quarta-feira, 2 de março de 2011

antes que amanheça

ela andava descalça pelas areias. não sei como era seu pé, seus pés. não sei se eram inchados como os meus, mas ela andava descalça, para mim é assim que andava. tinha a cintura com molejo. tinha os cabelos presos. suava nas têmporas. usava um lenço sem bordado. com o calor que sempre fez. suava. não sei se era assim que aconteceu, mas é como gosto de lembrar. lavava roupa na beira do rio, com trouxa grande na cabeça, equilibrando os pensamentos. me contaram. fazia comida boa, com banha de porco. assava chimangos, uma baciada. comia bem, se deleitava. fazia compotas, doces cremosos e doces de corte. cuidava das galinhas, dos porcos, das vacas, tirava leite, recolhia ovos. não me contaram, mas eu sei. usava roupas que ela mesma costurava. ponto por ponto, nó por nó. dava conta de várias crianças, de vários sonhos e de várias esperanças. dava conta da sua. morava perto do rio. morava debaixo do sol. morava longe do mar. amava aquele homem. do jeito que dava e do jeito que sabia. amava. soube da história por cima e tratei de rechear.
tinha todos os dias coisas que fazia. vivia num outro mundo que já não existe mais. num desses tempos em que a verdade era corriqueira. e mais verdadeira do que as dos tempos atuais. num desses tempos em que a vida quando encardia, era só colocar pra "quarar" e voltava a ser branquinha como nuvem. e não passava tão rápido quando a nossa amarelada, sem graça de tanta falta de amor. tinha os olhos castanhos, como os meus. e com o tempo os cabelos foram ficando fininhos, como os meus. e quando eu tinha 15 anos, seu vestido de cetim rosa claro, feito durante anos, serviu certinho, pra provar que um dia ela já fui eu.
e um dia talvez eu queira, correr pra longe da correria. correr pra longe da cidade. e requerer a minha parte nessa herança. ter uma vida dessas de verdade. com coisas pra fazer e uma felicidade que não se comercializa. uma dessas que não passa na televisão. dessas que talvez nem exista, mas que eu posso criar. assim como as galinhas, porcos e vacas. 
uma felicidade de pés descalços e calcanhar encardido e rachado. num chão que não treme e nem se desmonta na virtualidade desta nossa vida real.
viver uma felicidade, antes que amanheça.

Um comentário:

Bel disse...

... E de braços bem abertos eu te envolveria num abraço típico daqueles de antes .... Daqueles que o sempre promete numa tentativa de segurar um futuro bem por perto.
Cada vez mais eu me envolvo com tua escrita porque sei bem de onde ela vem ... Me vem!

Muita saudade ....
Muita e tanta.
Muitos beijos também.

Bel