segunda-feira, 12 de novembro de 2012

águas passadas

a patroa era exigente. fez questão de ficar mais de ano observando a moça, para só então levá-la para capital. a moça saiu saltitante. tamanha era a sua vontade de sair de lá. não importava se a dona morava na capital ou numa cidade um pouco menor, o importante era sair dali. uma terra desgraçada, onde todo dia era matar um leão, engolir dois ou três sapos e viver rodeado de cobras. isso sem contar a falta d'água, sempre ameaçando os moradores de morte.
cansou de andar dias atrás de uma gota barrenta. cansou de ter o corpo sujo e a alma seca. queria sair dali para qualquer outro lugar, em que tomar um copo d'água fosse normal. e seu dia chegou, na casa da dona que fazia tempos estava de olho nela. arrumou as poucas coisinhas, sempre sob a supervisão dos olhos que a levariam. despediu-se seca dos pais e irmãos. e saiu na contra-mão, corpo em frente, cabeça para trás. 
já no caminho começou a ver esverdear. teve impressão de que seus olhos é que eram verdes, já que tudo o que viam era daquela cor. sua favorita, por sinal. mas não, era a água, se espalhando e trazendo uma vida impossível de barrar. estava feliz. tinha sede guardada por muitos anos, iria matá-la com paciência e alegria. dia após dia. 
chegaram. desembarcaram. e ela não sabia se a vergonha seria maior de pisar naquela casa com seus sapatos surrados ou com os pés rachados. mas se fez de desfeita e entrou. olhando ao redor. olhando com medo de gastar. seguiram para a ala dos "como ela". como a outra fez questão de frisar.  recebeu uniforme e uma liberdade em forma de mandado. tomar um banho, tirar as cracas, ficar um bom tempo debaixo do chuveiro. 
chu-vei-ro. água caindo sobre a sua cabeça. um chuva que ela podia controlar com um simples girar de torneira. o corpo molhado, não do suor escasso de sempre. o cheiro do sabonete se dissolvendo. cada pequena boquinha do seu corpo saciando a sede acumulada nas dobras dos dias de secura. ficou o tempo que lhe pareceu uma eternidade. sim. agora ela sabia o que significava a eternidade. gastou um sabonete inteiro. usou somente a toalha de rosto para se secar. tudo aquilo era um novidade boa. daquelas que a gente demora a se acostumar por querer durar mais. 
e depois se apresentou. parecia outra. mais clara. mais alta. parecia até que a voz era melhor do que quando chegou. e então a lista dos afazeres. muitos afazeres. afazeres que durariam a vida toda. estava radiante. sua sina havia acabado. nunca mais. nunca mais, repetia por dentro. e partiu para as tarefas com a alegria de quem sobe aos céus num dia de sol. fazia que fazia. e quando terminava o que os outros achavam que não seria capaz de fazer num só dia, pedia mais serviço. e a única pouca e pequena exigência que fazia era que fossem tarefas da mesma ordem das que já havia feito. e lá ia ela. feliz da vida. 
e quando chegou ao final do primeiro mês  todos estavam minguados, sabendo o que ia acontecer. a lei da dona. as coisas que ela achava. o desconto do dormitório e da comida. o menos de meio salario minimo, a escravidão disfarçada. e ela recebeu o envelope murcho com a mesma alegria com que fazia as milhares de coisas do nascer até o pôr. não precisava de muito. estava onde queria e era feliz. sabia o valor de cada uma daquelas gotas. sabia o que os outros nem desconfiavam. sabia até que o tempo passasse. 
iria esquecer de tudo. iria se acostumar, como todos ali estavam acostumados. e então a felicidade de lavar duas ou três pias cheias de louça e abundantes de água. de se refrescar molhando o jardim ou lavando os inúmeros carros que apareciam por ali, seria pequena. aquela felicidade de outrora escorreria pelo ralo. para depois de alguns anos, deixá-la seca. como todos os outros já estavam. nada dura tanto, irá pensar. nem seca, nem molhada. nada dura.

Nenhum comentário: