está acontecendo, eu sei disso. Sei também que eu não posso receber mais nenhuma culpa, já carrego o suficiente para não conseguir me mover. Eu sei Doutor, são informações demais, compreensão de menos, dias e dias sem parar, eu sei Doutor. Doutor, o senhor ainda está ai, eu sei que a ligação foi feita á cobrar, mas eu não podia passar meus últimos minutos sozinha e não me restou nenhum trocado no bolso. Eu sei que ninguém pode ser culpado por isso também, mas tenho dúvidas quanto a isso Doutor, eu tenho várias dúvidas, tantas outras dívidas e pouco tempo para respostas Doutor. Mas Doutor se mantenha na linha, ainda que isto lhe custe devolver alguns dos tantos vinténs que lhe dei. Doutor me responda, não Doutor, as respostas me iludem num momento sem ilusões, não, eu não as quero mais. Doutor me conte uma de suas muitas histórias. Sim Doutor, sem nomes ou endereços, mas uma delas que seja de verdade, não as mesmas histórias que tenho escutado por toda a minha vida. Não Doutor, não me importa mais, só quero que seja verdadeira. Por favor, Doutor, não me negue esse último pedido, ainda que saibamos que possa não ser derradeiramente o último, mas não o negue, não a mim. Não a mim que sempre fui paciente com suas mentiras, com seus olhares que se desviavam para o além quando seu taxímetro medicinal estava ligado e eu expunha minhas dores e minhas aflições ao desdém, não a mim Doutor, que sempre mantive suas regalias quando pagava sem recibos todas as consultas inúteis em que me dizia que deveria resolver sozinha minhas dúvidas e me criava outras tantas para resolver na consulta seguinte... Não a mim, Doutor. Doutor me mantenha viva agora, já que não pode fazê-lo durante tantos anos naquela cadeira fria, faltam só mais alguns momentos, só mais alguns. Doutor, eu já lhe falei da minha infância, quando eu teimava em sonhar com coisas impossíveis de se realizar, eu já lhe falei, não é mesmo, aliás, lhe falei em todas as consultas de uma hora. Então Doutor me conte uma história de uma menina que sonhava coisas impossíveis quando ainda era apenas uma criança. Conte-me que ela sonhava com uma felicidade que dava para tocar, e sentir o cheiro, e que todas as manhãs ela regava essa felicidade como planta em seu jardim, ainda que lá fora só houvesse neve.  Conte-me que ela podia ter sim esses sonhos tolos e infantis, ainda que o tempo passasse para ela, assim como para todos os demais. Conte-me que ela cresceu ouvindo boa música e alimentando sua alma ao invés de um corpo obsoleto. Conte-me que ela sentia o chão sob seus pés somente quando queria, e quando não queria tinha a permissão de voar. Conte-me Doutor, que a culpa de uma vida sem sonhos e com uma realidade chula não é dela, é culpa da própria realidade que se mostra assim. Conte-me uma dessas histórias na qual eu acredite e feche meus olhos com um pouco só de dignidade, por favor, me conte Doutor. Conte-me como fazem as músicas melodiosas, nas quais se tem vontade de fechar os olhos e flutuar, me faça somente desta vez ouvir sua voz de maneira doce e verdadeira, ainda que não seja capaz disso Doutor. Eu ficarei aqui deste lado, sentada na poltrona como tantas vezes me viu, com as pernas fechadas e as mãos pousadas nos joelhos, minha cabeça se inclinará para trás e meus ouvidos se abrirão para que entrem seus dizeres. Não Doutor, não preciso de muito tempo, só o suficiente para me convencer de que é possível. Sim Doutor, essa será a ultima vez que nos falaremos para sempre, nunca mais voltarei ao consultório ou a discar seu número no meio da madrugada ou em qualquer hora do dia que seja, fique tranqüilo Doutor. Faltam apenas alguns minutos, e é só disto que necessito agora. Dentro em breve cerrarei meus olhos a uma verdade incapaz de me acordar. Doutor comece a história como se começa uma vida, com leveza e luz. Doutor tem que ser uma historia verdadeira, sim Doutor eu faço questão. Sei que neste momento não sou eu quem paga a conta e não posso fazer tal exigência, mas Doutor, em nome de sei lá o que, por favor. Doutor, por favor, não desligue, Doutor... Era só uma história simples com uma pitada de verdade... Eram só mais alguns minutos dentro de uma vida inteira... Era só o meu final feliz.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Sobre tomar decisões.



Um mundo de possibilidades. 

Eis o que se apresenta todos os dias. Eis algo considerado uma das muitas dádivas da vida. Escolher. Ter o que escolher. As possibilidades. E que são tantas. 
Uma vez ouvi um senhor que dizia assim: Melhor ter que fazer uma escolha, do que não ter o que escolher. E de lá pra cá tenho pensando muito a respeito disso. Melhor ter o que escolher...
Sou fatalista. Tenho uma visão diferenciada das coisas. Não sou pessimista. Não. Fatalista. Uma coisa um tanto diferente... Gostaria, é claro, de ser otimista. Mas não sou. E não sei se algum dia conseguirei ser. 
É mesmo necessário mudar tudo o que somos? Se uma coisa não é boa, ou não é como a maioria, devemos nos adequar?

Me sinto inadequada. 

Sendo fatalista, meus pensamentos me traem, e tendem a me levar por um caminho não muito espetacular. Aquele arco-iris com pote de ouro no fim não é exatamente o que me é sugerido. E os episódios vão se acumulando. E com esse acumulo o peso que carrego sobre os ombros vai aumentando. 
"Só quero saber do que pode dar certo. Não temos tempo a perder..." diz a música. Mas será? Como saber que pode dar certo? Sempre vai dar certo? Depende do ponto de vista, alguns dirão. Não sei. Acho que existem realmente mais coisas interferindo em nossas vidas do que imaginamos. E numa dessas não é tão simples assim. Vai dar certo e tudo dá! Às vezes, por mais que queiramos que as coisas deem certo, elas não dão. E não sei se é só comigo, uma fatalista em potencial, ou com o mundo todo.

E então precisamos tomar uma decisão.

E depois de tomá-la, ainda por cima sustentá-la. E viver como se nada tivesse acontecido. Pois fazer o que volta e meia eu faço, ficar pensando que poderia ter sido diferente, que poderia ter tomado outro caminho, outra decisão, vai matando a vontade de viver. Mata bem pequeno, discretamente, aos poucos, mas matar é matar, muito ou pouco. 
E então mais uma vez é hora de desapegar. Escolher e ponto final. Saber que sempre haverá uma possibilidade diferente, ou não. Saber que não há como saber. E seguir. Parando aqui ou ali. Pensando o suficiente. Pois como diria meu pai - Pensando, morreu um burro!

Não há como viver sem decidir. (ponto final)

sábado, 23 de fevereiro de 2013


QUEIMANDO EM BANHO-MARIA



Tudo começa em um dia que começa com algumas notícias. A impressão que fica depois disso tudo, é que todos os dias se iniciam com notícias. Ouvi a todas elas, algumas eram verdadeiras, outras eram ainda mais verdadeiras e o noticiário termina com aquelas que eram puramente falsas, amplamente mentirosas, mas nessas tinha maior facilidade de acreditar. Eram essas as que eu realmente acreditava, as inacreditáveis.
Quando o telefone tocou e quebrou seu voto de silêncio, titubeei em atender. As noticias de verdades verdadeiras me deixaram farta, farta de ouvir e ainda mais farta de falar. Não quis atendê-lo, mas sempre que faço isso à campainha toca quase que instantaneamente. Não teria paciência para atender à porta numa manhã assim. Não queria falar, somente ouvir, meu velho telefone no qual se discava girando os números, ainda não me permitia conversas sem palavras. Minhas inúmeras expressões faciais de nada ajudariam. – Alô!?...Sim... não...talvez sim...certamente que não...obviamente sim...não...não...não...sim... Eu já te conhecia e imaginava apenas pelo tocar do telefone. Era sempre uma sinfonia completa, composta de olhos e olhares, bocas e palavras, saliva e sabores, cabelos e corpos, tom sobre tom. Eu já te conhecia, era minha notícia diária favorita, mentirosamente verdadeira.
Poderíamos até ir a uma sorveteria qualquer, tomar sorvetes e comentar as notícias do dia. Mas tinha que ser aquela sorveteria da pracinha dos mortos, com casquinhas sempre meio moles, meio crocantes e com sabores no cardápio que nunca estavam disponíveis. Sorvete na sorveteria, coisas simples, fúteis e indispensáveis que sempre nos agradaram. Mas para que ir a sorveteria, se o sorvete derreteria ou em nossas mãos ou em nossas bocas, ouviremos os gritos e berros da multidão, inclusive os nossos, mais internos, mas ainda assim classificados como gritos e berros. Teríamos que correr junto à multidão que se formará ao nosso redor. Com sorte e velocidade a multidão se formará exatamente atrás de nós. Teremos que correr junto ao calor da massa, junto à casquinha repleta de massa de sorvete, sorvete que é incompatível com o calor e se derreterá... Ainda assim será sorvete... Ou não seremos mais os mesmos? E já sei que se o calor, fruto do banho-maria em que vivemos continuar, e se eu tiver que correr da multidão exatamente ao seu lado, derreterei também. Como será que tomavam banho essas marias? Eu sempre me derreto em dias assim.
Aqueles gritos daquela multidão ainda ecoavam pelo ar, quando percebi o telefone nas mãos e um eco de tu... tu..tu...tuuuuuuuuuu... Tanta coesão numa conversa imensa, que quase me tomou todo o dia. Perdi as notícias da hora do almoço. Meras reprises das matutinas, porém com menos verdades e menos mentiras, as mesmas notícias de todos os dias. Aquela conversa separada por um bocal que se ouve, outro que se fala, mas nunca os dois ao mesmo tempo, nunca juntos. Quase uma inutilidade ter dois bocais, um para ouvir e outro para falar, quase inútil ter dois ouvidos e uma boca, ou bem se fala ou bem se escuta. Prefiro misturar as duas versões. Prefiro um sorvete de maria-mole em casquinha mole, poupando energia e gritos e corridas e multidão e ainda assim me derreteria. Prefiro as noticias da noite, mais verdadeiras e que eu não atenda ao telefone e a campainha toque junto ao trimtrim do aparelho de “grambell” e que no caminho para a sorveteria tenhamos uma discussão sobre o sabor de sorvete de maria-mole que pediremos e que eu me derreta aos poucos e que você, você minta pra mim...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

SOBRE FILHOTES...

UM POR TODOS E TODOS POR UM.




Dois filhotes. Numa beira de estrada. Nada pra comer. Nada.
Duas mulheres apaixonadas, pela vida, pelos bichos, pelas coisas bonitas.
Dois filhotes dentro dum carro, cruzando a autoestrada, indo pra um lugar distante, indo para uma casa.
Testes. Comidas. Carinho. Vida renovada.
Dois filhotes brincando no meio da sala. Pedido e dando carinho. Dormindo nas almofadas.
A vida fluindo por entre e pelos dedos de todos.
Uma casa.
Uma verdade.
Uma história longa para ser contada.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A DEDICATÓRIA



