A DEDICATÓRIA

Entrou na loja com o único
intuito de comprar um livro. Que seria trocado mais tarde por um ingresso para leitura
beneficente. Não estava interessada em nenhum título em especifico, qualquer um
serviria desde que o preço fosse atrativo. Um funcionário direcionou-se a ela,
e perguntou: - Posso ajudá-la? E ela com as maçãs levemente rosadas, que
aparentavam um sublime pudor, mas que na realidade eram reflexo da correria do
dia, respondeu: - Boa tarde, gostaria de um livro, clássico, talvez até de
teatro, porém com um preço acessível. O rapaz se mostrou solicito,
encaminhando-a a uma estante repleta de bons clássicos. Fez-lhe a observação de
que ficasse a vontade e que se precisasse de ajuda era só chamá-lo. Ela olhou
por alguns minutos os pares de livros, e lembrou-se de que não tinha muito
tempo para escolher. Viu então um clássico da historia do teatro francês e
consultando o preço, que era mais do que atrativo, resolveu levá-lo. Chamou o
atendente, que a encaminhou até o caixa, com a recomendação de que deveria
voltar mais vezes. O que a deixou realmente corada. Pagou pelo Molière e saiu,
certa de que já estava mais do que atrasada.
No caminho para o
compromisso, que gerou a visita ao sebo, recebeu uma ligação que provocou em
seu peito, um turbilhão de emoções. O dia havia sido tão cheio de compromissos,
que esqueceu que havia prometido a sua mãe, buscar bolo, salgadinhos e afins
para a festa de aniversário de seu pai. Respondeu a mãe que estava a caminho,
dando disfarce ao seu esquecimento. Partiu para a panificadora, que para sua
tristeza, era quase do outro lado da cidade. Chegou o mais rápido que pode. Quase
gritou com uma atendente, que ficou falando ao telefone, ao invés de atendê-la.
Quase gritou com todos os presentes, tamanha era sua urgência e necessidade de
estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo. Desafiando as conhecidas leis da
física. Conseguiu ela mesma, carregar as encomendas para o carro, e saiu
apressada. Chegando a sua casa, foi logo dispondo o lanche na mesa e chamando a
mãe, pai e convidados para cantar o “Parabéns”. Alguns até estranharam, outros
atribuíram ao fervor e pressa típicas da tenra idade. Cantou junto aos pais,
aguardou que o aniversariante apagasse as velas e por fim, jogou dois ou três
salgadinhos na boca e despediu-se correndo. Não sabia se chegaria a tempo.
Entrou no carro e por alguns
segundos parou, olhando com seriedade o livro. Lembrou do tempo, que por fim não
pára, e saiu tão rápido quanto um fio de cabelo ao vento. Buzinou varias vezes
durante o caminho, que parecia longo demais. O trânsito era lento, as pessoas
pareciam sem pressa, e ela contando cada segundo ao relógio. Lembrou-se, não
uma nem duas vezes, que dirigir, de fato, não era de suas habilidades, nem a
melhor e muito menos a mais apreciada. Enfim, chegou ao local do evento
cultural. Enfiou o carro em um estacionamento próximo e saiu em carreira
disparada para o teatro. A alguns metros de distancia, procurava sinais de
colegas e conhecidos, para ter a certeza de que o espetáculo ainda não havia
começado. Eram 19 horas e 10 minutos cravados. Temia não poder mais efetuar a
troca de ingressos, que já sabia, eram procuradíssimos.
Quando adentrou ao saguão, avistou
colegas aglomerados em sofás e poltronas, junto a uma parede com a arte de
Potty. Não teve ao menos tempo de apreciar àquela bela visão. Suas palavras
saiam em meio profundas inspiradas e expiradas sôfregas. Estava exausta. Cumprimentou de maneira rápida e já se ateve a pergunta dos ingressos. –
Escute, vocês já estão com seus ingressos? Será que ainda tem algum? Gente que
correria! Ofegava. Poucos responderam que tinham. Os demais estavam na
esperança de que a tutora da turma pudesse interceder por eles. Ficou ainda
mais preocupada, porém com a certeza de que não estava sozinha, do lado de fora
do espetáculo. Era uma moça ainda muito jovem, com cabelos negros e
profundamente lisos, herança de seus ancestrais orientais. Orientalidade que
lhe trazia lindos e vivos olhos puxados e uma pele clara como a neve, a face
rosada pelo frio e pressa. Um sorriso repleto de dentes marfinosos. Sorriso
largo e aberto, sorriso urgente. Mãos irrequietas, quase italianas.
Expressavam-se muito mais as mãos, do que as palavras, em certos momentos. E a
voz de flauta doce, aos ouvidos dos mortais. Sentou-se em um dos sofás, estava
realmente cansada. Aguardava a chegada da tutora, para dar-lhes o parecer.
Deixou-se levar pelos assuntos alheios que surgiram, quase querendo apenas
ouvir, sem ter que falar.
Ouviu longe alguém, que não
pode nem reconhecer, perguntar-lhe: - Nossa, será que vejo um clássico de
Molière, passeando por aqui? Demorou alguns segundos para responder,
localizou-se primeiro. Encontrou quem proferira a pergunta. – Sim, achei que
seria mais conveniente num evento como este trazer um clássico. – Nossa, muito
aplicada você. E ela: – Na verdade fiquei com receio de passar vergonha. Sei
lá... Imagine se chego com um livro qualquer e sou repreendida na frente de
todos. Sou cheia de manias. E sorriu largamente. O que fez os demais sorrirem
também, ainda que não inseridos no contexto.
Nisso surge a tutora, quase
irreconhecível, diante dos pupilos. Pararam quase de imediato, e os que não se
acharam imóveis, ficaram perdidos, tentando achar o motivo para a paralisia dos
demais. A tutora adentrou ao salão, tão cheia de vigor, que parecia caminhar
numa marcha de vitória. Era trazida por um par de sapatos pretos, que pareciam
ter sido tirados de uma boneca adulta, eram intensamente negros e brilhavam de
lustro. As pernas delineadas eram cobertas por uma malha preta e elástica, que
as faziam movimentar-se com certo bailado, apesar dos passos firmes. Um short,
blusa rubra de lã quentinha e um cachecol, completavam o conjunto da obra. Os
cabelos igualmente rubros, sedificavam tudo por onde passavam. Tinham as pontas
em posição de sentido militar, todas viradas para fora. Os olhos eram vivos,
com um brilho quase incomum, e a boca carmim. Cada qual olhava por seus
próprios motivos de admiração, mas o que de fato não faltava, era admiração
intensa. Logo surgiram os comentários pertinentes. – Nossa... – Fi-fiu...
– Nem reconheci... – Está linda... E assim seguiram-se,
até que ela fez o comentário que estava sendo esperado por quase todos. Para
reparo dos presentes e como não poderia deixar de ser, a fala começou com uma
gargalhada daquelas. – Hahaha...Então, estão todos já com seus convites em
mãos? Logo as palavras se atropelavam, queriam falar todos ao mesmo tempo.
Outra gargalhada, boa, leve, suspirante. – Calma gente, eu não consigo escutar,
muito menos entender. Perceberam, e por eliminação, de maneira imediata, um
interlocutor, explicou a situação. – Quase ninguém tem convite, achamos que a
troca de ingressos seria ás 19 horas. Mas informaram que começou ás 18 horas e
trinta minutos depois já estavam esgotados. – Não acredito, que isso gente...
Seu jeito de ficar nervosa era tão calmo, quanto sorridente, havia até uma
gargalhada brava, quase não acreditávamos. – Vou resolver isso já, não se
preocupem. Ficaram todos esperando e as lamurias eram gerais.
Como nem só de reclamações se perfazem as
conversas, uma nova observação e um pedido, em relação ao livro de Molière. –
Será que posso dar uma olhadinha nesse clássico? E ela ainda longe: - Claro que
pode. E esticou a mão com o livro, e parecia não ter a intenção de sequer
olhar. Mas no momento em que sua mão foi ao encontro da solicitação, sentiu um
aperto no peito, quase que se estivesse sendo separada de um ente querido.
Parou a mão no caminho, olhou profundamente para o exemplar. Quis quase trazê-lo
de encontro ao peito e apertá-lo forte. Não quis parecer insana. Entregou-o a
contragosto. O receptor abriu-o com um enorme respeito e um também enorme
cuidado, dedilhando as páginas com carinho e admiração. Folheou as primeiras e
logo comentou. – Nossa, tem até dedicatória. Ela foi levada a olhar, ainda que
estivesse com os pensamentos bem longe dali. O olhar que surgiu ao comentário
foi tal qual tivessem chamando a menina pelo nome, em voz alta. Ela olhou com
aflição para o livro e para a mão que o segurava. Num salto foi de encontro à
mão e tomou-lhe o exemplar.
Sentou-se
novamente, e o rapaz que até então estava com o livro, olhou sem entender nada.
