terça-feira, 5 de março de 2013

Doutor?


POR UMA LINHA



As crises são cada vez mais fortes Doutor, não, por favor, não desligue, eu não quero enlouquecer aqui sozinha. Não Doutor, eu sei que ninguém pode ser culpado pelo que está acontecendo, eu sei disso. Sei também que eu não posso receber mais nenhuma culpa, já carrego o suficiente para não conseguir me mover. Eu sei Doutor, são informações demais, compreensão de menos, dias e dias sem parar, eu sei Doutor. Doutor, o senhor ainda está ai, eu sei que a ligação foi feita á cobrar, mas eu não podia passar meus últimos minutos sozinha e não me restou nenhum trocado no bolso. Eu sei que ninguém pode ser culpado por isso também, mas tenho dúvidas quanto a isso Doutor, eu tenho várias dúvidas, tantas outras dívidas e pouco tempo para respostas Doutor. Mas Doutor se mantenha na linha, ainda que isto lhe custe devolver alguns dos tantos vinténs que lhe dei. Doutor me responda, não Doutor, as respostas me iludem num momento sem ilusões, não, eu não as quero mais. Doutor me conte uma de suas muitas histórias. Sim Doutor, sem nomes ou endereços, mas uma delas que seja de verdade, não as mesmas histórias que tenho escutado por toda a minha vida. Não Doutor, não me importa mais, só quero que seja verdadeira. Por favor, Doutor, não me negue esse último pedido, ainda que saibamos que possa não ser derradeiramente o último, mas não o negue, não a mim. Não a mim que sempre fui paciente com suas mentiras, com seus olhares que se desviavam para o além quando seu taxímetro medicinal estava ligado e eu expunha minhas dores e minhas aflições ao desdém, não a mim Doutor, que sempre mantive suas regalias quando pagava sem recibos todas as consultas inúteis em que me dizia que deveria resolver sozinha minhas dúvidas e me criava outras tantas para resolver na consulta seguinte... Não a mim, Doutor. Doutor me mantenha viva agora, já que não pode fazê-lo durante tantos anos naquela cadeira fria, faltam só mais alguns momentos, só mais alguns. Doutor, eu já lhe falei da minha infância, quando eu teimava em sonhar com coisas impossíveis de se realizar, eu já lhe falei, não é mesmo, aliás, lhe falei em todas as consultas de uma hora. Então Doutor me conte uma história de uma menina que sonhava coisas impossíveis quando ainda era apenas uma criança. Conte-me que ela sonhava com uma felicidade que dava para tocar, e sentir o cheiro, e que todas as manhãs ela regava essa felicidade como planta em seu jardim, ainda que lá fora só houvesse neve.  Conte-me que ela podia ter sim esses sonhos tolos e infantis, ainda que o tempo passasse para ela, assim como para todos os demais. Conte-me que ela cresceu ouvindo boa música e alimentando sua alma ao invés de um corpo obsoleto. Conte-me que ela sentia o chão sob seus pés somente quando queria, e quando não queria tinha a permissão de voar. Conte-me Doutor, que a culpa de uma vida sem sonhos e com uma realidade chula não é dela, é culpa da própria realidade que se mostra assim. Conte-me uma dessas histórias na qual eu acredite e feche meus olhos com um pouco só de dignidade, por favor, me conte Doutor. Conte-me como fazem as músicas melodiosas, nas quais se tem vontade de fechar os olhos e flutuar, me faça somente desta vez ouvir sua voz de maneira doce e verdadeira, ainda que não seja capaz disso Doutor. Eu ficarei aqui deste lado, sentada na poltrona como tantas vezes me viu, com as pernas fechadas e as mãos pousadas nos joelhos, minha cabeça se inclinará para trás e meus ouvidos se abrirão para que entrem seus dizeres. Não Doutor, não preciso de muito tempo, só o suficiente para me convencer de que é possível. Sim Doutor, essa será a ultima vez que nos falaremos para sempre, nunca mais voltarei ao consultório ou a discar seu número no meio da madrugada ou em qualquer hora do dia que seja, fique tranqüilo Doutor. Faltam apenas alguns minutos, e é só disto que necessito agora. Dentro em breve cerrarei meus olhos a uma verdade incapaz de me acordar. Doutor comece a história como se começa uma vida, com leveza e luz. Doutor tem que ser uma historia verdadeira, sim Doutor eu faço questão. Sei que neste momento não sou eu quem paga a conta e não posso fazer tal exigência, mas Doutor, em nome de sei lá o que, por favor. Doutor, por favor, não desligue, Doutor... Era só uma história simples com uma pitada de verdade... Eram só mais alguns minutos dentro de uma vida inteira... Era só o meu final feliz.

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