QUEIMANDO EM BANHO-MARIA
Tudo começa em um dia que começa com
algumas notícias. A impressão que fica depois disso tudo, é que todos os dias
se iniciam com notícias. Ouvi a todas elas, algumas eram verdadeiras, outras
eram ainda mais verdadeiras e o noticiário termina com aquelas que eram
puramente falsas, amplamente mentirosas, mas nessas tinha maior facilidade de
acreditar. Eram essas as que eu realmente acreditava, as inacreditáveis.
Quando o telefone tocou e quebrou seu
voto de silêncio, titubeei em
atender. As noticias de verdades verdadeiras me deixaram
farta, farta de ouvir e ainda mais farta de falar. Não quis atendê-lo, mas
sempre que faço isso à campainha toca quase que instantaneamente. Não teria
paciência para atender à porta numa manhã assim. Não queria falar, somente
ouvir, meu velho telefone no qual se discava girando os números, ainda não me
permitia conversas sem palavras. Minhas inúmeras expressões faciais de nada
ajudariam. – Alô!?...Sim... não...talvez sim...certamente que não...obviamente
sim...não...não...não...sim... Eu já te conhecia e imaginava apenas pelo tocar
do telefone. Era sempre uma sinfonia completa, composta de olhos e olhares,
bocas e palavras, saliva e sabores, cabelos e corpos, tom sobre tom. Eu já te
conhecia, era minha notícia diária favorita, mentirosamente verdadeira.
Poderíamos até ir a uma sorveteria
qualquer, tomar sorvetes e comentar as notícias do dia. Mas tinha que ser
aquela sorveteria da pracinha dos mortos, com casquinhas sempre meio moles,
meio crocantes e com sabores no cardápio que nunca estavam disponíveis. Sorvete
na sorveteria, coisas simples, fúteis e indispensáveis que sempre nos
agradaram. Mas para que ir a sorveteria, se o sorvete derreteria ou em nossas
mãos ou em nossas bocas, ouviremos os gritos e berros da multidão, inclusive os
nossos, mais internos, mas ainda assim classificados como gritos e berros. Teríamos
que correr junto à multidão que se formará ao nosso redor. Com sorte e
velocidade a multidão se formará exatamente atrás de nós. Teremos que correr
junto ao calor da massa, junto à casquinha repleta de massa de sorvete, sorvete
que é incompatível com o calor e se derreterá... Ainda assim será sorvete... Ou
não seremos mais os mesmos? E já sei que se o calor, fruto do banho-maria em
que vivemos continuar, e se eu tiver que correr da multidão exatamente ao seu
lado, derreterei também. Como será que tomavam banho essas marias? Eu sempre me
derreto em dias assim.
Aqueles gritos daquela multidão ainda
ecoavam pelo ar, quando percebi o telefone nas mãos e um eco de tu... tu..tu...tuuuuuuuuuu...
Tanta coesão numa conversa imensa, que quase me tomou todo o dia. Perdi as
notícias da hora do almoço. Meras reprises das matutinas, porém com menos
verdades e menos mentiras, as mesmas notícias de todos os dias. Aquela conversa
separada por um bocal que se ouve, outro que se fala, mas nunca os dois ao
mesmo tempo, nunca juntos. Quase uma inutilidade ter dois bocais, um para ouvir
e outro para falar, quase inútil ter dois ouvidos e uma boca, ou bem se fala ou
bem se escuta. Prefiro misturar as duas versões. Prefiro um sorvete de
maria-mole em casquinha mole, poupando energia e gritos e corridas e multidão e
ainda assim me derreteria. Prefiro as noticias da noite, mais verdadeiras e que
eu não atenda ao telefone e a campainha toque junto ao trimtrim do aparelho de
“grambell” e que no caminho para a sorveteria tenhamos uma discussão sobre o
sabor de sorvete de maria-mole que pediremos e que eu me derreta aos poucos e
que você, você minta pra mim...
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