Não teve cuidado e muito menos respeito pelas folhas que compunham a obra. Saiu
folheando rápido para achar a tal dedicatória. Chegou ao local, onde estavam as
palavras escritas em letras miúdas e manuscritas, com caneta azul
esferográfica. Parecia que as letras brincavam de ciranda no papel. Estavam
embaralhadas para suas vistas. Apertou ainda mais os olhos e respirou quase
suspirando. Parou. Chegou a fechar os olhos e tornou a abri-los. As letras
cessaram a brincadeira e tornaram-se legíveis. Ela leu uma vez em seus
pensamentos e não se conteve, tornou a lê-la em voz alta e quase gritada. Os
presentes, colegas e demais que estavam naquele saguão foram obrigados a
fita-la, com certa surpresa. E ela em bom tom disse: - “Madeleine, que este
livro seja o candelabro a iluminar seus caminhos artísticos e sua vida daqui
para frente. Sei de sua ânsia pelas artes e suas vontades de atriz e diretora,
logo, espero que Molière lhe ajude a trilhar o melhor caminho que puder. Com
carinhos e muito amor, Clara Poquelin. Setembro de 1837”. Terminou com olhos
rasos d’água e sentou-se como se estivesse em um transe. Todos pararam de
olhar, alguns a julgando louca e outros apenas excêntrica, houve até os que
pensaram que fazia parte do espetáculo, que começaria em alguns minutos. Ficou
abraçada ao exemplar, até que a tutora apareceu e começou a recolher os livros
para trocá-los pelas entradas. E ela ali, sentada e abraçada com o livro.
Chegou sua vez de entregar o exemplar. Não cedeu, continuou abraçada as paginas
amareladas. Vendo que a tutora insistia em recolhê-lo deu uma desculpa impensada.
– Ah, estou com certa pena. Sei que não devemos nos apegar as coisas materiais.
Mas na hora em que peguei o livro em minha biblioteca, não percebi que se
tratava deste livro. Não gostaria de me desfazer dele. E a tutora, ainda mais
delicada do que de costume. – Tudo bem, sei como são essas coisas. Tenho um
exemplar sobrando, caso algum aluno esquecesse. Vou emprestá-lo a você. E ela
não conteve um sorriso de salvação.
Foram todos
chamados a entrar na sala de apresentações e ela foi também. Braços cerrados em
torno do livro, como se carregasse uma cria. Sentou-se em uma das cadeiras
vagas, pôs o livro no colo e o acariciou, como se lembrando de alguém. O colega
que presenciou tudo, a olhava, com certa inquietação. Não sabia o que pensar,
de livro comprado ao acaso em sebo, transformou-se em exemplar de biblioteca
particular, e tantas caricias ao pedaço de papel. Acreditou que nunca saberá o
que se passa pela cabeça das pessoas. Nunca irá entendê-las. E ela passou o
espetáculo todo, com o dito no colo, sendo acariciado incessavelmente, e ele
passou o espetáculo todo, observando a cena e tentando dar desfecho ao caso.
Ao termino
da peça, saiu correndo do teatro, sem despedir-se de ninguém. Foi observada por
mais de um dos presentes. Entrou em seu carro e colocou o livro, com o máximo
de cuidado em cima do banco do passageiro, olhou por longos minutos, sorriu
sozinha, não disse uma palavra sequer. Seguiu para sua casa, ao entrar, não deu
importância a ninguém. Subiu para seu quarto, com o livro nos braços. Chegando
ao quarto rosa, colocou o livro em cima de sua cama e olhou mais de uma vez.
Ligou o rádio, escolheu a música favorita, sorriu para si mesma e para o livro,
dançou para os dois. Pegou-o novamente e dançou com ele, rodopiou pelo quarto,
como se estivesse abraçada ao seu par ideal. Dava gargalhadas, sorria, cantava,
tudo com o livro em
evidência. Sua mãe ouviu ao longe as risadas e foi participar
da alegria da filha. Viu-a rodopiante com um livro nas mãos, não quis
interromper, encostou novamente a porta do quarto e saiu, e ela permaneceu lá,
feliz. Por várias vezes se jogava na cama, elevava o livro, balbuciava algumas
palavras para ele e tornava a dançar. Passou algumas grandes horas nesse
estado. Esqueceu quem era nesse estado. Fez um mundo para ela e o livro.
Adormeceu com o livro ao seu lado, um sorriso nos lábios e seu mundo ao redor,
rodando. Sua mãe foi até lá para vê-la, esticou por cima de seu corpo um
cobertor, beijou-lhe a face e a viu dormir feliz.
