segunda-feira, 16 de maio de 2011

GEADA OU DAS COISAS QUE SABEMOS, SÓ EU SEI.


Era uma vez como se eu olhasse pela janela com o vidro embaçado, com o vidro quebrado ou coisa assim. Como se sentisse o vento bater na janela, no vidro e transpassar para dentro do corpo. Era como se a janela desse para um muro ou lateral de outra janela ou outra casa. Digamos que ali houvesse um banco, e que por algumas várias horas do dia e outras muitas da noite eu me sentasse ali. Seria de ficar olhando por aquela janela sempre com o vidro meio embaçado e meio quebrado. Ficar olhando para janela sem poder saber ao certo o que há atrás dela e ver que na outra janela ou muro, também tem outros olhos que olham através, mas sem ter a certeza de que se é visto, sem ter certeza do que se olha, de que se olha. Imaginar olhos que olham e não vem, quase uma heresia, quase um pecado incluso nos livros das capitais. Quase um novo pecado, não fossem pecados coisas tão velhas que chegam a ser mortais ou imortais, já não sei, ando meio afastado. Voltei para janela, olhei ao redor daquele perímetro que a compunha, me desconcentrei, havia além dela outra janela na qual eu via além dela e outra que dava pra ver adiante e que dava para outra janela. Todas tinham olhos curiosos que nada viam além delas, janelas. E sentado naquele banco eu me deixava divagar pelos pensamentos que nos são trazidos quando estamos especificamente frente a janelas. Me deixava levar e por vezes ou outra me deixava trazer, mas só por vez ou outra, não queria me banalizar. Os pensamentos que me vinham eram sempre os mesmos, pensamentos de janela, que te fazem fazer uma cara de quem olha por ela. Pensamentos sobre mentiras e notícias, distintos, pois em nada se parecem uma com a outra. E eu ficava sentado nela, já nela, ainda nela, sentado com pensamentos do lado de fora dela, mas ainda dentro de outra dela... E fortemente me vinha ela, minha mente nela, já nela e ainda nela. Eu respirava forte contra o vidro e o deixava ainda mais embaçado, ainda mais branco, ainda mais geado e desenhava nele uma pequena janelinha, que dava para uma janela de varanda, que dava para uma janela. E não tinham fim estes pensamentos, cada vez que eu criava uma, outra aparecia e eu olhava através dela, e me via em outra, outras delas. E quase no fim do infinito que criava em meus pensamentos eu vi aqueles olhos que se refletiam num lugar que não existe. Meus pensamentos quase pulavam pelas inúmeras janelas ao ver aqueles olhos refletidos nela. Eles me levam para além dos vidros, para além do mundo e muito mais para além de mim. Mergulhavam num mar de solitude, num mar de sal, num mar. E eu me perdia na volta, já não sabia em que janela estava, para qual olhava. Já não sabia de tanta coisa, de tanto alfabeto e poesia, de tanto filósofo que morreu na frente de uma janela de um quarto sem luz, que dava para outra janela.  Trazia meus pensamentos de volta, corava o rosto, corava todo corpo e os olhos me seguiam, os olhos tal vento penetrante por detrás de janelas de vidros quebrados, transpassavam minha pele, entravam na minha solta alma. E se eu me concentrasse e se não pensasse e se saísse da janela. Mas e se os olhos me acompanhassem para dentro de casa e se eles me acompanhassem em meu recinto. Voltei para o lugar onde estava. Usei o telefone para encomendar um banco, tirei as medidas da janela, o banco ficaria lá. A campainha tocou, entrou o entregador da estofaria 24 horas, mandei caiar de branco, mandei colocar exatamente na janela. Mandei de longe. E ficou lá aquele banco me olhando. Em frente ou embaixo, não sabia como mensurar, enfim, na janela. Tinha vontade de ficar sentado nele, na janela. Seria muito bom para divagar com meus pensamentos, seria muito bom poder sentar em um banco na janela e ver o que se passava através dela. Talvez existissem mesmo outras coisas para dali a diante. Mas não. Um dia tive um sonho que me pareceu um presságio. Neste sonho eu ligava para uma estofaria 24 horas, o atendente me dizia para falar