segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

boafédemais

ele tinha aquele jeitinho mesmo, os mais próximos já estavam acostumados... andava pelas ruas, varria aqui, limpava ali, tudo na sua velocidade média e andar desengonçado incopiáveis... de longe já se podia ver entre a multidão o sujeito alto e magro de laranja da cabeça aos pés... comprou no camelô até um boné da cor do uniforme, tinha orgulho... no fim das contas entre tantos que passavam pelo calçadão todo dia, entre tantos desconhecidos, ele era um dos mais ilustres... volta e meia conversava, volta e meia ganhava alguma coisinha, volta e meia os velhinhos elogiavam, - é honesto e caprichoso!, - e é um dos poucos que ainda se orgulha disso!... e ele lá, nem pra mais, nem pra menos, simplesmente lá... na ficha da empresa constava sempre uma conduta ilibada, nada de greve, nem de confusão, nem de falta, nem sequer atestado, se houvesse por ali uma fotografia ou menção honrosa ao funcionário da década ele certamente teria uma parede coberta por elas... e todo dia tinha uma meia dúzia de pessoas que cumprimentavam ele, - bom dia!, e ele, - bom!... e outro - olá!, e ele, - olá! e o dia se passava que era um cabelo ao vento e ele terminava tudo o que tinha, ia até a esquina e esperava o caminhão pra levar até a firma o carrinho, trocar de roupa e ir pra casa. nada demais... e chegava o mendonça e ele entrava no caminhãozinho e o mendonça - bão! e ele - bão! e iam quietos... uma vez ou outra mendonça fazia algum comentário e ele assim, assim com a cabeça... e na firma mesma coisa, assim, assim pro porteiro, duas vezes na semana, no máximo, o porteiro erguia a cabeça quando ele passava e dizia - tudo bão? e ele, - tudo! e seguia em frente, colocava ou tirava o uniforme e ia pra casa ou pro trabalho... nada demais... e passou dia, e passou mês e passou ano e passou vida... nada demais... mas tem coisa debaixo daquele laranja todo dizia a sindica do condomínio misto de apartamento e escritório do calçadão... dizia pro porteiro esperar que algum dia ia ver, ia ver que por debaixo daquela boa-fé toda tinha coisa... e esperaram tanto que até recostaram no balcão da entrada pra esperar... nada demais... e lá vinha ele, e lá ia ele... e bom dia pra lá e bom pra cá e assim, assim... mas ela não desistiu, não resistiu, não pode mais escorar com a dor que pegou nas costas e disse sorrateiramente pro porteiro... - hoje você vai ver essa boa-fé se transformar em má... e ajeitou o uniforme bege, prendeu a bundinha pra andar mais rápido e atravessou o calçadão com um meio sorriso no rosto e uma falsidade que reluzia... foi indo, aproximou e - bom dia! e ele - bom! e ela - trabalhando muito? e ele - trabalhando! e ela - já almoçou? e ele - já! e ela - faz tempo que o senhor trabalha aqui? e ele - faz! e ela descambando - gosta de mulher? e ele olhando pra baixo - gosta! e ela ruiva da raiva - tem uma? e ele ainda lá embaixo - tem! e ela cuspindo - até logo! e ele levantando de leve o rosto e sorrindo - até!... e voltou com a mesma bundinha e pro porteiro - hoje talvez não, ele soube dissimular, falou, mas amanhã... ou depois e depois e depois e ela todo dia com alguma das suas e ele com as dele e nada dela pegar a tal da má-fé do coitado... e a rotina alterada já virando rotina e ele lá e ela lá e passa dia, passa mês, passa e nada demais... ela parou de ir, proibiu o porteiro de comentar e não deu as caras por um bom tempo... ele nada com isso, todo dia no mesmo horário estava lá alaranjando o calçadão... quando estava tudo nos conformes aparece a sindica novamente e volta a falar com o porteiro as fofocações do coitado, sem coragem fica dentro do condomínio, escorada no balcão com a língua