quinta-feira, 17 de março de 2011

O QUE VEM DE BAIXO NÃO ME ATINGE... E DE CIMA MUITO MENOS!

TINHA pena dele. andava de um lado para o outro com aquele soro pendurado no braço. tinha que ir ao banheiro assim, à cozinha, sala, quarto. por toda casa seu "cachorrinho" de metal e plástico o seguia. deveria ser uma doença dessas raras e bem graves, para ter que tomar remédios na veia todos os dias e o dia todo. nem de noite dava sossego a tal doença. rezava todas as noite metade do terço para a pronta recuperação do doente. ficava apreensiva quando demorava a ouvir o barulho do suporte de soro sendo arrastado pela casa. ficava quietinha até escutar o barulho. e então se acalmava. desconfiava que tinha até uma enfermeira que cuidava dele. quer dizer, dele ou dela. não tinha certeza se era um homem ou uma mulher. nunca havia visto a pessoa pessoalmente. um certo dia, como as janelas do prédio hexagonal por dentro, eram todas coladas de frente e de lado, ouviu uma conversa das vizinhas, meio por cima. ouviu do doente do andar de cima. depois disso, foi só prestar atenção para despertar a piedade, apesar da irritação. confiava muito em Deus e agradecia ter ouvido a conversa, pois caso contrário e por muito menos, já teria subido ao apartamento de cima e ditos muitas e más ao barulhento ou barulhenta. no começo, quando se mudou, acreditou ser uma obra desaforada do destino, ter novamente um vizinho barulhento. tinha vindo de um outro prédio, onde uma criança corria atrás do cachorro e jogava bola de gude o dia todo e de noite a mãe chegava de salto alto e assim permanecia até a meia-noite. estava ficando louca com o barulho quase 24 horas por dia. chegou a dar uns gritos e esmurrar as paredes diversas vezes. depois se mudou. não só de prédio, mas de cidade, de região. mas não conseguir fugir de morar novamente num prédio e novamente com vizinho de cima. não tardou começar a ouvir os barulhos desagradáveis. começaram suavemente, como todos os barulhos que vão durar muito tempo começam. mas depois de um tempo eram praticamente o tempo todo. quando começou a questionar sua sanidade e sorte, ouviu a conversa das vizinhas sobre o doente. o pobre enfermo. teve uma vergonha imensa de seu comportamento inaceitável e egoísta de querer morar em comunidade, mas não poder tolerar que alguém fique doente. passou a evitar fazer qualquer tipo de ruído. quando reinava o silêncio em cima de sua cabeça, ai então se prevenia ainda mais de qualquer suspiro, tudo para não incomodar o coitado. com o tempo se acostumou. não que não ouvisse mais. ouvia e muito. mas cuidava dele ou dela à distância, se preocupava com a recuperação. as vezes não dormia direito, é verdade, mas não reclamava, tinha uma saúde de ferro. e a doença foi durando, durando e durando. não imaginava como o doente aguentava tanto, ela mesma já não aguentava. tinha vontade de subir lá e fazer alguma coisa, tinha uma solidariedade pulsando. mas não tinha coragem. havia se apegado ao doente. vai que estivesse muito mal. vai que estivesse nas últimas. vai que fosse contagioso. preferiu não. aliás, não tinha costume de se enfiar na casa dos outros e se meter em suas coisas. só que de tanto não dormir por tanto tempo, a saúde dela foi reclamando um pouco também. foi envelhecendo antes do tempo, pegando gripe uma atrás da outra. tendo uns desmaios esquisitos. chegou a ficar internada numa clínica de repouso por uns dias pra reestabelecer a saúde perdida. e quando voltou, teve ainda mais piedade do vizinho ou vizinha. sabia o que era ficar ligada aos soros o dia todo. já desenxabida e sem querer ou poder se mudar, dormindo e se alimentando mal, sem nem mesmo saber por que motivo, sentou-se pra assistir baixinho ao telejornal local. fazia tempo que não se indignava tanto. fazia tempo que a boca invisível do estômago não borbulhava daquele jeito. não ouviu a noticia direito, mas viu muito bem. viu principalmente a fachada do prédio em que morava e o interior do apartamento muito parecido. um puto, sim, um grande puto de um vadio sem-serventia, querendo aparecer e sem um cabo de enxada pra puxar, estava tentando quebrar um recorde, andando durante 450 dias de skate dentro de seu apartamento. parando apenas para dormir e tomar banho. acabava de conseguir cumprir o feito, era recordista. ela indignou-se. como podia um ser humano tão cruel e desprezível. imagina se o puto morasse em cima do coitado do doente? mataria o coitado em 450 dias...

Um comentário:

Bel disse...

Esse cotidiano que enche a vida e realidade e dramaturgias.
Senti compaixāo por ele/ela e por ti.
Quis acabar com o skate do infeliz recordista tbém.
Um beijo e .... Uma oraçāo. Pra ele/ela.
Bel