A DEDICATÓRIA



Entrou na loja com o único intuito de comprar um livro. Que seria trocado mais tarde por um ingresso para leitura beneficente. Não estava interessada em nenhum título em especifico, qualquer um serviria desde que o preço fosse atrativo. Um funcionário direcionou-se a ela, e perguntou: - Posso ajudá-la? E ela com as maçãs levemente rosadas, que aparentavam um sublime pudor, mas que na realidade eram reflexo da correria do dia, respondeu: - Boa tarde, gostaria de um livro, clássico, talvez até de teatro, porém com um preço acessível. O rapaz se mostrou solicito, encaminhando-a a uma estante repleta de bons clássicos. Fez-lhe a observação de que ficasse a vontade e que se precisasse de ajuda era só chamá-lo. Ela olhou por alguns minutos os pares de livros, e lembrou-se de que não tinha muito tempo para escolher. Viu então um clássico da historia do teatro francês e consultando o preço, que era mais do que atrativo, resolveu levá-lo. Chamou o atendente, que a encaminhou até o caixa, com a recomendação de que deveria voltar mais vezes. O que a deixou realmente corada. Pagou pelo Molière e saiu, certa de que já estava mais do que atrasada.
No caminho para o compromisso, que gerou a visita ao sebo, recebeu uma ligação que provocou em seu peito, um turbilhão de emoções. O dia havia sido tão cheio de compromissos, que esqueceu que havia prometido a sua mãe, buscar bolo, salgadinhos e afins para a festa de aniversário de seu pai. Respondeu a mãe que estava a caminho, dando disfarce ao seu esquecimento. Partiu para a panificadora, que para sua tristeza, era quase do outro lado da cidade. Chegou o mais rápido que pode. Quase gritou com uma atendente, que ficou falando ao telefone, ao invés de atendê-la. Quase gritou com todos os presentes, tamanha era sua urgência e necessidade de estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo. Desafiando as conhecidas leis da física. Conseguiu ela mesma, carregar as encomendas para o carro, e saiu apressada. Chegando a sua casa, foi logo dispondo o lanche na mesa e chamando a mãe, pai e convidados para cantar o “Parabéns”. Alguns até estranharam, outros atribuíram ao fervor e pressa típicas da tenra idade. Cantou junto aos pais, aguardou que o aniversariante apagasse as velas e por fim, jogou dois ou três salgadinhos na boca e despediu-se correndo. Não sabia se chegaria a tempo.
Entrou no carro e por alguns segundos parou, olhando com seriedade o livro. Lembrou do tempo, que por fim não pára, e saiu tão rápido quanto um fio de cabelo ao vento. Buzinou varias vezes durante o caminho, que parecia longo demais. O trânsito era lento, as pessoas pareciam sem pressa, e ela contando cada segundo ao relógio. Lembrou-se, não uma nem duas vezes, que dirigir, de fato, não era de suas habilidades, nem a melhor e muito menos a mais apreciada. Enfim, chegou ao local do evento cultural. Enfiou o carro em um estacionamento próximo e saiu em carreira disparada para o teatro. A alguns metros de distancia, procurava sinais de colegas e conhecidos, para ter a certeza de que o espetáculo ainda não havia começado. Eram 19 horas e 10 minutos cravados. Temia não poder mais efetuar a troca de ingressos, que já sabia, eram procuradíssimos.
Quando adentrou ao saguão, avistou colegas aglomerados em sofás e poltronas, junto a uma parede com a arte de Potty. Não teve ao menos tempo de apreciar àquela bela visão. Suas palavras saiam em meio profundas inspiradas e expiradas sôfregas. Estava exausta. Cumprimentou de maneira rápida e já se ateve a pergunta dos ingressos. – Escute, vocês já estão com seus ingressos? Será que ainda tem algum? Gente que correria! Ofegava. Poucos responderam que tinham. Os demais estavam na esperança de que a tutora da turma pudesse interceder por eles. Ficou ainda mais preocupada, porém com a certeza de que não estava sozinha, do lado de fora do espetáculo. Era uma moça ainda muito jovem, com cabelos negros e profundamente lisos, herança de seus ancestrais orientais. Orientalidade que lhe trazia lindos e vivos olhos puxados e uma pele clara como a neve, a face rosada pelo frio e pressa. Um sorriso repleto de dentes marfinosos. Sorriso largo e aberto, sorriso urgente. Mãos irrequietas, quase italianas. Expressavam-se muito mais as mãos, do que as palavras, em certos momentos. E a voz de flauta doce, aos ouvidos dos mortais. Sentou-se em um dos sofás, estava realmente cansada. Aguardava a chegada da tutora, para dar-lhes o parecer. Deixou-se levar pelos assuntos alheios que surgiram, quase querendo apenas ouvir, sem ter que falar.