rápido pois já estava fechando a loja. E eu mais do que rápido soletrava meu pedido para que fosse feito sob medida, desligava o telefone. Tocava a campainha. Eu atendia com o pé batendo no chão, a demora sempre me fazia indiscreto. O entregador subia com o banco até o quarto, colocava conforme eu mandava. Instalava-o debaixo ou em frente à janela, não sabia mensurar pois já estava meio perdido. E no sonho que era um sonho digno de noite inteira, eu ficava olhando para aquele banco, pensando como seria bom poder me sentar em frente à janela e ver o que havia através dela. E logo em seguida eu acordava. Nunca tive petulância suficiente para me sentar em frente ou naquela janela. Nunca tive tantas coisas, mas nem por isso parei de reclamar. Nem por isso. Começou a chover de novo, era madrugada de domingo ou domingo de manhã cedinho, madrugadinha. Estava voltando de mais um dia daqueles, geava frio naquele domingo. Nunca vou esquecer, quase nevou, era 13 de fevereiro, catei do chão um tanto de papel branco picado que restou do carnaval. Quis jogar para cima e fazer parecer neve, estavam úmidos de geada, não deu certo. Guardei os papéis no bolso, até o fim do dia estariam secos e eu teria minha própria nevasca. Cheguei a guardá-los com certo carinho, tinha apego as minhas coisas, as minhas tempestades, aos meus granizos, as minhas neves e ao pote de bolacha maria que havia sido da minha vó. Caminhei pela rua com a mão salvaguardando minha neve no bolso. Por mais que meus dedos estivessem dormentes, congelados, não poderia tirá-los de lá e desprotegê-las. Tinha esse dever para com a sociedade e para comigo mesmo. Caminhei mais alguns passos, dobrei a esquina da 29 de março ou maio, nunca guardava datas.  Tropecei em um paralelepípedo solto e dei de cara com aquela cara estampada e sorrindo. Dentes claros e acirandados. Cabelos negros manchados de neve. Apertei a mão no bolso, precisava ter a certeza que as que estavam nos cabelos não eram as mesmas do meu bolso. Não pude caminhar, nem mesmo seguir a diante. Meu bolso tinha apenas uns pedaços de papel úmido. Olhei superficialmente nos olhos para os quais estava defronte. Lacrimejei os meus, apertei novamente uma mão contra o bolso, a outra foi de encontro a cara da figura. Não relei no rosto, subi verticalmente para o topo. Recolhi dali as minhas brancas e por vezes prateadas. As coloquei de volta em meu bolso. Lacrimejei  novamente, agora com os dois olhos. Pedi nome, endereço, cpf, rg e nome da mãe da figura. Precisava angariar dados para averiguações futuras. Tinha certeza que se não a polícia local, ao menos os jornais de meio-dia se interessariam pela notícia. Olhei bem dentro dos olhos, que me pareceram duas janelas de vidros embaçados por geada. Olhei dentro daqueles olhos que nem me viram. Dei meia volta, coloquei a mão dentro do bolso. Retirei de lá o punhado de neve que havia me sobrado depois daquele dia. Não era exatamente neve, já que aqui nunca chove, e sem chuva não há nem geada, nem neve. Tudo bem eram apenas umas lantejoulas brancas, que nem me lembro como consegui. Estavam secas, as joguei pra cima. Caíram em minha roupa como flocos de neve, senti o frio que me traziam, me aconcheguei por detrás da janela, era fria aquela madrugadinha. Catei do chão um punhado de lantejoulas brancas e pus no bolso do paletó, não se pode desperdiçar nenhum punhado de neve, nem ao menos de geada, nunca se sabe se amanhã chove.
Um dia sonhei que estava sentado numa janela que tinha um banco, mas não dava pra definir nesse sonho se o banco estava embaixo ou em frente à janela. Sentava lá e ficava por horas olhando por ela, que dava para outra janela. E neste sonho que começava como história de noticiário, era uma vez uma pessoa sentada na janela, que dava para outra e geava e minha vó trazia uns biscoitos, que eu só sabia chamar de bolacha, um xícara de chá mate leão, eram bolachas “maria”, elas combinavam com dias frios de neve, e chuva e geada. Um dia sonhei que estava sentado, uma pena que aqui nunca chove.

