quarta-feira, 14 de outubro de 2009

.O PONTO.

ele estava dentro do ônibus e seu maxilar ruminava o que estava em sua cabeça, martelando, batendo...
ele estava fisicamente dentro do ônibus, não tinha carro, menos ainda dinheiro para um táxi, a urgência poderia tê-lo feito ir correndo a pequena distância que o separava daquele ponto, mas não tinha mais pernas para isso... estava velho.
os dez minutos que separavam aqueles dois pontos eram imensos, talvez os maiores. sentou no fundo da caixa metálica amarela, sentou e ficou lá quase para sempre...
lembrou dos tempos de juventude, lembrou de tanta coisa, o que lhe fez pensar na lonjura de distância entre aqueles pontos, os dois pontos, o de chegada e o de partida.
lembrou que nem no dia do casamento estivera tão nervoso, tão impaciente. o tempo no dia de hoje era o mais longo e tedioso de sua vida. era um tempo injusto.
queria que passasse depressa, queria que não tivesse chegado, queria que o hoje não tivesse amanhecido, simplesmente queria que o dia de hoje nunca tivesse existido.
mas ele está, acontece a cada longo momento em que ele olha pela janela do ônibus, que ele vê os pontos passarem, mas o seu não chega...
um chapéu na cabeça onde outrora haviam vastos cabelos castanhos, olhos levemente apagados por molhações corriqueiras, mãos não tão firmes, pés inchados, calça social clara, camisa branca com listrinhas bem fininhas cinza, cinto, uma pasta amarela de documentos. os documentos, quissá pudesse acender uma fogueira no meio da praça Tiradentes e queimar todos os documentos, queimaria a pasta também.
o ônibus vazio, as pessoas em seus bancos, e ele ali, parado na eternidade de um momento vazio, inóspito, insólito... ele dentro daquela lata amarela, com calor nas têmporas, com as axilas suadas, com um trilindar de dentes que era imperceptível para os demais passageiros... tudo é passageiro, lembrou da piada tímida de outros tempos... quase sorriu, mas no exato momento em que se formou no canto da boca, o peito ardeu tão violentamente, que quase teve que levar a mão a camisa e desabotoar alguns botões.
as pessoas no ônibus, a vida correndo solta, o tempo passando, o tempo dos outros, não o dele. ele no vácuo existente entre aqueles dois pontos. as pessoas não notaram nada, nunca notarão. ele deixou a pasta em cima do banco ao lado do seu, estava vago.
o banco ao seu lado estava vago.
o banco.
o banco do ônibus.
a caixa amarela de lata.
o banco ao seu lado no ônibus.
ele estava vago.
vazio.
desocupado.
não havia ninguém ao seu lado.
ele não resistiu e sua face se contorceu em uma humilde-humilhante expressão de uma dor tão profunda que demora tempo para chegar a superfície, demora tempos pra chegar na cara do sujeito uma dor assim.
o banco ao seu lado.
olhou ao redor.
olhou 360° ao seu redor, procurou uma pequena explicação que fosse.
procurou um ponto de referência, um ponto de coesão, um ponto de apoio. um ponto!
estava na lata amarela.
o banco ao seu lado vazio.
uma pasta amarela sentada ao seu lado na lata amarela.
uns documentos.
um atestado.
um atestado sentado ao seu lado.
ao seu lado, no banco da lata amarela, uma pasta, um atestado, um vazio, um ponto, um nada.
ele balbuciou para a moça com fones de ouvido que estava em sua diagonal mais próxima. - minha esposa morreu!
a subida difícil e longa do ônibus terminou.
ela disse que aquele era o ponto, "aperte se não ele não para".
aperte.
é o seu ponto.
ele tirou os óculos de grau.
colocou no bolso da camisa branca com listras cinza.
retirou de lá um óculos escuro.
hoje sem colírio.
retorceu a cara mais um pouco.
escorreu no canto.
maxilar em diagonal, cruzado, mordida cruzada, aflição, afeição, desgaste.
pegou a pasta.
a amarela.
levantou.
deixou mais um banco vazio na lata.
apertou o botão.
disse: - quase passei do ponto.
sorriu amarelo dentro da lata amarela com uma pasta amarela.
um atestado.
desceu.
havia uma outra moça da lata.
ela pensou que as pessoas fazem isso todos os dias, entram no ônibus com pastas de documentos, entram em um ponto e descem impreterívelmente em outro, apertam o botão para descer, pedem informação para não se perder, tem tiques nervosos, tem cadeiras vagas ao seu lado, dizem até logo, dizem obrigada, não dizem, levantam, sentam, falam, rezam baixo, rezam alto, revezam.
ela pensou que a distância entre dois ponto é relativa.
pensou que seu olhos estavam molhados.
quando ele desceu, o tempo estava parado, o dele... quando ele desceu no ponto certo, era o ponto errado da história pra descer, pra sair, pra derramar e apertar botões.
quando ele desceu.
quando.
o vazio se tornou imensurável.
ele não conhece a moça.
a moça não conhece ele.
não sabem seus nomes.
mas estava dentro da mesma lata.
amarela.
verdade não se esconde, não se mascara.
só o amarelo era de lata.

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