Ouviu longe alguém, que não pode nem reconhecer, perguntar-lhe: - Nossa, será que vejo um clássico de Molière, passeando por aqui? Demorou alguns segundos para responder, localizou-se primeiro. Encontrou quem proferira a pergunta. – Sim, achei que seria mais conveniente num evento como este trazer um clássico. – Nossa, muito aplicada você. E ela: – Na verdade fiquei com receio de passar vergonha. Sei lá... Imagine se chego com um livro qualquer e sou repreendida na frente de todos. Sou cheia de manias. E sorriu largamente. O que fez os demais sorrirem também, ainda que não inseridos no contexto.
Nisso surge a tutora, quase irreconhecível, diante dos pupilos. Pararam quase de imediato, e os que não se acharam imóveis, ficaram perdidos, tentando achar o motivo para a paralisia dos demais. A tutora adentrou ao salão, tão cheia de vigor, que parecia caminhar numa marcha de vitória. Era trazida por um par de sapatos pretos, que pareciam ter sido tirados de uma boneca adulta, eram intensamente negros e brilhavam de lustro. As pernas delineadas eram cobertas por uma malha preta e elástica, que as faziam movimentar-se com certo bailado, apesar dos passos firmes. Um short, blusa rubra de lã quentinha e um cachecol, completavam o conjunto da obra. Os cabelos igualmente rubros, sedificavam tudo por onde passavam. Tinham as pontas em posição de sentido militar, todas viradas para fora. Os olhos eram vivos, com um brilho quase incomum, e a boca carmim. Cada qual olhava por seus próprios motivos de admiração, mas o que de fato não faltava, era admiração intensa. Logo surgiram os comentários pertinentes. – Nossa... – Fi-fiu...
– Nem reconheci... – Está linda... E assim seguiram-se, até que ela fez o comentário que estava sendo esperado por quase todos. Para reparo dos presentes e como não poderia deixar de ser, a fala começou com uma gargalhada daquelas. – Hahaha...Então, estão todos já com seus convites em mãos? Logo as palavras se atropelavam, queriam falar todos ao mesmo tempo. Outra gargalhada, boa, leve, suspirante. – Calma gente, eu não consigo escutar, muito menos entender. Perceberam, e por eliminação, de maneira imediata, um interlocutor, explicou a situação. – Quase ninguém tem convite, achamos que a troca de ingressos seria ás 19 horas. Mas informaram que começou ás 18 horas e trinta minutos depois já estavam esgotados. – Não acredito, que isso gente... Seu jeito de ficar nervosa era tão calmo, quanto sorridente, havia até uma gargalhada brava, quase não acreditávamos. – Vou resolver isso já, não se preocupem. Ficaram todos esperando e as lamurias eram gerais.
     Como nem só de reclamações se perfazem as conversas, uma nova observação e um pedido, em relação ao livro de Molière. – Será que posso dar uma olhadinha nesse clássico? E ela ainda longe: - Claro que pode. E esticou a mão com o livro, e parecia não ter a intenção de sequer olhar. Mas no momento em que sua mão foi ao encontro da solicitação, sentiu um aperto no peito, quase que se estivesse sendo separada de um ente querido. Parou a mão no caminho, olhou profundamente para o exemplar. Quis quase trazê-lo de encontro ao peito e apertá-lo forte. Não quis parecer insana. Entregou-o a contragosto. O receptor abriu-o com um enorme respeito e um também enorme cuidado, dedilhando as páginas com carinho e admiração. Folheou as primeiras e logo comentou. – Nossa, tem até dedicatória. Ela foi levada a olhar, ainda que estivesse com os pensamentos bem longe dali. O olhar que surgiu ao comentário foi tal qual tivessem chamando a menina pelo nome, em voz alta. Ela olhou com aflição para o livro e para a mão que o segurava. Num salto foi de encontro à mão e tomou-lhe o exemplar.