QUANDO SE OLHA POR UMA JANELA
QUANDO SE OLHA O QUE SE VÊ
QUANDO SE OLHA VOLTAM OS REFLEXOS
QUANDO SE OLHA VOCÊ QUASE SE VÊ

QUANDO SE OLHA NOS OLHOS
QUANDO SE OLHA NOS OLHOS DE ALGUÉM
QUANDO SE É OLHADO DE VOLTA
QUANDO SE OLHA TAMBÉM

quarta-feira, 11 de maio de 2011

PRÉ-SENTIMENTO

Cinco carros zero quilômetros. Todos que preencheram o cupom terão a chance de sair daqui motorizados. São cinco carros zero quilômetros. Não percam a chance. Mas só serão premiados os proprietários dos bilhetes que estiverem presentes.

24 horas antes

Eu não me sinto bem. Estou com um dor de cabeça forte. Devo ter trabalhado demais nos últimos tempos. Vou me deitar. Ainda bem que essa semana tem o feriado. Só me faltava ter que trabalhar no dia do trabalho. Não vou ter que ir. Vou me deitar um pouco, me acorda daqui uns vinte minutos.

22 horas antes

Por que me deixou dormir tanto? Eu disse só vinte minutos. Agora estou atrasado. Ainda estou com dor de cabeça. Não me sinto bem hoje. Ainda bem que essa semana vai ter o feriado. Dia do trabalho... Ainda bem que não vou ter que trabalhar no dia do trabalho. Ruim. Ter que ficar trabalhando o tempo todo. Não tenho tempo nem de dormir. Tive um sonho ruim. Um pressentimento. Depois te conto, agora não dá.

14 horas antes

Amanhã vamos sair cedo. Vamos comprar algumas coisas naquele mercadinho, certamente vai estar aberto, todos querem ganhar algum extra. Dia do trabalho. Ainda bem que não vou ter que trabalhar no dia do trabalho. Espero que não me chamem. Ano passado me chamaram no meio do dia. Estou cansado.

12 horas antes

Não consigo dormir. Você me deixou dormir muito. Tive um sonho ruim. Um pressentimento. Amanhã é dia do trabalho, acho que não vou trabalhar. Não vou. Você está dormindo?

4 horas antes

As crianças? As crianças já levantaram? Está tudo pronto? Pegou as cadeiras de praia? Não filho, não vamos pra praia. Tem que levar um guarda-chuva. Agasalhos. Estamos em cima do horário. Dia do trabalho. Ainda bem que hoje não vou ter que trabalhar. Não me chamaram. Será que aconteceu alguma coisa? Eles sempre me chamam...

2 horas antes

Um bom lugar. Foi bom chegarmos cedo. Bem cedo. Bom ter conseguido trocar todos os cupons. Cinco cupons, um pra cada um. Não tem mais, a mulher falou. Quem chegar agora fica sem. Cada um de nós com a nossa sorte. A minha dor de cabeça voltou. Não devia ter dormido tanto. Tive um pressentimento. Vou comprar algumas bebidas. Suco, cerveja. Qualquer coisa me liga. Essa multidão faz a gente se perder.


1 hora antes

Seu pai. Onde ele se meteu? Não sei se ele se perdeu, se está comprando as coisas. Uma hora? Daqui a pouco começa o sorteio. O celular, ele não atende. Não atende. Não posso deixar vocês aqui sozinhos. Não posso ficar aqui esperando ele voltar. Vamos atrás dele. Eu sei onde fica a barraca de bebidas. Vamos todos. Levamos as cadeiras, as coisas todas. Não perde os cupons. Vão sortear.

O celular. Eu não trouxe o celular. E se eles me ligarem. Se me ligaram. Não vou atender. Sempre atendo. Se precisarem de mim. Minha cabeça está doendo. Tive um pressentimento. Vão me chamar.

30 minutos antes

Tem gente demais. Não consigo andar. Pega na mão do seu irmão. Pega na mão das suas duas irmãs. Se a gente se perde. Ele não atende o celular. Nunca atende.

Dá tempo. Eu vou, pego e volto. Minha cabeça. Eu tive um. Sabia que eles iam me ligar. E se eu não atendo, eles se perdem. Eu volto.

Daqui a uns minutos vamos fazer o grande sorteio do dia. Cinco carros zero! Cruzem os dedos. Fiquem todos por aqui. Os vencedores vão subir no palco.

1 minuto antes

Em casa ele vai nos achar, uma hora ou outra ele percebe que nos perdemos e volta. Tenho medo que tenha acontecido alguma coisa. Ele teve um pressentimento. Quando chegar em casa ele vai estar lá. Andem mais rápido. Parem de chorar. Outro dia tem festa de novo. Sempre tem. É só mais uma.

Mexe a urna. Mexe. Vamos conhecer agora os cinco ganhadores! Cinco carros zero quilômetros!

 Minha cabeça. Não devia ter dormido tanto. Eles não me chamaram. Sempre chamam. As coisas não funcionam direito se eu não estou. Devia ter vindo de ônibus. Nunca achei que era tão longe. Eu quero ter um carro. Eu trabalho todos os dias. Tive um pressentimento ruim.

NOW

Cinco carros zero quilômetros. Todos que preencheram o cupom terão a chance de sair daqui motorizados. São cinco carros zero quilômetros. Não percam a chance. Mas só serão premiados os proprietários dos bilhetes que estiverem presentes. Eu tenho cinco bilhetes na minha mão! Cinco carros.

Minha cabeça. Não chego nunca. Eles devem estar preocupados. Eu sempre atendo. Eu vou ganhar aquele carro, eu não vou andar mais de ônibus, a pé. Eu trabalho todos os dias. Eles precisam de mim.

Esse ônibus dá tantas voltas. Não chega nunca. Parem de brigar. Ano que vem vamos de novo. Se seu pai não trabalhar. Ele sempre trabalha. Só fico feliz quando chegar em casa e descobrir que ele está lá. Ele teve um pressentimento. Não sei se tem pressentimento bom.

São cinco ganhadores. Cinco felizes ganhadores que sairão daqui motorizados. Cinco carros zero quilômetros. Vou ler os nomes!

Ainda deve faltar muito. O sorteio é sempre no fim da festa. Com quem ficaram os cupons? Não comigo. Sorte!

No próximo ponto a gente desce. Tomara que a janela esteja aberta. Assim eu sei que ele está em casa. E se ligaram do trabalho? Eles sempre ligam!

Isso nunca aconteceu antes. Deve ser a primeira vez na história que acontece uma coisa assim. Eu tenho cinco cupons nas minhas mãos. E eu vou revelar os números agora!

Minha cabeça está estourando. Se eles me ligaram, vai ser a primeira vez que eu não atendo. Eu estou cansado!

Vamos! Seu pai vai estar lá... E se ele tiver passado por lá e saído? Vai ter um bilhete na porta da geladeira. Ele sabe que eu me preocupo!

019, 020, 021, 022 e 023! Vamos entrar pro Livro dos Recordes. Nunca tivemos um sorteio de números seqüenciais! São conhecidos, amigos? Quem sabe de uma mesma família! Tive um pressentimento.

Tudo fechado. Ele não está? Pode ser que tenha vindo. Pode ser que esteja a caminho. Melhor esperar em casa, com aquela multidão nunca iríamos nos encontrar. Ele não precisava ter saído, ainda mais que teve um pressentimento.

Ainda bem que está perto. Eu não agüento mais andar. Chego, pego o celular, se tiver alguma ligação retorno e volto pro sorteio. Eles sempre me ligam. Deveria ter levado o celular. Não podia ter esquecido. O pressentimento.

Vocês não vão acreditar! Todos tem o mesmo sobrenome. Me parece que são uma família. Eu tive um pressentimento bom... Silva! Adelcio, Dirce, Adriano, Valéria e Cristine Silva! Ganhadores de cinco carros zero quilômetros!

Dirce, Adriano, Valéria e Cristine Silva. Onde está o cupom do seu pai? Você não estava com todos os cupons? Será que ficou no meio do caminho. Nunca mais vamos achar... Mas também agora, de que adianta.

 Onde está a chave de casa? Entrar, pegar e sair. Que papel é esse? O meu cupom? Que merda... Achei que o Adriano tinha ficado com todos. Espero que eu não tenha sido sorteado. Espero...

Venham ao palco! Que suba aqui a família Silva. Adelcio, Dirce, Adriano, Valéria e Cristine Silva. A menos que seja uma grande coincidência, espero receber aqui uma família!

Uma hora ou outra ele vai chegar. Será que eu ligo no trabalho dele? Melhor não. Onde eu coloquei o meu celular? Procura pra mim? Nas gavetas. Sempre deixo na gaveta. Se achar traz aqui pra mim...

Uma quadra. Uma quadra. Uma quadra. Menos de uma quadra. Menos de uma quadra. Poucos metros. A janela está aberta? Ladrão? Entro ou não? Eu sabia! Tive um pressentimento ruim de que alguma coisa ia me acontecer hoje!

Última chamada minha gente. Se você conhece, sabe onde estão os Silva, gritem para que venham ao palco agora! É a última chamada!

Eu vou entrar pelos fundos. Se for ladrão não vai me ver. Não posso ter medo. Trabalho todos os dias, é tudo o que temos!

Achou? Esse não é o meu celular... É o do seu pai. Puxa vida, agora não vamos conseguir falar com ele mesmo!

Eu não acredito!

Eu não acredito!

Eu não acredito!

Ninguém acredita. Cinco pessoas da mesma família. Ao menos é o que eu acho... E nenhum deles está presente. Teremos que sortear outros cinco cupons.

O negocio é esperar. Vamos assistir televisão. Deve estar passando o final da festa. Assim vocês não perdem tudo, assistem pela TV.

Cada um tem a sua sorte. Cada um tem a sua sina. Cada um tem a sua vida. O que tiver que acontecer comigo, vai acontecer comigo.

O sorteio. Vamos ver quem ganhou. Depois a gente conta pro seu pai. Cinco chances. Vai que ele ganhou e aparece lá na televisão.

Um pena os Silva não estarem aqui. Última chance. Adelcio...

Ele ganhou! Vai subir no palco. Seu pai ganhou um dos carros.

Vocês? Achei que eram bandidos... O que vocês estão fazendo aqui?

Dirce. Adriano. Valéria. Cristine Silva.

Viemos te procurar. Achei que tinha acontecido alguma coisa. Você ganhou...

Ganhei o que? Vim pegar meu celular. Vamos voltar, ainda dá tempo.

Não dá mais... Vamos sortear outros cinco cupons.

Não dá mais... Acabaram de sortear.

Não dá mais? Quem ganhou? Eu tive um pressentimento...





a ligação...

