domingo, 13 de março de 2011

infinito inventário da sanidade

andava de um lado para o outro, bloco de notas na mão, caneta fincada no meio dos dedos duros de tantas palavras incrustadas. fazia dias estava com a ideia fixa de fazer o inventário. precisava disso para continuar a jornada. foi lembrando o que pode, de cabeça. e o que não deveria durar mais do que algumas horas, durou dias, meses, anos. 

dez gavetas, sendo cinco da cozinha e cinco da sala. frente de armário branca. uma palmeira. quatorze dúzias de passarinhos variados. lagartixas. bancada de mármore petróleo. piso de madeira na cor embuia. variedade climática. pastel de feira confiável. elevadores limpos. lixeiras com tampas longe da porta. janelas laváveis, ao alcançe dos braços. andar térreo. conhecidos, amigos e parentes. roupas de frio com possibilidade de uso. dois edredons e um cobertor pêlo alto. silêncio. identidade. personalidade. identidade profissional. arte. calçadas de paralelepipedos. garoa. bolo de chocolate. possibilidade de dar um pulo logo ali e já voltar. localização espacial. couve-flor e brócolis. carro. supermercado. quartinho 1x1 na garagem. lavanderia com possibilidade de circulação. parque. grama verde. cinza.

e seguiu canetiando. colocando no papel todas as coisas que tinha e que agora lhe faziam falta. precisava disso para seguir adiante. precisava disso para seu processo. tal qual precisou um dia o Senhor K. as anotações fluiam numa inspiração vital. terminou um bloco, dois, três, quatro. quando viu tinha no canto da sala uma pilha deles e não estava nem beirando o término do inventário.

puff vermelho. divã. almoço de domingo. encontro casual. linha reta. abridor de latas. garrafa de lambrusco. livro do garcia marquez. carregador de pilhas. passada de mão nos cabelos. pizza dividida entre muitos. reunião profissional. joana, minha amiga. shopping pertinho. colher de pau. panela de fundo triplo. sapato preto. batom vermelho. casa de samba. feira de artesanato. nata. café da tarde. ruas com semáforos. gente conhecida. silêncio. verduras frescas. morangos frescos. bolo de chocolate com nata e morangos frescos. colo de mãe.

de um lado para o outro. com o tempo ao seu desgosto. tendo pressa e com apenas um mão cursiva. tentando ir cada vez mais fundo. lembrar o imemorável. precisando do inventário pronto pra poder tomar as medidas cabíveis. por vezes com a caneta na boca, noutras com o bloco na cara. sempre pensando nas faltas que havia tomado. não comia direito, se não fosse para lembrar alguma coisa que faltava. não fazia outra se não tentar saber o que estava fora do lugar.

porta-canetas. peças de teatro. médico ginecologista. hospital próximo e confiável. brisa sem maresia. sair meio-dia sem insolação. festa de aniversário dos outros. sua festa de aniverário com mais que um convidado. flores não murchas. meia de lã. sala de cinema não lotada. museu. ônibus amarelo. ponto de ônibus pré-definido. linguagem sem sotaque estrangeiro ou muito acentuado. loja de 1,99. loja de fantasias. festa de formatura ou casamento. 

quem olhava tinha a impressão de que nela os anos passavam como minutos. tinha a mão um pouco deformada pelo uso indescente da esferográfica. os pés cansados dos passos-pensantes. os cabelos compridos. as unhas desbotadas. olheiras. pele seca. lábio partido de tanto vociferar lembranças talvez desnecessárias. tinha o peso de muitos blocos carregados de tinta, dores e palavras. tinha um inventário sobre os ombros.

caderno de receitas. cartas. carteira de trabalho. formas de vidro. forno que puxa a grade quando abre. bom retiro-puc. ponto de ônibus em formato de tubo. tempo nublado. esperança de refrescar. silêncio. ponte de madeira seguida de ciclovia. vontade de andar de bicicleta. vontade de sair de noite. garrafa de champanhe guardada. balneário chinfrin. copos herdados da tia morta. fones de ouvido. cabo usb. roupas que não servem mais. banho quente. aparelho de bolinhas de sabão. squize de água. sonhos de noite inteira. cama pra três pessoas. pés gelados. sapatos com meia. ventilador desligado.

a cada linha colocava um ponto. mas não finalizava. sabia que precisava dele completo. caso contrário não serviria. não entenderiam a gravidade. precisava que soubessem que a coisa toda era complexa. que precisava de coisas ocultas aos outros. que temia não ser entendida. não ser levada a sério. 

fitinha na cor rosa pink. tecido para fuxico. pé de amora carregado. ligação de não longa distância para a casa dos pais. distância menos do que três horas de vôo. apartamento de fundos sem rua próxima da janela do quarto. quarto escuro. cheiro de chuva. programa de domingo no domingo. voltar de férias. calça jeans. porta cd. silêncio.

o companheiro, que acompanhava desde o começo o passatempo. achou que já havia muito passado. resolveu resolver a questão com outra questão. tirou de suas mãos a caneta e o bloco. sentou-a numa cadeira e questionou sobre a real necessidade das coisas anotadas. estava sendo julgada. como havia previsto, seu processo estava instaurado. porém ela não teria como defender-se. tinha sua defesa incompleta. ainda não tinha o seu inventário. virou-se contra ele de dentro para fora. de fora para o lado. do lado para todos os outros. deixou de amá-lo naquele mesmo instante. agarrou-se aos blocos já completos e pegou quantos em branco pode. correu em direção à porta. trancada. ele completava uma ligação que ela ainda não tinha feito. ela lembrou de umas coisinhs mais e voltou-se para a caneta.

caixa de lápis de cor. agulha e agulheiro. alicate de cutícula. depiladora. sandália de samba. vestido verde e preto. prateleiras. tomar banho em dois. pular a sacada. pular a janela. narguile. taça de vinho branco. convite pra não fazer nada. ensaio ao ar livre. silêncio. silêncio. silêncio. liberdade. capa de travesseiro.

ele abriu a porta de supetão. ela saiu correndo e sentiu seu corpo sendo bloqueado por outro corpo. sua visão ficou branca como se fosse avião entrando em nuvem. sentiu-se voltando involuntáriamente. sentiu o carpet sintético ralando sua pele. ouviu de uma voz desconhecida a sentença: sintomas de insanidade. teve tempo de engatinhar para dentro, encostar-se no sofá de courino vagabundo. catar no chão bloco e caneta que tinham voado e dar fim ao que tinha começado.

sanidade.

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