    Sentou-se novamente, e o rapaz que até então estava com o livro, olhou sem entender nada. Não teve cuidado e muito menos respeito pelas folhas que compunham a obra. Saiu folheando rápido para achar a tal dedicatória. Chegou ao local, onde estavam as palavras escritas em letras miúdas e manuscritas, com caneta azul esferográfica. Parecia que as letras brincavam de ciranda no papel. Estavam embaralhadas para suas vistas. Apertou ainda mais os olhos e respirou quase suspirando. Parou. Chegou a fechar os olhos e tornou a abri-los. As letras cessaram a brincadeira e tornaram-se legíveis. Ela leu uma vez em seus pensamentos e não se conteve, tornou a lê-la em voz alta e quase gritada. Os presentes, colegas e demais que estavam naquele saguão foram obrigados a fita-la, com certa surpresa. E ela em bom tom disse: - “Madeleine, que este livro seja o candelabro a iluminar seus caminhos artísticos e sua vida daqui para frente. Sei de sua ânsia pelas artes e suas vontades de atriz e diretora, logo, espero que Molière lhe ajude a trilhar o melhor caminho que puder. Com carinhos e muito amor, Clara Poquelin. Setembro de 1837”. Terminou com olhos rasos d’água e sentou-se como se estivesse em um transe. Todos pararam de olhar, alguns a julgando louca e outros apenas excêntrica, houve até os que pensaram que fazia parte do espetáculo, que começaria em alguns minutos. Ficou abraçada ao exemplar, até que a tutora apareceu e começou a recolher os livros para trocá-los pelas entradas. E ela ali, sentada e abraçada com o livro. Chegou sua vez de entregar o exemplar. Não cedeu, continuou abraçada as paginas amareladas. Vendo que a tutora insistia em recolhê-lo deu uma desculpa impensada. – Ah, estou com certa pena. Sei que não devemos nos apegar as coisas materiais. Mas na hora em que peguei o livro em minha biblioteca, não percebi que se tratava deste livro. Não gostaria de me desfazer dele. E a tutora, ainda mais delicada do que de costume. – Tudo bem, sei como são essas coisas. Tenho um exemplar sobrando, caso algum aluno esquecesse. Vou emprestá-lo a você. E ela não conteve um sorriso de salvação.
    Foram todos chamados a entrar na sala de apresentações e ela foi também. Braços cerrados em torno do livro, como se carregasse uma cria. Sentou-se em uma das cadeiras vagas, pôs o livro no colo e o acariciou, como se lembrando de alguém. O colega que presenciou tudo, a olhava, com certa inquietação. Não sabia o que pensar, de livro comprado ao acaso em sebo, transformou-se em exemplar de biblioteca particular, e tantas caricias ao pedaço de papel. Acreditou que nunca saberá o que se passa pela cabeça das pessoas. Nunca irá entendê-las. E ela passou o espetáculo todo, com o dito no colo, sendo acariciado incessavelmente, e ele passou o espetáculo todo, observando a cena e tentando dar desfecho ao caso.
   Ao termino da peça, saiu correndo do teatro, sem despedir-se de ninguém. Foi observada por mais de um dos presentes. Entrou em seu carro e colocou o livro, com o máximo de cuidado em cima do banco do passageiro, olhou por longos minutos, sorriu sozinha, não disse uma palavra sequer. Seguiu para sua casa, ao entrar, não deu importância a ninguém. Subiu para seu quarto, com o livro nos braços. Chegando ao quarto rosa, colocou o livro em cima de sua cama e olhou mais de uma vez. Ligou o rádio, escolheu a música favorita, sorriu para si mesma e para o livro, dançou para os dois. Pegou-o novamente e dançou com ele, rodopiou pelo quarto, como se estivesse abraçada ao seu par ideal. Dava gargalhadas, sorria, cantava, tudo com o livro em evidência. Sua mãe ouviu ao longe as risadas e foi participar da alegria da filha. Viu-a rodopiante com um livro nas mãos, não quis interromper, encostou novamente a porta do quarto e saiu, e ela permaneceu lá, feliz. Por várias vezes se jogava na cama, elevava o livro, balbuciava algumas palavras para ele e tornava a dançar. Passou algumas grandes horas nesse estado. Esqueceu quem era nesse estado. Fez um mundo para ela e o livro. Adormeceu com o livro ao seu lado, um sorriso nos lábios e seu mundo ao redor, rodando. Sua mãe foi até lá para vê-la, esticou por cima de seu corpo um cobertor, beijou-lhe a face e a viu dormir feliz.