Minha irmã mais nova liga pra minha irmã mais velha. Minha irmã mais velha liga pro meu único irmão. Meu irmão liga pra minha mãe. Que liga pra minha avó. Que liga pra minha tia que é solteira. Que liga por meu pai. Na minha família, todo mundo se liga. Eu também estou ligada á eles. E é assim que a história toda começa.
Eu tenho dois apartamentos. Moro um pouco aqui e outro pouco a uns 2500 km daqui. A chave do apartamento daqui fica com a minha irmã mais nova. Ela recebe as minhas correspondências, molha as plantas, abre as janelas. Ela mexe nas minhas coisas, pra passar o tempo, por saudade ou curiosidade. Eu só descobri isso depois de ligar muitas coisas.
Eu estava lá e recebi uma ligação daqui. Era minha irmã mais nova querendo saber, com ar de preocupada, quando eu estaria de volta. Eu não sabia ainda ao certo quando voltaria, mas sabia que seria logo. Liguei em seguida pros meus pais. Ela não tinha dito nada, mas todas as vezes que me ligava preocupada, eu ficava preocupada com os meus pais. Depois liguei pra minha avó, já que tinha certeza que se alguma coisa acontecesse com ela, eles me negariam a ligação pra contar o problema. Estava  supostamente tudo bem, com todos.
Dias depois desembarquei por aqui. Cansada de tanto ficar fazendo a ligação entre aqueles 2500 km. Minha irmã mais velha foi me buscar no aeroporto, estava sem graça com alguma coisa, mas eu não consegui me ligar no que. Cheguei em casa e as coisas estava todas nos seus devidos lugares, mas a sensação de que alguns dedos hábeis haviam passado por ali, persistia. Estava cansada. No dia seguinte começou a minha peregrinação pelas inúmeras casas pela quais deveria passar num curto período de tempo. Em todas elas, ligadas pelo parentesco, havia um desconforto. Pensei que fosse o fato de eu ser uma carta fora do baralho. Estava redondamente enganada.
Sempre havia alguém que me perguntava alguma coisa sem sentido e logo depois os olhares se ligavam uns aos outros ao redor de uma mesa de jantar, de uma sala de TV, de uma sala de conversas, de um jardim. Chegou uma hora que eu me liguei. Eles querem me dizer alguma coisa muito grave, mas não tem coragem.
No domingo, depois de tudo, perguntei. Eles se ligaram de que eu sabia de alguma coisa, que eles não sabiam que eu sabia e que eles sabiam alguma coisa que eu sabia que eles sabiam, mas não sabia o que era. E depois de limparem todas as gargantas ao mesmo tempo, minha mãe falou. Minha irmã mais nova descobriu e ligou pra minha irmã mais velha pra se aconselhar, minha irmã mais velha horrorizada teve que pedir penico pro meu irmão, que teve que contar pra minha mãe, que pra minha avó, que pra minha tia, que por fim pro meu pai. E o motivo de todas aquelas ligações, era um toco de cigarro ilegal, escondido numa caixa velha de óculos no fundo de uma gaveta. Ilegalidade. Focinho de porco é tomada?
Depois de todo constrangimento de explicar , sem ninguém acreditar, que era uma experiencia com camomila, que relaxava, que tinha sido uma vez, que tinha passado mal, que tinha sido uma amiga, que tinha sido, que nem foi, acabou tudo em “cala-te boca”.
Semanas depois, estava nos 2500 km de lá e meu telefone tocando sem parar. Ligação atrás de ligação. Minha irmã mais nova, a mais velha, meu irmão, minha avó, meu pai na surdina, minha mãe e até a tia solteira. Que amiga mesmo era aquela? Porque diziam que pra certas doenças até era bom. Porque eu nunca tive um contato seguro. Porque eu tinha medo de virar. Porque eu, porque ele, porque todos tinham a mesma curiosidade. Porque no fim das contas, até mesmo as telefônicas, temos todos a mesma ligação, estamos todos ligados!

