quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PEQUENO ACONTECIMENTO

Não tinha muito tempo. Era uma vida normal, mas corrida. Tinha seu trabalho, suas coisas, seus afazeres. Não reclamava. Nunca ouviram pronunciar uma reclamação sequer. Passava os dias mais calada do que dizendo. Passava mais os dias vendo do que sendo vista. Tinha necessidade de olhar. Quando olhava pra fora, era quase como se conseguisse chegar dentro. Não comentava. Achava demasiada falta de respeito com as coisas alheias.
Coisas alheias eram os sentimentos, era isso que ela se referia. Pois quando olhava, sabia ver o mapa das coisas de dentro. Entendia quase tudo de sentimentos. Não que sempre tenha sido assim, mas com o tempo e de tanto que viu, acabou conhecendo. Sabia o que era um olhar suspenso, um suspiro, um piscar, uma saliva engolida. Sabia. Eram tantas as histórias, que se fosse catalogar, não haveria no mundo arquivo grande o suficiente.
E quando chegava a noite, deitada em sua cama, com as pernas dobradas e os joelhos para cima, recordava todos os sentimentos do dia. O rapaz que havia recém terminado o namoro e sofria com cada abraço ou aperto de mão que ela recebia. O outro que puxava a blusa da colega de trabalho, só para levar uma bronca, já que o que queria era pedir para saírem depois do trabalho, tomar uma cerveja, comer uma pizza, conversar sobre a vida. A menina que olhava de longe o menino grande, só para ver se ele estava olhando quando ela não estava olhando. O aperto de mão que queria ser beijo. O beijo no rosto que queria ser no lábio. O beijo rápido que queria ser demorado. O encostar de leve que queria ser toque que nunca mais solta. A nuance que queria ser cheiro guardado dentro do peito. Eram tantos os sentimentos, que precisavam ser muitos os personagens pra dar conta.
Mas um dia se pegou sem graça. Se pegou olhando pouco. Se pegou em tantas perguntas que não caberiam naquele arquivo grande o suficiente. Tantas que não cabiam dentro do peito. Se sentiu estranha. Deslocada dentro de uma multidão que sentia e sentia e sentia. Percebeu que sabia, mas não entendia. Não sentia. Desde pequena percebeu o dom de saber dos sentimentos dos outros. Seus olhos eram uma espécie de raio-X de sentimentos. Era olhar para uma pessoa e sabia o que estava acontecendo. No começo achava que todas as pessoas conseguiam ver o mesmo que via. Mas depois percebeu que ninguém mais via. Depois ainda, percebeu que nem os que sentiam sabiam mensurar o que eram seus sentimentos. Chegou a se incomodar, pensou ficar invadindo a intimidade alheia. Desviava o olhar sempre que pressentia um sentimento brotando. Envergonhava-se. Mas depois percebeu que eles acontecem o tempo todo, em todo lugar, com todas as pessoas. Percebeu que teria que andar com os olhos fechados. Passou a achar bonito ver as pessoas sentindo. Passou a decorar os sentimentos. A repassar no final do dia.
No final do dia, até que chegou o dia em que se pegou pensando como seria sentir aqueles sentimentos. Percebeu que de tanto olhar, tinha ficado prática em decifrar, mas inábil em senti-los. Buscou na memória cada um dos que tinha visto. Buscou e tentou reproduzir. Olhou querendo sentir algo mais. Pensou uma coisa e fez outra. Mas era tudo vazio. E o vazio foi se adensando. Aumentando de volume e altura. Foi tomando artéria, veia e capilar. Foi circulando por dentro das suas entranhas. Foi tomando cada parte do seu interior. Até que ela fechou os olhos bem forte. Nada de lágrima. Nada de nada.
E lá no outro canto. Bem no fundo da sala, quase escondido. Ele olhou pra ela. Uma menina que não estava sentindo nada. Estava tentando e não conseguindo. E ele sabia bem o que era isso. Um vácuo de sentimentos.

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