quinta-feira, 4 de março de 2010

sem olhos, sem olhar

PARA SCHEILA
POR DEIXAR MEUS OLHOS CADA DIA MAIS DELICADAMENTE ABERTOS...

EM todos os aniversários e festividades passíveis de presenteações, ela ficava tensa. enquanto as outras crianças corriam abrir seus pacotes, ela deixava sobre a cama e passava horas olhando aquelas coisas. os pais e o irmão já tinham se acostumado ao jeito esquisito dela. deixavam tomar seu tempo. depois de muitos dias ela desembrulhava. ficava triste ao perceber que eram mais bonecas. colocava todas dentro do guarda-roupas e fechava a porta bem rápido. ia escorrendo pela porta do roupeiro fechado, fechava os olhos com uma humidade fora do normal. suas roupas tinham passado para a comoda, desacomodadas do guarda-roupas cheio de bonecas, entupido. ela não suportava, tinha dias que nem dormir dormia, elas estavam lá, ela lembrava da cara de cada uma delas, todas com suas roupinhas cor-de-rosa, com tufos de cabelos louros. ninguém entendia aquilo, ela quase não entendia também. mas não podia suportar. depois viram os bichos de pelúcia. mas todos com aqueles olhos. todos dentro do armário superlotado. o móvel parecia gordo, empanturrado de olhos até a goela. um dia voltou da escola, entrou no quarto para trocar de roupa e deu um grito estridente, tão agudo e longo que fez tremer as janelas da casa de madeira. elas estavam lá, não só elas, mas também eles. todos espalhados pelo chão do quarto. não só uma parte do chão, mas todo ele. estavam por todos os cantos do quarto e olhavam pra ela. ela sabia que chegaria o dia de encarar todas elas. sabia que o guarda-roupas não suportaria. chegou o dia em que ele regurgitou todas, pelo quarto todo. da porta mesmo ela virou-se e correu o mais rápido que pode. chegou ao jardim, sentou no degrau de pedra da porta dos fundo. não podia piscar, não podia fechar os olhos, que doíam, arregalados. e dentro da cabeça dela, estavam todos, olhando. ficou fora de casa até anoitecer. não podia voltar lá, mas teria. sabia que era ela quem teria que resolver aquilo. entrou, passou pela sala e fitou levemente todos assistindo televisão. foi até o quarto. entrou, fechou a porta. pegou uma por uma. tentou ensaiar uma brincadeira, trocar a roupinha, falar com elas. mas não era possível, elas a olhavam. passou os olhos pelo quarto e um pânico subiu por seus pés e chegou aos seus cabelos. quis dar outro grito daqueles, mas já era tarde, tinha pavor em causa transtornos aos demais. seu dedicado amigo roupeiro estava lá, ele não à olhava. tinha um corpo todo completinho, mas não tinha cabeça, logo não olhava. os braços dele fizeram um convite e ela não pensou duas vezes. entrou no roupeiro e se aconchegou ali dentro. esqueceu dos olhos, dormiu. no dia seguinte a mãe bateu na porta. eram todos tão educados. ela saiu do roupeiro e abriu a porta do quarto. a mãe observou a bagunça de bonecas e bichos de pelúcia espalhados e disse a ela quem deveria arrumar aquilo, disse a ela qual era o papel de cada um deles ali dentro. ela sentiu o interior do seu corpo borbulhar, não sabia o que era aquilo. a mãe terminou, passou a mão sobre os seus cabelos e sorriu. seu corpo queria explodir, se ela soubesse o que era explosão. voltou para dentro do armário, colocou a caixola para funcionar. saiu de lá com passos tão decididos, que poderia ir a qualquer lugar. foi até a cozinha e pegou sacos plásticos grandes, voltou ao quarto. deu um grito mudo bem longo, aqueles que ela já tinha visto em tantos filmes, aqueles dados no começo de uma guerra. correu no meio das bonecas. arrancou a cabeça de cada uma delas com as próprias mãos e colocou nos sacos. ao fim estava exausta. tinha três sacos de cabeças de bonecas. esperou anoitecer, anoitecer bem. pulou a janela do seu quarto e o que se viu depois foi uma chuva grossa de cabeças de bonecas, cair no bairro. cabeças grandes, de plástico ,de porcelana, bem pequenas, com ou sem cachos de cabelos. cabeças. ela não precisou se proteger, era uma chuva que não molhava, pensou. voltou pra casa e não conseguiu dormir. brincou até o amanhecer com os corpinhos. no dia seguinte no colégio, o comentário geral era sobre o massacre das bonecas. um mistério, diziam. e ela satisfeita. aos poucos a rotina foi se recompondo. todas as normalidades de sempre se reinstalaram. a amnésia popular também. e todas as tardes os vizinhos mais curiosos viam a estranha menina que brincava na frente de casa, com suas bonecas sem cabeça. e ela tranquila, brincava até cansar. não havia mais problema, podiam brincar do que quisessem, não havia mais olhos para censurar.

2 comentários:

João Machado disse...

Eu amei ler em voz alta, perece que voz vem direto de dentro dizendo o que eu sinto! Grande dramaturga, grande amiga!

Bel disse...

Hei! Tu vens ... tu vais.
Adorei a idéia inversa que há no teu texto. Os corpos ... o que restou. A unidade trincada e a ludicidade restituida.
Salve!
Salvem-nos.
Um beijo, Aline.
Adorei o texto. Tua musa deve ser especial.
Um beijo,
Bel.