quinta-feira, 15 de novembro de 2012

ELE NÃO VOLTARÁ TÃO CEDO

TINHA viajado. Tinha que viajar. Não era seu gosto, nem seu desgosto. A única hesitação antes de sair eram os olhos rasos da pequena. Era tão adepta do amor, dos chamegos e carinhos, que lhe cortava o coração vê-la com aquela saudade antecipada. Ficava em seus braços e ele ia arrastando-a pela casa, até a porta, onde uma trabalhosa dissecação os separava.
E não importava que fossem algumas horas ou meses. Ela sempre fazia isso. Por certo era só o que sabia fazer. E ele no fundo gostava. Saia de lá sabendo que poderia demorar o quanto fosse, que ela esperaria. E mais uma mala feita e mais uma cena daquelas. Foi. E ela como sempre, ficou, na porta, até que não se pudesse nem sentir o rastro dele por perto.
Andou pela casa, pegou nos bordados, nas revistas, ligou a televisão e o rádio. Mas era ele que ela queria. Braços, pernas e torso. Deitou na cama e chorou de manha, aquela dos bebês que teimam em não dormir. E depois de horas se fazendo de rolo compressor sobre o lençol, saiu. Dar uma volta, espairecer. Deixar o vento cobrir a cara e quem sabe esboçar um sorriso.
Parecia não dar certo. Queria mesmo era saber onde era aquele lugar que ele explicou e ela não entendeu. Queria seguir seu faro e ficar com ele. Ser sua pequena de todos os dias. Onde quer que fosse. Mas isso não passava de uma vontade inútil. Só conseguiu rodar a esmo por horas, para, por fim, sentar as pernas e ancas cansadas em um café.
Tomou um chá. Comeu uma fatia de torta. Torta. Por não saber ser sozinha. E por fim levou a papeleta para pagar. No caixa, uma caixa repleta de livro chamou a sua atenção. Deveria ler mais, ouviu seu pequeno repetir. Sim. Vou ler mais e o tempo não será capaz de me atraiçoar. Pagou a conta juntamente com o grosso livro. 
Foi para casa mais feliz. Era uma pequena com boas ideias e boas lembranças. Deitou na cama com a roupa de rua mesmo e começou a sua incursão para dentro daquele que iria salvá-la. Garcia Marques, se chamava. E como escrevia bonito e complicado ao mesmo tempo. Não conseguiu tirar os olhos de dentro do papel. Sorte ter comido alguma coisa antes. Dormiu abraçada com o tal "400 folhas". Sonhou conversar com os personagens e andar pelas ruas de Macondo.
Passou todos os outros dias carregando o escritor debaixo do braço. Na sala. No quarto. Na janela. No banheiro. Na varanda. Nem sabia que dia era, e pela primeira vez rogava que ele não chegasse tão cedo. Que desse ao menos tempo de terminar. Sabia que se ele chegasse, o outro não teria vez. Era uma grande pequena. 
E lá pelas tantas, quando nenhum dos dois mais lembrava quanto tempo não via o outro, ele voltou. Numa tarde de calor e sol de meio dia o dia inteiro. Chegou manso. Com os braços açucarados de quem volta. A saudade do corpo, da mesa e da cama. A vontade de sua pequena manhã-tarde-noite. Entrou pé por pé. Escutou ela no banho, parece que adivinhando que ele estava por vir. Foi desabotoando a camisa engomada pelo suor.
Parou na cama para desamarrar os sapatos. E ao lado, na mesinha de cabeceira, sua desilusão. Teve certeza do que já intuía. Ele não era mais. Tinha esperado tanto, que esperar já não era mais por alguém. Era só costume. Entendeu pela primeira vez meias palavras. Voltou a amarrar o sapato e saiu no mesmo pé que entrou. Não poderia ver novamente os olhos de sua pequena, sem estar contido neles. 
Vagou sem rumo. Fez-se rastro de pólvora. O amor também queima feio, ele pensou. E saiu mundo afora, desaforado pelo que o tempo havia feito deles dois. Ganharia chão, imaginou sozinho. Até o dia em que pudesse regressar. Se era o que a pequena queria, era o que a pequena teria. Voltaria dali 99 anos. E quem sabe o que poderia acontecer. Numa dessas nem era tanto tempo assim...
E ela terminou o livro, e Deus sabe quantos outros. Nunca entendeu, nem depois de tão letrada que ficou, como é que um pequeno daqueles sai e não volta mais. Não entendeu, assim como não entendeu porque mesmo assim, ela continuava a esperar passarem os seus anos de solidão, como havia dito Gabriel.

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