    Acordou no dia seguinte e por outros tantos sem vontade de sair do quarto. Estava feliz. Tinha sua música, seu livro, sua dedicatória, sua vida. Estava feliz. Sua mãe e seu pai se preocupavam, estava sempre na rua, com amigos e vizinhos, tinha sua vida. Estava agora há dias em seu quarto, com um livro que a acompanhava em tudo. Estava sempre a ouvir as mesmas músicas, dançava insanamente, quase nada comia. Dormia tarde, acordava quase ao meio-dia. Parecia feliz, dizia estar feliz. A família com pensamentos funestos. Ela com pensamentos desconhecidos. A preocupação aumentando, a visita de um médico da família. O diagnóstico, saudável, não aparentava doença alguma, pediu exames de rotina, solicitou uma visita de um psiquiatra, apesar de feliz, não aparentava depressão, coisas da idade, dizia ele. A mãe a levou ao laboratório, com o livro a tira-colo, fez os exames necessários, voltou para casa. Ligou sua música, dançou e sorriu, riu a tarde toda, em conversas cochichadas com o livro. Volta e meia abria-o na página em que havia uma dedicatória, sorria e chorava ao mesmo tempo. Beija a página, repetidas vezes. Dançava. Deitava-se na cama, de barriga ao vento e com os braços no ar, o livro sendo admirado pela milésima vez. A mãe sentia um aperto no peito e chorava na porta do quarto rosa. Ela sequer notava a presença da mãe. Estava feliz.
    O psiquiatra recomendado pelo médico da família veio visitá-la, foi recebido no quarto da garota. Fez inúmeras perguntas, que foram respondidas com total displicência. A mãe já havia comentado sobre o livro, o psiquiatra pediu para vê-lo, ela mostrou de longe, não permitiu que tocasse. Tentou observar sinais de depressão ou o uso de drogas, foi tirada do quarto, e o médico investigou cada canto do rosa. Nada encontrou. Não era depressiva, não usava drogas, estava feliz. O médico sugeriu uma doença rara, que poderia ser genética e que causaria demência nos pacientes. Os pais não aceitaram, era muito jovem e de família muito saudável. Choraram abraçados, sofreram junto, e ela em seu quarto, feliz como nunca.
    Abandonou a faculdade de Direito, já estava quase por se formar. Esqueceu todas as atividades que se passavam do lado de fora daquele quarto rosa. Largou as aulas de teatro que tanto elogiava, nunca mais foi vista pelos colegas de lá, e não se importava, tinha seu livro, sua dedicatória. A tutora por vezes comentava sua desistência, ao fazer a chamada recordava seu rosto e comentava aos demais. Jean Paulo, seu colega que presenciara o episódio do dia do teatro ficou com certa impressão e resolveu procurá-la. 
    Descobriu endereço e telefone, ia sem avisar, mas achou melhor certificar-se. Ligou e ouviu sua voz um pouco envelhecida, parecia de fato a colega, uns anos mais madura. Descobriu por fim que era sua mãe, explicou que a conhecia da turma de teatro e que estavam todos sentindo sua falta. Marcou uma visita no fim da tarde. Era terça-feira, era calor. Saiu de seu trabalho e foi ao endereço que tinha em mãos. Ao chegar tocou a campainha e foi recebido por uma jovem senhora, muito parecida com sua colega. Disse à mulher que gostaria de visitar Julie. Ela sorriu, sabia de quem se tratava, convidou-o para entrar e não perdeu tempo em chamar a filha para a sala. Sabia que ela não sairia de seu mundo rosa. Encaminhou o colega até o quarto da filha e ficou na porta observando a cena. Ela não o viu entrar, estava ouvindo a mesma música de sempre, rodopiava como sempre, parecia bem feliz. Ele entrou, sentou-se a penteadeira e apenas fitou-a. Depois de algum tempo ele interferiu em seus rodopios, chamou-a de Madeleine. Ela de pronto atendeu-o, sua mãe, na porta do quarto espantou-se. Jean Paulo a olhou e ela retribuiu o olhar. Aproximou-se a passos lentos e sorriu ainda mais. Chamou-o não de Jean Paulo, e sim de Clara Poquelin, sorriu novamente. Correu para seus braços, abraço-o e beijou-o com fervor apaixonado. Dançou, brincou, balbuciou outras palavras, que nem ao menos Jean entendia. Gargalhava e dizia-se muito feliz. Por fim largou o livro e rodopiou com Jean por todo o quarto, a música já havia acabado. Estava feliz.
