segunda-feira, 8 de agosto de 2011

de como cresce o amor

era carente. de toque, de atenção, de afeto, de carinho, de amor. amor próprio, amor privado e amor público. sentia na pele a falta de tudo o que se relacionava aos sentimentos.  carente como se carência fosse uma moléstia que se pega ainda na infância e para qual o governo não disponibiliza vacina. sentia que não podia mais. e de tanto que observava e pensava, de tanto que via e lia, um dia sem querer achou o querer onde menos pensava. estava ali, por módicos seis reais. seis reais que separavam o ser do sentir. estava ali. entrou meio envergonhado. nunca havia imaginado pagar para ter os carinhos de outro alguém. nunca havia imaginado uma porção de coisas. seis reais. uma nota de cinco e uma moeda de um, três notas de dois, uma de dez que volta quatro. um mais um que gera dois. dois que gera afeto. afeto que se compra por apenas seis reais. entrou. a moça da recepção perguntou se tinha preferência. avermelhou. baixou os olhos num menear de cabeça. ela lhe disse para esperar no banco. lhe deu um papelzinho que tinha um número. o número do amor. alheio. foi chamado minutos depois. sentiu o bambear das pernas tropeçantes. sentiu os pés com vontade própria. mas foi. afeto. sentou meio de lado. desconfortável como todos os que amam. ela lhe perguntou como queria. ele respondeu "o de sempre" de um sempre que nunca havia existido. sentiu o toque deslizar pela nuca. sentiu o eriçar dos cabelos, barba e bigode. ela tinha as mãos leves e sabia bem o seu oficio. afeto. por seis reais. ele não viu a hora passar. o amor não tem hora. não passa. se despediu. leve. foi até o balcão da recepção e pagou. 
e voltou. como voltou. a cada dois dias entrava no recinto. um dia pedia uma coisa, no outro outra e assim seguia sem que ninguém lhe incomodasse. é claro que desconfiavam daquele homem ali, de dois em dois dias. é claro que não entendiam como nunca se satisfazia, como poderia querer sempre mais do mesmo. mas não era o mesmo. eram seis reais. era afeto. a maioria desconfiava de uma solidão latente que o fazia bater ponto por ali. mas ele sabia que era muito mais. sabia que por dentro era carcomido de amor. e que pouco a pouco, a cada seis reais empregados, era preenchido de afeto.
e passou muito tempo achando um detalhe pra melhorar aqui, outro pra arrumar ali. e sempre tinha o dinheirinho separado, trocado. trocava seis reais por amor. e como lhe remoçava. saia de lá com um aspecto limpo, novo, jovial. não lhe importava quantas pessoas passavam por ali, todos os dias. não se importava com quantos outros ela fazia. gostava de quando era com ele. de quando pedia que ela fizesse o que poderia ser feito e ela lhe respondia que o que poderia ser feito era o que ele lhe mandasse fazer. e então ele pedia "o de sempre", que agora já era o de sempre, e ela fazia. bem fazia. 
mas depois de um tempo começou a querer mais. e por mais que pagasse por duas ou três vezes numa só, o corpo já não dava para tanto. sentia falta de um algo a mais. de um lugar menos público. sentia pontadas de ciúmes dos que estavam com ela antes e dos que esperavam ela terminar para ocupar o seu lugar. sentia nojo dos instrumentos que por vezes ela usava. sentia-se usado. e começou a dar dicas do que sentia. do algo além do que podia. e ela, não se sabe se por costume, se por falta de costume ou pelos dois juntos, nada dizia, nada manifestava, só "o de sempre". e num dia em que enroscou-se com um rabo-de-galo no caminho, num dia em que acordou do lado avesso e todos podiam ver os espaço que o afeto preencheu e os outros tantos que ainda poderia  sem preenchidos... chegou sem parar na moça da recepção, já sabia onde encontrá-la. arrancou o que estava com ela aos tapas. pegou aquelas mãos tão conhecidas e pediu que largasse tudo e fosse com ele. não para um lugar especial, não para sair daquela vida, mas para dar o afeto de que ele tanto precisava. afeto que ele até merecia. ela soltou os braços apertados contra as mãos dele, olhou nos olhos fundos e disse que não fazia mais nada para ele. não fazia mais!
e ele não sabe se saiu de lá ou se foi jogado para fora. mas se viu do lado de fora da "loja de afetos", sentiu os seus seis reais queimando no bolso, sentiu doer a raiz dos cabelos, penicar a barba, mal cheirar o bigode, as sobrancelhas entrando e furando seus olhos. andou pelas ruas com a pressa de quem saiu e não voltou. entrou em casa demolindo todo e qualquer afeto que pudesse ter respingado por ali num tempo que era outro. fechou a porta do banheiro com a fúria de quem guerreia. retirou de dentro do armarinho do espelho o kit completo de barba. olhou uma última vez para aquele rosto e sentiu que os ácidos de dentro voltavam a carcome-lo. deu início ao fim tão temido. 
raspou cabelo, barba, bigode, sobrancelhas, raspou toda e qualquer lembrança de afeto que pudesse ter restado. não fazia mais! lembrou-se no meio de uma passada de lâmina e um soluço. das mãos que o afetavam com tanto cuidado e luxo. não fazia mais! ecoando por fora e por dentro. 
e ao passar na frente do salão unissex não sentia mais nada. nem barba, nem cabelo, nem bigode, nem afeto. havia morrido. nú em pelo.

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