Acordou no
dia seguinte e por outros tantos sem vontade de sair do quarto. Estava feliz.
Tinha sua música, seu livro, sua dedicatória, sua vida. Estava feliz. Sua mãe e
seu pai se preocupavam, estava sempre na rua, com amigos e vizinhos, tinha sua
vida. Estava agora há dias em seu quarto, com um livro que a acompanhava em tudo. Estava sempre a
ouvir as mesmas músicas, dançava insanamente, quase nada comia. Dormia tarde,
acordava quase ao meio-dia. Parecia feliz, dizia estar feliz. A família com
pensamentos funestos. Ela com pensamentos desconhecidos. A preocupação aumentando,
a visita de um médico da família. O diagnóstico, saudável, não aparentava
doença alguma, pediu exames de rotina, solicitou uma visita de um psiquiatra,
apesar de feliz, não aparentava depressão, coisas da idade, dizia ele. A mãe a
levou ao laboratório, com o livro a tira-colo, fez os exames necessários,
voltou para casa. Ligou sua música, dançou e sorriu, riu a tarde toda, em
conversas cochichadas com o livro. Volta e meia abria-o na página em que havia
uma dedicatória, sorria e chorava ao mesmo tempo. Beija a página, repetidas
vezes. Dançava. Deitava-se na cama, de barriga ao vento e com os braços no ar,
o livro sendo admirado pela milésima vez. A mãe sentia um aperto no peito e
chorava na porta do quarto rosa. Ela sequer notava a presença da mãe. Estava
feliz.
O
psiquiatra recomendado pelo médico da família veio visitá-la, foi recebido no
quarto da garota. Fez inúmeras perguntas, que foram respondidas com total displicência.
A mãe já havia comentado sobre o livro, o psiquiatra pediu para vê-lo, ela mostrou
de longe, não permitiu que tocasse. Tentou observar sinais de depressão ou o
uso de drogas, foi tirada do quarto, e o médico investigou cada canto do rosa.
Nada encontrou. Não era depressiva, não usava drogas, estava feliz. O médico
sugeriu uma doença rara, que poderia ser genética e que causaria demência nos
pacientes. Os pais não aceitaram, era muito jovem e de família muito saudável.
Choraram abraçados, sofreram junto, e ela em seu quarto, feliz como nunca.
Abandonou a
faculdade de Direito, já estava quase por se formar. Esqueceu todas as
atividades que se passavam do lado de fora daquele quarto rosa. Largou as aulas
de teatro que tanto elogiava, nunca mais foi vista pelos colegas de lá, e não
se importava, tinha seu livro, sua dedicatória. A tutora por vezes comentava
sua desistência, ao fazer a chamada recordava seu rosto e comentava aos demais.
Jean Paulo, seu colega que presenciara o episódio do dia do teatro ficou com
certa impressão e resolveu procurá-la.
Descobriu
endereço e telefone, ia sem avisar, mas achou melhor certificar-se. Ligou e
ouviu sua voz um pouco envelhecida, parecia de fato a colega, uns anos mais
madura. Descobriu por fim que era sua mãe, explicou que a conhecia da turma de
teatro e que estavam todos sentindo sua falta. Marcou uma visita no fim da
tarde. Era terça-feira, era calor. Saiu de seu trabalho e foi ao endereço que
tinha em mãos. Ao
chegar tocou a campainha e foi recebido por uma jovem senhora, muito parecida
com sua colega. Disse à mulher que gostaria de visitar Julie. Ela sorriu, sabia
de quem se tratava, convidou-o para entrar e não perdeu tempo em chamar a filha
para a sala. Sabia que ela não sairia de seu mundo rosa. Encaminhou o colega
até o quarto da filha e ficou na porta observando a cena. Ela não o viu entrar,
estava ouvindo a mesma música de sempre, rodopiava como sempre, parecia bem
feliz. Ele entrou, sentou-se a penteadeira e apenas fitou-a. Depois de algum
tempo ele interferiu em seus rodopios, chamou-a de Madeleine. Ela de pronto
atendeu-o, sua mãe, na porta do quarto espantou-se. Jean Paulo a olhou e ela
retribuiu o olhar. Aproximou-se a passos lentos e sorriu ainda mais. Chamou-o
não de Jean Paulo, e sim de Clara Poquelin, sorriu novamente. Correu para seus
braços, abraço-o e beijou-o com fervor apaixonado. Dançou, brincou, balbuciou
outras palavras, que nem ao menos Jean entendia. Gargalhava e dizia-se muito
feliz. Por fim largou o livro e rodopiou com Jean por todo o quarto, a música
já havia acabado. Estava feliz.