Jean já havia ouvido falar no livro de Molière que tinha sido enfeitiçado há mais de um século, não pode acreditar. Muitos anos atrás uma pobre bruxa ficou enfeitiçada pelos encantos de uma garota branca como a neve, com um sorriso tão largo que poderia alcançar as duas pontas do mundo. Viu-a dançar rodopiante em uma festa. Encantou-se de tal maneira que desejou ser a própria garota e ter sua beleza para si. Tentou por dias se fazer linda e sorridente como a jovem, sem sucesso. Era velha e feia, dominada pela carga de suas magias, envelhecida pelos seus feitos de maldade. Não era uma bruxa de contos de fadas, dessas que tem um caldeirão e uma verruga na ponta de um nariz obtuso. Era apenas uma mulher comum, com a face marcada por inúmeras rugas e tristezas. Sua magia baseava-se em frases ditas em momentos de loucura e inveja, desejava possuir o que era alheio. Perseguiu a menina por tempos, até que cansada de tanta perseguição a menina lhe trouxe um espelho e uma flor. Disse-lhe que a beleza vem de onde não podemos ver e entregou-lhe o espelho e a flor. Ela não pode entender a pretensão da menina, olhou a flor, que de imediato murchou em suas mãos e olho-se no espelho que rachou em milhares de pedaços. Ficou inundada de ódio, escreveu com palavras doces em um livro muito apreciado pela menina, uma dedicatória enfeitiçada. Colocou novamente em suas coisas e esperou. Depois de algum tempo correu o boato na cidade, de que a linda menina que vivia dançando nas festas com alegria e satisfação jazia louca em seu quarto, abraçada a um livro. Ela em voz mais do que alta exclamou a todos: - Ficará até o fim dos seus dias presa a sua beleza e alegria em seu quarto rosa, que será seu mundo. Gargalhou maldosamente e saiu. Nunca mais foi vista. A menina enlouqueceu cada dia mais, apesar da visita quase diária de médicos, curandeiros e amigos. Deitou-se um dia para dormir abraçada com seu livro e nunca mais despertou. Não envelhecia, não acordava, não morria. Um dia sua mãe tentando acordá-la retirou de seus braços o livro e jogou-o contra a parede. Sua filha envelheceu 100 anos em alguns minutos e pereceu. A mãe se achando culpada pela morte da filha, fugiu de casa e da cidade, tentando se esconder do mundo. O feitiço se manteve naquele livro e se reavivaria a cada menina alegre e bela que o tocasse e lesse sua dedicatória com o coração.
Jean tinha certeza, Julie estava enfeitiçada. Continuou bailando com ela e murmurou a sua mãe para que lhe trouxesse uma bacia, álcool e fósforos. Em poucos instantes, tinham no meio do quarto rosa, um clássico se transformando em uma grande fogueira. Julie se aproximou com os olhos chorosos da fogueira, como que se despedindo e direcionou-se a cama. Caiu em um sono profundo. A mãe, desesperada, achando que a filha havia morrido, correu para acudi-la. Jean Paulo conteve as lágrimas da mãe e saiu, fechando a porta do quarto, com a menina dentro. Recomendou a mãe que não a incomodasse, o tempo vai passar, explicou ele. O tempo estava passando, dias penosos em que a mãe via a filha em sono pesado no quarto rosa.
    Após 30 dias de sono profundo, em uma manhã fria de inverno, desce a escadaria, se junta à família no café, a menina. Para na escada por alguns momentos, olha para a família, suspira alto. Desce degrau por degrau, sorri largo, cantarola, boceja. A mãe olha com ternura e lágrimas que lhe inundam a face. Os demais demonstram alegria e fé. Ela comenta: - Esta noite dormi como uma criança. Papai me desculpe por não ter participado mais de sua festa ontem. O dia foi exaustivo. E vejam se não me deixam dormir até tarde amanhã. Tenho afazeres fora desta casa. Riu com toda a sua jovialidade. Sentou-se a mesa e comeu com apetite voraz. A mãe se levantou, lhe beijou a face rosada e se dirigiu ao telefone. – Sim ,Jean, agora está tudo bem. Ela enfim acordou. E ele admirado, pois ainda não podia acreditar. 

– E ela parece saudável?    

– Parece feliz...