domingo, 11 de abril de 2010

a contadora

moça sonhadora, dessas que dispensa horas por dia só para sonhos. ficava na janela, escorada, pensando, criando um mundo onde se encontrava, onde vivia. criava todos os detalhes, coloria à mão e ficava por lá algumas boas horas por dia. de tanto que inventava, inventou de contar as suas histórias a quem quisesse ouvir. contou uma ali, outra aqui, outra acolá. mas tinha uma dia por mês que ia num lugar, o que ela mais gostava, uma vez por mês ia na livraria, sentava na sala dos sonhos e contava suas histórias para as crianças de lá. sempre que era o dia da sua contação, ela chegava cedo, antes de se arrumar, de arrumar seu canto dos sonhos, ela passeava pela loja, passava a mão nos volumes, sonhava em poder ler todos. havia combinado com a dona da loja, uma senhora pequena e ágil, que receberia o pagamento por seus serviços em livros. a cada contação voltava para casa faceira, com o volume debaixo do braço. tinha o que fazer até o próximo encontro.
estava formando uma pequena biblioteca em seu quarto, não podia ser muito grande, morava em um quartinho de pensão, daquele que só cama e criado mudo. pendurou umas prateleiras e lá colocava seus troféus. tinha dias que não lia, era econômica, tinha dias que deitava na cama e ficava olhando os livros enfileirados e aquilo já lhe bastava. noutros colocava todos sobre a cama e criava novas histórias olhando para as ilustrações das capas. era assim a sua vida, pequena, modesta, mas rica em cores e sonhos.
saiu de casa com a sacola colorida feita pela tia, toda com retalhos, caminhou até o ponto de ônibus, e cada coisa que olhava reverberava em histórias dentro dela, nem todas eram escritas em cadernos ou contadas, tinha aquelas que ela criava para logo serem esquecidas. tinha aquelas histórinhas transitórias, que vinham, existiam e desapareciam. era seu combustível. entrou no ônibus já pensando na volta, no presente que traria da livraria da Dona Gertrudes. desceu, caminhou mais um pouco, era cedo, faltavam mais de três horas para contação do dia. entrou na loja, sorriu. passou pelas prateleiras de lançamentos, de técnicos, de estrangeiros, queria saber ler aquelas palavras diferentes, queria entendê-las, mas isso não era um problema, criava história sobre história, fosse a língua que fosse. sentou na pequena mesa redonda e passeou pelas páginas de um livro muito ilustrado, seus olhos se encheram. quando percebeu já estava quase atrasada pra colocar sua roupa e contar sua história. se arrumou, foi para seu cantinho, esperou o anúncio feito no microfone, as crianças juntaram nos pés da moça e ela sorriu num suspiro de começo. contou a história de uma princesinha muito diferente, uma princesa que não vivia num castelo e que não usava belos vestidos, ocultou o fato de que aquela princesa vivia dentro dela. descreveu o príncipe cuidadosamente. acreditava realmente nisso. e lá no fundo, um moço, com carrinho de bêbe, olhando. acompanhou a história inteira com o bêbe dormindo no carrinho. ela só viu que ele estava lá, porque alguma coisa que ela disse, fez com que ele risse alto e a risada chamou a atenção de todos. ele ria e jogava a cabeça para trás, ele ria como uma criança. tinha uma feição de homem feito, mas volta e meia deixava escapar uma criancinha dali de dentro. ele ficou estampado em seus olhos. abraçou as crianças ao fim da história, arrumou seu canto e ele lá olhando. foi para o banheiro, tirou maquiagem e roupa, colocou dentro da sacola, se dirigiu até o caixa para receber seu livro, pagamento. e lá estava ele, parado por perto, olhando. ela sentiu-se envergonhada. colocou o livro dentro da sacola e saiu com passos rápidos apertados. ouvia o ruído da roda do carrinho perseguindo seus pés, não tinha coragem de olhar para trás. seguiu assim o caminho todo. entrou na pensão, fechou a porta, chegou a ter medo, não um medo definido, disso ou daquilo, mas um medo do desconhecido. colocou a sacola ao lado da cama e nem se dignou a olhar o livro. de roupa, deitada por cima da coberta, dura. ouvindo. e logo na janela o barulhinho de pedra sendo atirada, e mais uma e mais uma e uma dúzia delas. puxou a cortina de rendinha, olhou agaixada e lá estava ele, depois do muro, sacudindo a mão com um sorriso. ela sentou no chão e ficou ali a noite toda. cada vez que espiava pela janela, lá estava ele. ficou uma semana sem colocar o nariz pra fora da porta, mas quando saiu deu de cara com ele. foi até a padaria e lá estava ele, tomando uma cafézinho, disfarçando. depois de dias, resolveu conversar com ele, deveria ter alguma coisa a lhe dizer, criou histórias com isso. e se falaram sentados na pracinha, conversaram a tarde toda. era querido. era querida. e depois disso, todo dia se falavam, todo dia ele ia lá. levava coisinha, agradava, estava. descobriu a predileção dela por livro e passou a presenteá-la com vários deles. certo dia deu o melhor de todos, ilustrado, mas não escrito e ela escreveu ali a história deles. tirou a moça do quartinho, levou pra sua casa, que não era um castelo, era linda. tomava café na cama, sentavam juntos pra sonhar e inventar histórias. acompanhava nas contações de história e ficava lá, olhando como no primeiro dia. esperava no balcão ela pegar o livro e de noite lia pra ela. eram felizes. o tempo passava e passou. os cabelos dela começaram a tornar-se prateados. um dia ela acordou e deu de cara com ele lhe olhando, sentado no chão ao lado da cama. olhou nos seus olhos e viu a criança daquele dia. estava lá, escondido nos dentes, nos fios de cabelo, na pele, no todo. percebeu que havia cometido um erro. ficou em dúvida se deveria voltar no tempo. passou vários dias para tomar a penosa decisão. deveria começar a envelhecê-lo. o tempo também deveria passar dentro dos contos.

2 comentários:

Cleo Cavalcantty disse...

Quase que me reconheço nessa história!!
Coisa mais singel e sensivel, parabéns amiga.
Escuta, to transformando o Blog da Cia Girolê, num espaço de discussão sobre contação e teatro infantil, posso colar seu texto lá e fazer um post??
bjkas

Nana Rodrigues disse...

claro que pode... fique à vontade, e me passe o post, passarei lá para discutir também!!!
beijo!!