terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Semente.







Plantou flores por todo o jardim. Cuidou como pode. Cuidou do frio, da chuva, dos gatos, dos cachorros, dos pés cegos que teimavam em pisar na recém-nascida, das pragas, dos pássaros. Cuidou mais do que de si. Passou horas e mais horas, imersa naquele mundo florido. Tirava folha amarela por folha amarela, marrom. Conversava com elas. Eram sua companhia num mundo tão cheio de não florescidos. Tinha coragem de acordar cedo num dia de geada, logo quando o sol saia, pra retirar de cima das suas companheiras o plástico que as cobria do gelo e deixar que respirassem em paz. E não tinha quem não admirasse tal jardim. Não tinha quem não desse uns dois ou três minutos do seu dia para ver aquelas belezuras. Mas a beleza era só o fim. Gostava mesmo da troca diária, eu te cuido, você me cuida. Eu não me cuido. Nada nas costas. Nada nas mãos. Nada por fora. Mas por dentro, esqueceu-se de plantar algumas sementes necessárias para seu crescimento. Esqueceu que dentro também é jardim. E deixou crescer erva-daninha, deixou o mato grande. Deixou tanto. Já havia passado mais da metade, supunha. Tinha filhos, netos, crescidos, floridos. Dera o nome das filhas de flor, ROSA, MARGARIDA E VIOLETA. Já estavam crescidas.
Foi sentindo o tempo baixando sobre seus ombros. Foi sentindo cada acordar cedo. Não contou a ninguém, nem ao menos as suas amigas de raízes e cores. Continuou seguindo em frente. Como se isso fosse o que deveria ser feito. Acordando, mesmo que dolorida, por dentro. Cuidando, mesmo que não de si. Colhendo.
E o que era pouco se tornou muito. Muito difícil de suportar. Mas mesmo assim foi ao médico sobre seu próprio eixo. Ereta, feito haste de margarida. Havia aprendido muita coisa. E depois tudo aquilo que já se sabe, que já se viu. O revirar das coisas de dentro do pior jeito, aquele sem jeito, sem tato. Aquele que fotografa pelo avesso. E descobriram o que ela já sabia. Tinha dentro do corpo umas ervas-daninhas. Já grandes, já crescidas. Sempre se perguntava de onde vinham as danadinhas, as daninhas. Seria injusto julgar o vento, os pássaros, as formigas. Seria injusto julgar que alguma coisa pudesse trazer o mal. Mas ele vinha. Não se sabe nem como e nem de onde. Não se sabe ou se diz não saber...
Era um mal irremediável. Se pegasse pequeno disse o médico, arrancava pela raiz, tirava, extirpava, jogava veneno. Mas agora era como uma árvore havia criado raízes profundas e não se podia mais arrancar, sem tirar dali um grande pedaço de terra, por assim dizer. Ela não sabia se ele sabia da sua predileção por plantas, mas não havia jeito melhor de explicar. Jeito melhor de entender. E foi pra casa. Pro seu jardim. Estava sossegada. Com suas plantas, com seu quintal, com suas coisas, com suas amigas.
E a peneira foi se abrindo. Já não havia como não deixar o sol penetrar pelos furos imensos que ali se encontravam. O sol. Tão bom tão necessário. Agora não mais. Não mais ali. Ia ao hospital e voltava. Pedia pra sair. Assinava a rendição. Dizia que sabia o trabalho que estava dando. E foi ficando cada vez mais envergada. Envergonhada de não mais poder cuidar das suas flores, do seu jardim. E cada vez que ia demorava mais pra voltar. E quando voltava, não eram todas que tinham sobrevivido. Sofria por todas.
Mas um dia acordou bem. Sentia-se revigorada. Reerguida em sua haste tão gasta. Regou as plantas, que respiraram aliviadas. Arrancou todo mato. Cercou com palitos e fitas, coloridas. Passou o dia do lado de fora. Vez por outra ouvia um grito de "entra!", não ligava. Estava entretida. Mais do que isso, estava certa. Só depois do sol, entrou. Resolveu dar jeito em umas coisas, que fazia tempo estavam carecendo de ordem. Gavetas, armários. E lá no fundo de uma caixa no fundo do fundo, um envelope. Sementes. Pequenas. Não se sabia o que eram e nem de onde tinham vindo. Se foram guardadas, ganhadas, compradas. Se surgiram ali como surgem as ervas-daninhas. 
E o relógio do corpo deu sua badalada. Final. Chamou as filhas-flores na sala. Contou de tudo e mais um pouco. Regou todas com suas lágrimas. Disse a roupa, vestido e casaco. Tinha medo de passar frio em sua partida. Deixou-as regadas na sala e voltou ao quarto. Colocou no bolso do casaco escolhido o envelope. Secreto. Não se sabia se eram daninhas ou danadas. Curvou-se para a colheita.
Como flor que cai não se ouviu nem suspiro, nem baque. Só colhida, ainda flor. No chão. No quarto. Chamaram médico. Chamaram por tudo. Ceifada. A roupa do lado da cama.
 E como todo tempo que é passado, passa. E todo sábado ia até o jardim final da florista, MARGARIDA, ROSA E VIOLETA. Visitar as gramas. Tirar o mato. Regar a flor maior. E depois de seis meses. Já com a dor menos dolorida. Assim como acontece com tudo na vida. Lá estavam elas. E de longe viram uma coisa que as deixou regadas. Um maço grande de flores, que não se sabia quem teria levado até o lugar. E chegando mais perto viram que não haviam levado, estava. Brotou da terra. Estava plantado ali um buquê. E sorriram pensando que de tanto que gostava de flores, Deus havia presenteado. 
Agora ela sabia, não importava do que eram as sementes e sim como seriam plantadas. Estava de novo em seu jardim! Plantada...

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