POR UMA LINHA
As crises são cada vez mais
fortes Doutor, não, por favor, não desligue, eu não quero enlouquecer aqui
sozinha. Não Doutor, eu sei que ninguém pode ser culpado pelo que está
acontecendo, eu sei disso. Sei também que eu não posso receber mais nenhuma
culpa, já carrego o suficiente para não conseguir me mover. Eu sei Doutor, são
informações demais, compreensão de menos, dias e dias sem parar, eu sei Doutor.
Doutor, o senhor ainda está ai, eu sei que a ligação foi feita á cobrar, mas eu
não podia passar meus últimos minutos sozinha e não me restou nenhum trocado no
bolso. Eu sei que ninguém pode ser culpado por isso também, mas tenho dúvidas
quanto a isso Doutor, eu tenho várias dúvidas, tantas outras dívidas e pouco
tempo para respostas Doutor. Mas Doutor se mantenha na linha, ainda que isto
lhe custe devolver alguns dos tantos vinténs que lhe dei. Doutor me responda,
não Doutor, as respostas me iludem num momento sem ilusões, não, eu não as
quero mais. Doutor me conte uma de suas muitas histórias. Sim Doutor, sem nomes
ou endereços, mas uma delas que seja de verdade, não as mesmas histórias que
tenho escutado por toda a minha vida. Não Doutor, não me importa mais, só quero
que seja verdadeira. Por favor, Doutor, não me negue esse último pedido, ainda
que saibamos que possa não ser derradeiramente o último, mas não o negue, não a
mim. Não a mim que sempre fui paciente com suas mentiras, com seus olhares que
se desviavam para o além quando seu taxímetro medicinal estava ligado e eu
expunha minhas dores e minhas aflições ao desdém, não a mim Doutor, que sempre
mantive suas regalias quando pagava sem recibos todas as consultas inúteis em
que me dizia que deveria resolver sozinha minhas dúvidas e me criava outras
tantas para resolver na consulta seguinte... Não a mim, Doutor. Doutor me
mantenha viva agora, já que não pode fazê-lo durante tantos anos naquela
cadeira fria, faltam só mais alguns momentos, só mais alguns. Doutor, eu já lhe
falei da minha infância, quando eu teimava em sonhar com coisas impossíveis de
se realizar, eu já lhe falei, não é mesmo, aliás, lhe falei em todas as
consultas de uma hora. Então Doutor me conte uma história de uma menina que
sonhava coisas impossíveis quando ainda era apenas uma criança. Conte-me que
ela sonhava com uma felicidade que dava para tocar, e sentir o cheiro, e que
todas as manhãs ela regava essa felicidade como planta em seu jardim, ainda que
lá fora só houvesse neve. Conte-me que
ela podia ter sim esses sonhos tolos e infantis, ainda que o tempo passasse para
ela, assim como para todos os demais. Conte-me que ela cresceu ouvindo boa
música e alimentando sua alma ao invés de um corpo obsoleto. Conte-me que ela
sentia o chão sob seus pés somente quando queria, e quando não queria tinha a
permissão de voar. Conte-me Doutor, que a culpa de uma vida sem sonhos e com
uma realidade chula não é dela, é culpa da própria realidade que se mostra
assim. Conte-me uma dessas histórias na qual eu acredite e feche meus olhos com
um pouco só de dignidade, por favor, me conte Doutor. Conte-me como fazem as
músicas melodiosas, nas quais se tem vontade de fechar os olhos e flutuar, me
faça somente desta vez ouvir sua voz de maneira doce e verdadeira, ainda que
não seja capaz disso Doutor. Eu ficarei aqui deste lado, sentada na poltrona
como tantas vezes me viu, com as pernas fechadas e as mãos pousadas nos
joelhos, minha cabeça se inclinará para trás e meus ouvidos se abrirão para que
entrem seus dizeres. Não Doutor, não preciso de muito tempo, só o suficiente
para me convencer de que é possível. Sim Doutor, essa será a ultima vez que nos
falaremos para sempre, nunca mais voltarei ao consultório ou a discar seu
número no meio da madrugada ou em qualquer hora do dia que seja, fique
tranqüilo Doutor. Faltam apenas alguns minutos, e é só disto que necessito
agora. Dentro em breve cerrarei meus olhos a uma verdade incapaz de me acordar.
Doutor comece a história como se começa uma vida, com leveza e luz. Doutor tem
que ser uma historia verdadeira, sim Doutor eu faço questão. Sei que neste
momento não sou eu quem paga a conta e não posso fazer tal exigência, mas Doutor,
em nome de sei lá o que, por favor. Doutor, por favor, não desligue, Doutor... Era
só uma história simples com uma pitada de verdade... Eram só mais alguns
minutos dentro de uma vida inteira... Era só o meu final feliz.
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