Plantou flores por todo o jardim. Cuidou como pode.
Cuidou do frio, da chuva, dos gatos, dos cachorros, dos pés cegos que teimavam
em pisar na recém-nascida, das pragas, dos pássaros. Cuidou mais do que de si. Passou
horas e mais horas, imersa naquele mundo florido. Tirava folha amarela por
folha amarela, marrom. Conversava com elas. Eram sua companhia num mundo tão
cheio de não florescidos. Tinha coragem de acordar cedo num dia de geada, logo
quando o sol saia, pra retirar de cima das suas companheiras o plástico que as
cobria do gelo e deixar que respirassem em paz. E não tinha quem não admirasse
tal jardim. Não tinha quem não desse uns dois ou três minutos do seu dia para
ver aquelas belezuras. Mas a beleza era só o fim. Gostava mesmo da troca
diária, eu te cuido, você me cuida. Eu não me cuido. Nada nas costas. Nada nas
mãos. Nada por fora. Mas por dentro, esqueceu-se de plantar algumas sementes
necessárias para seu crescimento. Esqueceu que dentro também é jardim. E deixou
crescer erva-daninha, deixou o mato grande. Deixou tanto. Já havia passado mais
da metade, supunha. Tinha filhos, netos, crescidos, floridos. Dera o nome das
filhas de flor, ROSA, MARGARIDA E VIOLETA. Já estavam crescidas.
Foi sentindo o tempo baixando sobre seus ombros. Foi
sentindo cada acordar cedo. Não contou a ninguém, nem ao menos as suas amigas
de raízes e cores. Continuou seguindo em frente. Como se isso fosse o que
deveria ser feito. Acordando, mesmo que dolorida, por dentro. Cuidando, mesmo
que não de si. Colhendo.
E o que era pouco se tornou muito. Muito difícil de
suportar. Mas mesmo assim foi ao médico sobre seu próprio eixo. Ereta, feito
haste de margarida. Havia aprendido muita coisa. E depois tudo aquilo que já se
sabe, que já se viu. O revirar das coisas de dentro do pior jeito, aquele sem
jeito, sem tato. Aquele que fotografa pelo avesso. E descobriram o que ela já
sabia. Tinha dentro do corpo umas ervas-daninhas. Já grandes, já crescidas. Sempre
se perguntava de onde vinham as danadinhas, as daninhas. Seria injusto julgar o
vento, os pássaros, as formigas. Seria injusto julgar que alguma coisa pudesse
trazer o mal. Mas ele vinha. Não se sabe nem como e nem de onde. Não se sabe ou
se diz não saber...
Era um mal irremediável. Se pegasse pequeno disse o
médico, arrancava pela raiz, tirava, extirpava, jogava veneno. Mas agora era
como uma árvore havia criado raízes profundas e não se podia mais arrancar, sem
tirar dali um grande pedaço de terra, por assim dizer. Ela não sabia se ele
sabia da sua predileção por plantas, mas não havia jeito melhor de explicar. Jeito
melhor de entender. E foi pra casa. Pro seu jardim. Estava sossegada. Com suas
plantas, com seu quintal, com suas coisas, com suas amigas.
E a peneira foi se abrindo. Já não havia como não
deixar o sol penetrar pelos furos imensos que ali se encontravam. O sol. Tão bom
tão necessário. Agora não mais. Não mais ali. Ia ao hospital e voltava. Pedia
pra sair. Assinava a rendição. Dizia que sabia o trabalho que estava dando. E
foi ficando cada vez mais envergada. Envergonhada de não mais poder cuidar das
suas flores, do seu jardim. E cada vez que ia demorava mais pra voltar. E
quando voltava, não eram todas que tinham sobrevivido. Sofria por todas.
Mas um dia acordou bem. Sentia-se revigorada. Reerguida
em sua haste tão gasta. Regou as plantas, que respiraram aliviadas. Arrancou
todo mato. Cercou com palitos e fitas, coloridas. Passou o dia do lado de fora.
Vez por outra ouvia um grito de "entra!", não ligava. Estava
entretida. Mais do que isso, estava certa. Só depois do sol, entrou. Resolveu
dar jeito em umas coisas, que fazia tempo estavam carecendo de ordem. Gavetas,
armários. E lá no fundo de uma caixa no fundo do fundo, um envelope. Sementes. Pequenas.
Não se sabia o que eram e nem de onde tinham vindo. Se foram guardadas,
ganhadas, compradas. Se surgiram ali como surgem as ervas-daninhas.
E o relógio do corpo deu sua badalada. Final. Chamou
as filhas-flores na sala. Contou de tudo e mais um pouco. Regou todas com suas
lágrimas. Disse a roupa, vestido e casaco. Tinha medo de passar frio em sua
partida. Deixou-as regadas na sala e voltou ao quarto. Colocou no bolso do
casaco escolhido o envelope. Secreto. Não se sabia se eram daninhas ou danadas.
Curvou-se para a colheita.
Como flor que cai não se ouviu nem suspiro, nem
baque. Só colhida, ainda flor. No chão. No quarto. Chamaram médico. Chamaram
por tudo. Ceifada. A roupa do lado da cama.
E como todo tempo que é passado, passa. E todo
sábado ia até o jardim final da florista, MARGARIDA, ROSA E VIOLETA. Visitar as
gramas. Tirar o mato. Regar a flor maior. E depois de seis meses. Já com a dor
menos dolorida. Assim como acontece com tudo na vida. Lá estavam elas. E de
longe viram uma coisa que as deixou regadas. Um maço grande de flores, que não
se sabia quem teria levado até o lugar. E chegando mais perto viram que não
haviam levado, estava. Brotou da terra. Estava plantado ali um buquê. E
sorriram pensando que de tanto que gostava de flores, Deus havia
presenteado.
Agora ela sabia, não importava do que eram as
sementes e sim como seriam plantadas. Estava de novo em seu jardim! Plantada...
Nenhum comentário:
Postar um comentário