arrastando pelo chão... e de tanto que ficou esperando o deslize e maldizendo o coitado, a dor nas costas voltou de supetão por conta de um vento que entrou na portaria e ela com o cabelo molhado e se entrevou de um jeito que teve que sair de ambulância direto pro hospital... e no dia seguinte ele lá, varre que varre, limpa que limpa, nem de longe soube do perrengue da tal da sindica... dia normal, tudo nos "conformes"... ele de cabeça baixa varrendo umas folhas, que eram trabalho de todo dia e viu só os pés no salto bem alto que parecia até não ter como parar em pé bem na sua frente... e foi subindo bem devagarinho e vendo pernas peladas que não acabavam mais e quando chegou uns bons palmos acima do joelho e começou a pensar em ver a ponta da microsaia a voz ecoou pelo calçadão lotado... - lustosa, senhor sabe onde fica?... e ele subindo rápido pra chegar a cara - gustosa!... e saiu tão alto da boca dele e fez eco e parece que parou toda a rua e gente de tudo quanto é lado olhando, apontando, uns rindo, outros chorando e dentro da porta de vidro o porteiro levanta da cadeira pra ver melhor o que é que era aquela gritaria sem tamanho e quando chega do lado de fora só vê um laranja enorme correndo e uma mulher dando com a bolsa na cabeça, nas costas, na bunda, onde desse... e o povo todo observando... e ela gritava - gostosa??? e ele - gustosa! e o "coro comendo" no couro dele. e de tanta gente que tinha ali logo apareceram dois fardados e pararam o laranja e a moça e separaram e pediram explicação da festa em plena rua XV... e a moça logo de supetão - eu perguntei a esse cidadão se ele sabia onde fica a lustosa e ele na má-fé e canalhice me chamou de gostosa!!! e o gostosa saiu meio esganado e ela quase chora ali mesmo com a bolsinha tampando a cara, e o policia pro gari - gostosa é? e ele com a voz baixa quase duvidando - gustosa?!? e os cana já botaram as mãos dele pra trás e vai em cana seu safado, gritavam... e o coitado gaguejando um quiquiqui e nada e enfiaram no camburão e ele foi, de contra gosto, mas que se faz numa hora dessas. e na delegacia ele sentado na cadeira, cabecinha baixa, uma vergonha sem fim, calado... e o delegado batia na mesa e - gostosa? e ele nada, e mais alto e mais batida-porrete na mesa... - gostosa? e ele nada, e o delegado fulo da vida levantou e deu uma na cabeça do fulano e - gostosa? e ele nada... daqui a pouco o delegado enfurecido e no alaranjado tome tapa, tome soco, tome supapo e quando já tava de bolacha até a tampa ele grita - gustosaaaaaaaaaaaaaaaaaa! e o delegado - almeida, leva esse depravado aqui em cana por desacato e difamação! e ele no caminho tenta mais uns quiquiqui, mas nada que fosse suficiente pra ser liberado... sentou no canto, amuado, cabisbaixo e ficou lá... e um dos outros - cana né? e ele - cana! e outro - é de fude né? e ele - é! e outro - primeira vez? e ele - primeira! e passa o carcereiro e dá umas batidas na grade - silêncio! e todos quietos. e ele dentro daquele colorido todo pensando, - como é que eu faço pra dizer pra eles que preciso chamar dona maria aqui pra me tirar dessa? como é que eu faço? porque se eu chamo ela de certeza vem e eles me liberam na hora... e tira do bolso um papelzinho com um telefone e olha... vai pra grade, olha... e volta pensar mais um pouco, - pois eu não tenho culpa se não aprendi a falar, não é culpa minha... ou talvez seja, se eu nunca tivesse me apegado a essa idéia do joaquim de repetir a fala dos outros, se não tivesse me apegado... ah, se ela me perguntasse "aqui é a rua XV?", eu respondia "aqui" e ela ainda saia me agradecendo, mas tinha que ser gustosa???... e vai na grade de novo e nada demais... nada demais por muito tempo...

Nenhum comentário: