sábado, 13 de março de 2010

AS GAROTAS DO CARA DA BANDA

estava cheio o bar, sempre cheio, não se respirava direito, não se sabia onde andavam os garçons, o banheiro nojento, a maioria dos clientes que vinha ali uma vez não voltava nunca mais, era longe de tudo o bar, tinha uma comida péssima e ainda por cima, volta e meia falhavam os equipamentos de som. mas parece que sempre tinha uma gente que não sabia disso, o mundo é grande ela pensava, e toda noite de sexta o bar era lotado até os bigodes. nas noites de sexta, ela que trabalhava o dia todo, todo dia, se dava ao luxo de aguentar o sono no sábado, para poder ir até lá. chegava cedo, era a primeira a entrar. de tanto que ia, conhecia os garçons, o dono do bar, os caras do som, as moças da limpeza, os seguranças e alguns poucos clientes que tinham coragem de voltar. tinha uma simpatia timida. se vestia de modo não chamativo, com calças compridas, blusas sem estampa, de cor discreta e poucas e pequenas bijuterias. seus cabelos chegavam soltos e eram amarrados num coque até o fim da noite, toda noite de sexta-feira. não bebi coisas de álcool, não comia fora de casa, tinha um estômago sensível, gostava de água mineral num copo com duas pedras de gelo e umas gotas de limão espremido, tomava duas todas as noites. fez as contas logo que começou a frequentar o lugar, e duas garrafas de água, mais a entrada, mais o táxi, era o que cabia em seu fraco orçamento. nos feriados ela estava lá, nos dias santos se houvesse show, nos dias de comemoração ou nos dias comuns. todos sabiam, não era o bar, era a música e talvez até um pouco mais do que a música. era ele. ele que tocava e cantava ao mesmo tempo, que tinha coordenação de fazer uma dançinha e ainda sorrir, que sabia todas as letras decor, e lia partituras, e estudava música e ganhava sua vida com isso e era alguém com quem ela sempre sonhou. não sonhava, de maneira alguma, que ele fosse seu, lhe servia olhar. servia saber que todas as sextas do mundo eram para o gracejo dos seus olhos. não que seus ouvidos não se felicitassem de estar lá, mas eram os olhos os mais agraciados. sabia dos jeitos, do que bebia, que não comia durante o show, só depois, sabia que tinha um pisca-pisca de olhos quando estava nervoso, sabia que cantava com microfone muito próximo a boca e que essa era um pouquinho torta, sabia que cheirava bem mesmo que suasse muito, sabia que lava os cabelos antes de ir pro show, que ia de carro, que gostava do que fazia, que era timido, que era perfeito para os seus olhos. e todas as noites ela acompanhava, cantando todas as músicas, que não variavam muito com o passar do tempo. acompanhava tudo lá de cima, da sua sacada. gostava dos pieguismos, se sentia meio piegas. se senti julieta, na sacada e romeu cantava e cantava e cantava. volta e meia ela ganhava uns olhares. sabia que era ela e mais milhares ali em cima. umas de saias tão curtas que pareciam blusas, outras com seios à mostra, outra com tudo à mostra. sabia que não era nem de longe um exemplo dessa beleza que se compra nos bancas de revista. mas não se importava, o importante eram seus sonhos, sua imaginação. ele olhava e ela imaginava que era pra ela. não olhava para o lado, não queria conferir que talvez fosse espinho e não rosa. era piegas até no que imaginava, ali se dava ao luxo de pieguizar até o fundo. sorria pouco, mas sorria. dançava pouco, mas dançava. fazia tudo de pouquinho, mas fazia. não precisava dos excessos, dos exageros. deixava isso aos outros. os outros diziam que ela se contentava com as migalhas. mas ela acha até boas as migalhas, são mais crocantes dizia. mas não era arrogante, tudo o que dizia ou discordava, fazia pra dentro. não ofendia, não causava, não doía. e acima de tudo, gostava de ser assim. mais uma sexta e ela lá. no seu devido lugar. hoje era um dia atípico, feriado nacional. feriadão prolongado. mas ela não viajava, muito caro e perigoso. e depois trabalhava mesmo nos feriados. o bar vazio de começo, anunciando que permaneceria assim até o fim. menos calor, banheiros mais limpos, menos fila no caixa, garçons circulando, copos de vidro pra todos. pensou pra dentro. dançou com os pezinhos colados no chão, cantou todas as músicas. olho de canto de olho. ele olhou de novo. e de novo. e mais uma vez olhou. ela não sentiu cabelos batendo em seus braços a noite toda. não precisou conferir se era terra, planta ou flor. envergonhou-se do que estava fazendo. quis correr pra fora dali. terminou de tomar os últimos goles de água, sabia que o meio ambiente agradece. levou a garrafinha até o latão de lixo. desceu as escadas, virou a esquina para o caixa. levou um beijo de susto no meio da boca molhada de limão e água. não viu mais que um borrão. não viu mais nada. seus globos paralisaram num vácuo de imagens borradas. pagou a conta. foi até a porta, entregou para o segurança. saiu do bar. pegou o táxi, disse o endereço, confiou no motorista. estava perdida dentro do seu próprio mundo. chegou em casa, tomou banho. no tirar da roupa sentiu o cheiro. sentiu o outro. viu novamente os contornos. soltou um choro escuro, mudo e gritado pra dentro. entrou no box e lavou-se, lavou-se por fora. as pegadas dos seus pés molhados ficaram impressas no chão de madeira. desenhavam o caminho de quem não sabe onde ir. dormiu com cabelos, pele e olhos molhados. acordou cedo no outro dia, enxugou a cara, vestiu roupa e foi para o trabalho normalmente. se guiava pelos ouvidos, sabia de verso o caminho. esperou a sexta-feira. vestiu-se mais discreta do que nunca. chegou ainda mais cedo. subiu ao seu lugar. havia decorado quantos passos era preciso. pediu sua água, seu gelo e seu limão espremido. cantou as suas músicas bem baixinho. olhou nos olhos do moço. olhou fosco. terminou o último gole da segunda garrafa. quebrou a ponta do copo com uma suave batida no canto da mesa. retirou um caco. olhou por mais dois segundos. esperou que ele desfocasse. escorou-se na grade, esticou os dois braços. passou rente a dobra que divide mão e punho o caco de vidro. sentiu suas palavras guardadas escorrendo pelo rasgo. quando a moça lá de baixo sentiu escorrer um líquido em seu ombro, passou a mão e gritou. ela olhou ainda mais uma vez para o rapaz e fotografou tudo o que pode, cada fio de cabelo, cada detalhe. antes de fechar os olhos pensou que precisaria de muitas fotografias dali pra frente.

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