O PEQUENO ACONTECIMENTO

Não tinha muito tempo. Era uma vida normal, mas corrida. Tinha seu trabalho, suas coisas, seus afazeres. Não reclamava. Nunca ouviram pronunciar uma reclamação sequer. Passava os dias mais calada do que dizendo. Passava mais os dias vendo do que sendo vista. Tinha necessidade de olhar. Quando olhava pra fora, era quase como se conseguisse chegar dentro. Não comentava. Achava demasiada falta de respeito com as coisas alheias.
Coisas alheias eram os sentimentos, era isso que ela se referia. Pois quando olhava, sabia ver o mapa das coisas de dentro. Entendia quase tudo de sentimentos. Não que sempre tenha sido assim, mas com o tempo e de tanto que viu, acabou conhecendo. Sabia o que era um olhar suspenso, um suspiro, um piscar, uma saliva engolida. Sabia. Eram tantas as histórias, que se fosse catalogar, não haveria no mundo arquivo grande o suficiente.
E quando chegava a noite, deitada em sua cama, com as pernas dobradas e os joelhos para cima, recordava todos os sentimentos do dia. O rapaz que havia recém terminado o namoro e sofria com cada abraço ou aperto de mão que ela recebia. O outro que puxava a blusa da colega de trabalho, só para levar uma bronca, já que o que queria era pedir para saírem depois do trabalho, tomar uma cerveja, comer uma pizza, conversar sobre a vida. A menina que olhava de longe o menino grande, só para ver se ele estava olhando quando ela não estava olhando. O aperto de mão que queria ser beijo. O beijo no rosto que queria ser no lábio. O beijo rápido que queria ser demorado. O encostar de leve que queria ser toque que nunca mais solta. A nuance que queria ser cheiro guardado dentro do peito. Eram tantos os sentimentos, que precisavam ser muitos os personagens pra dar conta.
Mas um dia se pegou sem graça. Se pegou olhando pouco. Se pegou em tantas perguntas que não caberiam naquele arquivo grande o suficiente. Tantas que não cabiam dentro do peito. Se sentiu estranha. Deslocada dentro de uma multidão que sentia e sentia e sentia. Percebeu que sabia, mas não entendia. Não sentia. Desde pequena percebeu o dom de saber dos sentimentos dos outros. Seus olhos eram uma espécie de raio-X de sentimentos. Era olhar para uma pessoa e sabia o que estava acontecendo. No começo achava que todas as pessoas conseguiam ver o mesmo que via. Mas depois percebeu que ninguém mais via. Depois ainda, percebeu que nem os que sentiam sabiam mensurar o que eram seus sentimentos. Chegou a se incomodar, pensou ficar invadindo a intimidade alheia. Desviava o olhar sempre que pressentia um sentimento brotando. Envergonhava-se. Mas depois percebeu que eles acontecem o tempo todo, em todo lugar, com todas as pessoas. Percebeu que teria que andar com os olhos fechados. Passou a achar bonito ver as pessoas sentindo. Passou a decorar os sentimentos. A repassar no final do dia.
No final do dia, até que chegou o dia em que se pegou pensando como seria sentir aqueles sentimentos. Percebeu que de tanto olhar, tinha ficado prática em decifrar, mas inábil em senti-los. Buscou na memória cada um dos que tinha visto. Buscou e tentou reproduzir. Olhou querendo sentir algo mais. Pensou uma coisa e fez outra. Mas era tudo vazio. E o vazio foi se adensando. Aumentando de volume e altura. Foi tomando artéria, veia e capilar. Foi circulando por dentro das suas entranhas. Foi tomando cada parte do seu interior. Até que ela fechou os olhos bem forte. Nada de lágrima. Nada de nada.
E lá no outro canto. Bem no fundo da sala, quase escondido. Ele olhou pra ela. Uma menina que não estava sentindo nada. Estava tentando e não conseguindo. E ele sabia bem o que era isso. Um vácuo de sentimentos.