Jean já havia ouvido falar
no livro de Molière que tinha sido enfeitiçado há mais de um século, não pode
acreditar. Muitos anos atrás uma pobre bruxa ficou enfeitiçada pelos encantos
de uma garota branca como a neve, com um sorriso tão largo que poderia alcançar
as duas pontas do mundo. Viu-a dançar rodopiante em uma festa. Encantou-se de
tal maneira que desejou ser a própria garota e ter sua beleza para si. Tentou
por dias se fazer linda e sorridente como a jovem, sem sucesso. Era velha e
feia, dominada pela carga de suas magias, envelhecida pelos seus feitos de
maldade. Não era uma bruxa de contos de fadas, dessas que tem um caldeirão e
uma verruga na ponta de um nariz obtuso. Era apenas uma mulher comum, com a
face marcada por inúmeras rugas e tristezas. Sua magia baseava-se em frases ditas
em momentos de loucura e inveja, desejava possuir o que era alheio. Perseguiu a
menina por tempos, até que cansada de tanta perseguição a menina lhe trouxe um
espelho e uma flor. Disse-lhe que a beleza vem de onde não podemos ver e
entregou-lhe o espelho e a flor. Ela não pode entender a pretensão da menina,
olhou a flor, que de imediato murchou em suas mãos e olho-se no espelho que
rachou em milhares de pedaços. Ficou inundada de ódio, escreveu com palavras
doces em um livro muito apreciado pela menina, uma dedicatória enfeitiçada.
Colocou novamente em suas coisas e esperou. Depois de algum tempo correu o
boato na cidade, de que a linda menina que vivia dançando nas festas com alegria
e satisfação jazia louca em seu quarto, abraçada a um livro. Ela em voz mais do
que alta exclamou a todos: - Ficará até o fim dos seus dias presa a sua beleza
e alegria em seu quarto rosa, que será seu mundo. Gargalhou maldosamente e
saiu. Nunca mais foi vista. A menina enlouqueceu cada dia mais, apesar da
visita quase diária de médicos, curandeiros e amigos. Deitou-se um dia para
dormir abraçada com seu livro e nunca mais despertou. Não envelhecia, não
acordava, não morria. Um dia sua mãe tentando acordá-la retirou de seus braços
o livro e jogou-o contra a parede. Sua filha envelheceu 100 anos em alguns
minutos e pereceu. A mãe se achando culpada pela morte da filha, fugiu de casa
e da cidade, tentando se esconder do mundo. O feitiço se manteve naquele livro
e se reavivaria a cada menina alegre e bela que o tocasse e lesse sua
dedicatória com o coração.
Jean tinha certeza, Julie
estava enfeitiçada. Continuou bailando com ela e murmurou a sua mãe para que
lhe trouxesse uma bacia, álcool e fósforos. Em poucos instantes, tinham no meio
do quarto rosa, um clássico se transformando em uma grande fogueira. Julie se
aproximou com os olhos chorosos da fogueira, como que se despedindo e
direcionou-se a cama. Caiu em um sono profundo. A mãe, desesperada, achando que
a filha havia morrido, correu para acudi-la. Jean Paulo conteve as lágrimas da
mãe e saiu, fechando a porta do quarto, com a menina dentro. Recomendou a mãe
que não a incomodasse, o tempo vai passar, explicou ele. O tempo estava
passando, dias penosos em que a mãe via a filha em sono pesado no quarto rosa.
Após 30
dias de sono profundo, em uma manhã fria de inverno, desce a escadaria, se
junta à família no café, a menina. Para na escada por alguns momentos, olha
para a família, suspira alto. Desce degrau por degrau, sorri largo, cantarola, boceja.
A mãe olha com ternura e lágrimas que lhe inundam a face. Os demais demonstram
alegria e fé. Ela comenta: - Esta noite dormi como uma criança. Papai me
desculpe por não ter participado mais de sua festa ontem. O dia foi exaustivo.
E vejam se não me deixam dormir até tarde amanhã. Tenho afazeres fora desta
casa. Riu com toda a sua jovialidade. Sentou-se a mesa e comeu com apetite
voraz. A mãe se levantou, lhe beijou a face rosada e se dirigiu ao telefone. –
Sim ,Jean, agora está tudo bem. Ela enfim acordou. E ele admirado, pois ainda
não podia acreditar.
– E ela parece saudável?
– Parece feliz...